O putsch fracassado e a democracia brasileira
JOTA.Info 2023-01-15
“Indivíduos podem formar comunidades, mas somente instituições podem criar uma nação.”
Benjamin Disraeli
Na semana que passou o país foi palco de uma das mais violentas agressões contra as suas instituições em toda a sua história. Um patrimônio artístico e histórico de valor incalculável foi destruído, ao mesmo tempo em que todo um esforço civilizatório de 200 anos de vida independente foi aviltado e vandalizado, em um putsch fracassado que entrará para os livros de história como um dos episódios mais trágicos e patéticos da nossa trajetória nacional.
Por algumas horas a barbárie tomou conta da capital federal, na apoteose de um impulso primitivo de destruição. Como em um ritual macabro de inversões demoníacas, os bárbaros empunhavam a bandeira nacional, ao mesmo tempo que em que vandalizavam tudo o que ela representa. Como se qualquer coisa, ainda mais uma nação, pudesse ser pretensamente resgatada ou construída pelo desrespeito, pela vilania ou pela depravação. Essas ações não possuem substância, e, portanto, não podem criar ou resgatar nada. Só podem destruir. Ex nihilo nihil fit. O nada nada gera. O nada nada é.
Somos, em essência, o extremo ocidente, a mítica “Ilha Brasil”, que, no isolamento do seu berço esplêndido, realiza a milagrosa materialização no tempo histórico presente do desenvolvimento do último ramo da enorme e milenar árvore da civilização ocidental, em cujas raízes se encontra o legado da tradição greco-romana. Somos os herdeiros orgulhosos não da pulsão de morte, do Thânatos, dos gregos e latinos, das suas batalhas brutais ou de seus métodos de destruição, mas sim das suas mais belas instituições, da potencialidade criativa e libertadora que estão na essência da democracia e do direito.
A extrema importância e mesmo o caráter sagrado das instituições na civilização ocidental, entre as quais se destaca a democracia, não podem jamais ser subestimados. Esses elementos foram conscientemente articulados, talvez pela primeira vez, mas de uma forma totalmente definitiva, por Péricles, na sua famosa Oração Fúnebre, tido como o mais brilhante discurso de todos os tempos, tendo influenciado por milênios todo o desenvolvimento político e social posterior da civilização ocidental, até os dias de hoje.
Péricles (c. 495-429 a.C.) foi um dos maiores estadistas de todos os tempos. Membro da tradicional família Alcmaeonidae, pela linha materna, Péricles era sobrinho-neto de Cleisthenes (c. 570-508 a.C.), o fundador da democracia ateniense. Profundo democrata ele próprio, Péricles foi um grande promotor das artes e o principal responsável por Atenas ter se tornado o centro da cultura e da educação do mundo antigo. Ele foi o idealizador da arquitetura clássica e das estruturas que ainda hoje permanecem, como a Acrópole de Atenas e o Parthenon.
A partir de meados do século 5 a.C., consolida-se uma tradição na Grécia Antiga de anualmente se manter um funeral público em memória de todos os que morreram em guerra. Na ocasião, era praxe convidar uma personalidade proeminente de Atenas para proferir um discurso, uma oração fúnebre em honra dos soldados abatidos.
Péricles, assim, foi a personalidade escolhida pelo Estado para proferir a oração fúnebre ao final do primeiro ano da Guerra do Peloponeso (431-404 a.C.), um dos maiores conflitos de toda a história da humanidade, que opôs Atenas, uma democracia, a Esparta, uma ditadura militar. O discurso de Péricles foi registrado por Tucídides, na sua “História da Guerra do Peloponeso”. Tucídides, um grande admirador de Péricles, seguramente estava presente na ocasião e, muito provavelmente, teve acesso a uma transcrição do discurso.
Péricles, nessa altura, contava já com cerca de 64 anos e estava no apogeu do seu prestígio como estadista. Ao contrário da praxe de então em orações fúnebres, e de maneira absolutamente inédita, Péricles não celebra os feitos heroicos em batalha dos soldados falecidos, mas concentra o seu discurso nas razões pelas quais eles estavam lutando, que eram, explicitamente, a grandeza dos princípios de ação, das instituições e do estilo de vida de Atenas. E, no centro de tudo isso, residia o elemento que lhes dava fundamento e inspiração: os méritos e a beleza da democracia e da cultura ateniense. O objetivo do discurso de Péricles, segundo Edith Hall, era o de comunicar as razões pelas quais valia a pena não apenas lutar por Atenas, mas também — e principalmente — morrer por ela.
