As muitas faces do TCU

JOTA.Info 2022-09-28

Eve White é nome conhecido do cinema. É a personagem principal de “As três faces de Eva”, que conta a história de uma mulher — não pare de ler, essa coluna é sobre o Tribunal de Contas da União, eu prometo! — diagnosticada com múltiplas personalidades, contrastantes entre si, e que precisa aprender a lidar com elas. Parte do drama se dá porque as personalidades de Eve manifestam-se em momentos inesperados e ela passa a agir de maneira inadequada.

Agora, ao TCU.

A comparação me ocorreu porque, com a leitura de inúmeros acórdãos do tribunal ao longo dos últimos oito anos, percebi um TCU atuando em dois papéis: “fiscalizador de despesas públicas” e “avaliador de políticas públicas”. Em princípio, ambos encontram respaldo constitucional (arts. 70 e 71). Para desempenhá-los, o órgão utiliza instrumentos distintos entre si, como julgamento de contas, auditoria operacional, tomada de contas especial, aplicação de sanções, de medidas cautelares e por aí vai (alguns desses, de constitucionalidade discutível).

Os temas aos quais o TCU se dedica também são diversificados. Regularidade de gastos com repasses do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (acórdão 1333, 1ª Câmara), possibilidade de prorrogação das autorizações de outorgas de radiofrequência (acórdão 2001, Plenário), cabimento de pregão presencial em detrimento do eletrônico (acórdão 4.958, 1ª Câmara) e políticas públicas de estratégia digital destinadas à qualidade da educação básica (acórdão 326, Plenário) são exemplos dos assuntos com os quais lidou em 2022.

A “análise combinatória”, envolvendo papéis, instrumentos e temas traz ao TCU o desafio de saber qual papel está desempenhando em cada situação e, a partir disso, organizar suas possibilidades de atuação, de acordo com suas competências constitucionais. Temos uma Corte de Contas multifacetada, mas isso não significa que ela dispõe dos mesmos instrumentos em cada uma dessas faces.

Concretizo com exemplo. Há alguns anos, participei de pesquisa sobre intervenções do tribunal em atividades-fim de agências reguladoras, ocorridas em auditorias operacionais que, em alguns casos, originaram determinações às agências que, se descumpridas, poderiam levar a sanções. Em outros países, embora seja comum que entidades públicas de auditoria façam fiscalizações operacionais, essas costumam ter caráter estritamente orientativo, delas não derivando comandos à administração, tampouco punições por seu descumprimento.

Essa situação, em que o TCU age como avaliador de políticas públicas, é diferente daquela em que ele age como fiscalizador de despesas públicas e, diante de irregularidade, aplica sanção ao responsável e determina o ressarcimento ao erário pelo prejuízo sofrido.

Mudar a “face” é difícil. Quem atua simultaneamente em vários papéis precisa lembrar quais diretrizes pautam cada um deles. Em 1957, o papel de Eve White deu o Oscar a uma então semidesconhecida Joanne Woodward — casada com um também então semidesconhecido Paul Newman. A atuação foi exaltada pela complexidade da alternante transformação de uma “face” para outra, que Woodward fez com muita habilidade. O desafio é grande. Cabe ao TCU fazer o mesmo.