A democracia corre perigo

JOTA.Info 2022-09-22

Na última semana, a Folha de S.Paulo relatou que, de acordo com pesquisa realizada pelo NetLab da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o algoritmo utilizado pelo YouTube em seu sistema de recomendações de conteúdos para usuários privilegia os vídeos da Jovem Pan em favor do presidente Jair Bolsonaro. A pesquisa foi feita com contas novas, a fim de se simular a interação de um usuário “virgem”, circunstância na qual se poderia identificar, com maior precisão, como funciona o sistema de recomendação da plataforma mesmo diante da ausência de um histórico ou de experiências prévias. 

Em outras palavras, nas simulações realizadas pela pesquisa, não havia referências anteriores dos usuários – como curtidas ou qualquer outra movimentação — que pudesse indicar preferência por conteúdos de direita. Mesmo assim, a recomendação do algoritmo foi a Jovem Pan, um canal que, além de ser claramente bolsonarista, tem vários dos seus conteúdos rotulados como falsos pelas mais importantes agências de checagem do país, como Lupa, Aos Fatos e Projeto Comprova. 

A preferência do algoritmo do YouTube por um canal bolsonarista é extremamente grave, diante do seu potencial de desequilibrar as eleições, como bem pontuou Marie Santini, diretora do NetLab:

“É muito grave o YouTube, uma plataforma com mais de 130 milhões de usuários no Brasil, privilegiar um veículo de mídia no seu sistema de recomendação, diante de tantas outras fontes. Ainda mais por [a Jovem Pan] ser um veículo hiperpartidário, claramente bolsonarista, que não dá isonomia aos candidatos. Essa situação cria um desequilíbrio nas eleições, faz propaganda com o uso do algoritmo, pois a recomendação é uma forma de moderação de conteúdo”.

Não se trata da primeira vez que se denuncia uma importante plataforma digital por privilegiar conteúdos da direita. Isso também já ocorreu com o Twitter e o Facebook, dentre outros. O que impressiona no estudo recente é a extensão e o momento em que isso ocorre: praticamente às vésperas de uma das eleições mais polarizadas do Brasil e mesmo após inúmeras iniciativas de organizações da sociedade civil e órgãos do governo, como o TSE, a fim de assegurar um fluxo informacional que não distorça a competição eleitoral. 

Em colunas anteriores, já tive a oportunidade de abordar o quanto as plataformas digitais, longe de serem neutras, exercem um grande protagonismo na gestão do fluxo informacional, decidindo os conteúdos personalizados que cada um de nós irá receber, bem como quando, de que maneira e com que frequência. Daí o grande potencial de manipulação que está por trás de todo o controle que tais entes exercem sobre a informação, inclusive para o fim de distorcer ou alterar o resultado de eleições[1]. Afinal, decisões racionais e livres dependem de informação adequada. Aquele que pode distorcer o ambiente informacional pode igualmente distorcer os processos decisórios dos que recebem tais conteúdos. 

Também já tive a oportunidade de mostrar o quanto o modelo de monetização de plataformas digitais como o YouTube favorece conteúdos mentirosos ou que despertam o ódio e a raiva, pois são sentimentos que deflagram maior engajamento. Trata-se de uma outra característica perversa para o ambiente democrático e para as eleições, que precisam não apenas de informação fidedigna, como também de empatia e respeito às diferenças.  

Apesar de tais discussões não serem novas, parece que estamos longe de um fluxo informacional que seja compatível com o processo democrático. No recente relatório O Papel das Plataformas Digitais na Proteção da Integridade Eleitoral, divulgado em setembro de 2022, fruto da união de várias organizações acadêmicas e da sociedade civil, ficou absolutamente claro que as ações de combate à violência política adotadas por grandes plataformas têm se mostrado insuficientes em várias searas, inclusive no que diz respeito à coibição da violência política de gênero e raça, bem como a desinformação de determinados candidatos contra outros. 

O relatório reafirma que parte do problema decorre da própria arquitetura das plataformas, que lucram com o engajamento propiciado pelo discurso de ódio e violência política:  

“O problema da grande ocorrência de desinformação, discurso de ódio e violência política está relacionado ao modelo de negócios das plataformas, sendo, portanto, estrutural. Conteúdos com essas características geram mais engajamento, sendo, portanto, lucrativos para as empresas”.

Dentre as maiores preocupações do relatório, encontra-se a insuficiência de ações para impedir situações semelhantes à invasão do Capitólio, pois, com exceção do Twitter, nenhuma outra plataforma tem soluções para tal situação: 

“A principal delas é que quase nenhuma plataforma tem política para impedir chamados à sublevação contra a ordem democrática ou à interferência na transmissão pacífica de poder que não apelem explicitamente à violência. Isso significa que, em um cenário de crise institucional durante ou logo após as eleições, elas poderão se tornar ambiente de organização e promoção de ações antidemocráticas”.

Além disso, os seguintes diagnósticos são igualmente preocupantes:  

  1. As plataformas possuem políticas de combate à desinformação contra a integridade do processo eleitoral, mas a desinformação contra candidatos segue com poucas restrições, seja por ausência de políticas específicas (como no caso do Twitter e YouTube) seja por exceções dadas a políticos e candidatos (no caso do Facebook e Instagram). 
  2. As plataformas da Meta não possuem políticas que determinem a ação em face de conteúdos comprovadamente falsos que alegam fraude eleitoral.
  3. Após a publicação do documento, Facebook/Instagram, Google e WhatsApp anunciaram mudanças (que estão citadas nos destaques detalhados por plataforma) em diálogo com a agenda apresentada no documentobase lançado no início de julho. 
  4. O Telegram segue sem compromissos efetivos com a ação em face da desinformação e ataques à democracia. A plataforma não tem política publicada sobre o tema. 
  5. Todas as plataformas digitais informam ter protocolos para reagir de forma imediata a situações de crise política, mas esses procedimentos não são publicizados e não há clareza sobre como tais empresas vão parametrizar a gravidade de tais atos e que tipo de ações serão tomadas. 
  6. Os Memorandos de Entendimento firmados com o TSE são limitados e claramente insuficientes para limitar a desinformação no processo eleitoral. Ainda assim, sua implementação avançou por parte das plataformas, à exceção do Telegram, que não incorporou em suas políticas as promessas que fez em março deste ano. 

É extremamente preocupante que, às vésperas das nossas eleições, ainda estejamos às voltas com esses problemas, o que pode sugerir uma série de cenários, que vão desde a falta de empenho das plataformas nessa curadoria de conteúdos até o diagnóstico que parece ser o mais preocupante: diante de uma arquitetura e de uma estrutura de monetização que priorizam a mentira e a desinformação, pouco pode ser feito para realmente resolver o problema sem uma mudança estrutural. 

Já está mais do que claro que uma política movida a dados é uma das consequências de uma economia igualmente movida a dados. A grande questão é saber por quanto tempo ainda vamos tolerar um “vale tudo” informacional que pode levar à própria desagregação da democracia.


[1] Ver https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/o-negocio-das-fake-news-e-suas-repercussoes-22072020 e https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/mercado-desinformacao-repercussoes-democracia-03112021