Péricles definia a democracia ateniense da seguinte forma:
“Nossa forma de governo não entra em rivalidade com as instituições alheias. Nosso governo não copia o de nossos vizinhos, mas é um exemplo para eles. É verdade que nos chamam de democracia, pois a administração está nas mãos de muitos e não de poucos. Mas enquanto existe justiça igual para todos e igualmente em suas disputas privadas, a reivindicação de excelência também é reconhecida; e quando um cidadão é de alguma forma distinguido, ele é preferido ao serviço público, não por privilégio, mas como recompensa de mérito. A pobreza também não é um obstáculo, pois um homem pode beneficiar seu país, seja qual for a obscuridade de sua condição. Não há exclusividade em nossa vida pública, e em nossos negócios privados não suspeitamos uns dos outros, nem nos zangamos com nosso vizinho se ele faz o que quer; não lançamos sobre ele olhares azedos que, embora inofensivos, não são agradáveis. Enquanto não somos constrangidos em nossos negócios privados, um espírito de reverência permeia nossos atos públicos; somos impedidos de fazer mal pelo respeito às autoridades e às leis, tendo particular atenção àquelas que são ordenadas para a proteção dos feridos, bem como às leis não escritas que trazem sobre o transgressor delas a reprovação do sentimento geral”.
A democracia ateniense era caracterizada pela tolerância e pelo respeito ao outro, ao diferente, ao estrangeiro:
“Nossa cidade está aberta ao mundo, e nunca expulsamos um estrangeiro ou o impedimos de ver ou aprender qualquer coisa cujo segredo, se revelado a um inimigo, poderia beneficiá-lo. Não confiamos em ardil ou trapaça, mas em nossos próprios corações e braços”.
Além disso, o grande investimento estatal em educação e cultura fazia do cidadão ateniense o mais corajoso do mundo:
“Se então preferimos enfrentar o perigo com o coração leve, mas sem treinamento laborioso, e com uma coragem adquirida pelo hábito e não imposta pela lei, não somos muito melhores por isso? Já que não antecipamos a dor, embora, quando chegar a hora, possamos ser tão corajosos quanto aqueles que nunca se permitem descansar; assim nossa cidade é igualmente admirável na paz e na guerra. Pois somos amantes do belo em nossos gostos e nossa força reside, em nossa opinião, não na deliberação e na discussão, mas naquele conhecimento que é obtido pela discussão preparatória para a ação. Pois nós temos um poder peculiar de pensar antes de agir, e de agir também, enquanto outros homens são corajosos por ignorância, mas hesitantes ao refletir. E certamente devem ser considerados os espíritos mais corajosos que, tendo o sentido mais claro tanto das dores quanto dos prazeres da vida, não fogem do perigo por causa disso”.
Em outras palavras, é a cultura e a educação que fazem a coragem de um povo. Não a ignorância. Edith Hall especula que esse trecho talvez tenha inspirado a famosa resposta, infelizmente apócrifa, atribuída a Winston Churchill que, ao ser perguntado se ele defenderia cortes nos investimentos públicos em cultura para ajudar no esforço de guerra teria respondido que não, “do contrário, pelo quê lutaríamos, então?”.
Péricles termina, enfim, seu elogio a Atenas com as seguintes palavras:
“Tal é a cidade por cuja causa esses homens nobremente lutaram e morreram; eles não podiam suportar a ideia de que ela pudesse ser tirada deles; e cada um de nós que sobreviver deve trabalhar alegremente por ela”.
O putsch de 8 de janeiro falhou. A democracia brasileira – herdeira da velha democracia ateniense — sobreviveu ao golpe. Ignoram os bárbaros que a bandeira nacional que eles empunhavam representa a força da cultura brasileira, exatamente o que eles procuram destruir. Uma cultura baseada na tolerância, no respeito ao outro e na liberdade democrática adquirida com o sangue, o suor e as lágrimas de gerações passadas e que representa milênios de tradição da civilização ocidental. Amar a pátria é servir alegremente a ela. Não destruir as suas instituições e depredar o seu patrimônio cultural. Que os vândalos sejam punidos, com o rigor e a força da lei e do direito. Si vis pacem, para iustitiam [1].
[1] Se queres a paz, prepara a justiça.