Debate de alto nível em torno da democracia militante
JOTA.Info 2023-02-24
Em belo ensaio intitulado “Democracia militante e a quadratura do círculo”, publicado no JOTA em 16 de fevereiro, os ilustres professores Oscar Vilhena Vieira e Ademar Borges esmiuçam os pormenores do ataque sistemático sofrido pela democracia brasileira, em especial nos últimos anos, durante o governo Bolsonaro.
O enseio faz contraponto a outro, de nome “Nem ‘carta branca’, nem ditadura judicial”, esse da lavra arguta de Diego Werneck Arguelhes e Felipe Recondo, publicado no JOTA em 27 de janeiro.
Em apertada síntese, o primeiro ensaio critica o exercício do poder judicial e os instrumentos escolhidos pelo STF, pela pena do ministro Alexandre de Moraes, no enfrentamento de condutas afrontosas às instituições democráticas.
O segundo ensaio, por sua vez, veicula o argumento de que a atuação do STF teria sido adequada para defender a democracia e, para tanto, cita diversas intervenções pontuais da corte.
Ousamos opinar no sentido de que ambas as visões estão corretas. A primeira sob o ponto de vista prático e a segunda sob o ponto de vista acadêmico.
Cabe à academia a discussão profunda do fenômeno político-constitucional, de suas causas e efeitos, assim como, por uma questão de coerência, a defesa incondicional das instituições democráticas. Louros para os professores Vilhena Vieira e Borges, que foram muito felizes no seu escrito.
O Judiciário, dentro das balizas constitucionais, tem a função de “avaliar a gravidade das ameaças autoritárias e calibrar, com moderação e equilíbrio, o uso de mecanismos de autodefesa da democracia”. Essa “calibragem” do uso do poder estatal em face dos “princípios e regras constitucionais” e do “rigoroso respeito ao devido processo legal”, aliás, é a essência da atividade jurisdicional.
Por outro lado, e com todo respeito os doutos professores, a expectativa de que “à medida que as investidas autoritárias sejam arrefecidas, as cortes deverão desmobilizar progressivamente a caixa de ferramentas da democracia militante” soa ingênua, sob o aspecto da prática forense.
Explico meu argumento, sob o ponto de vista de quem milita há duas décadas na advocacia criminal: a exemplo do que sucedeu quando o Supremo Tribunal Federal (STF) revisitou a prisão em segunda instância, bastou uma decisão, proferida em caso específico, para que as instâncias inferiores se sentissem autorizadas a implementá-la, de forma ampla e geral, afastando a inaplicabilidade consolidada na jurisprudência.
Em sentido inverso, quando se tratou de implementar decisões mais garantistas, com o direito de acesso do acusado e seus defensores aos elementos de prova documentados em procedimento investigatório, por exemplo, foi necessária a edição de Súmula Vinculante e, mesmo assim, ainda se vê resistência de alguns setores da magistratura e do Ministério Público.
Logo, é razoável argumentar, academicamente, que passado o período mais agudo das ameaças democráticas, deverá haver a desmobilização das ferramentas da democracia militante. De fato, deveria ser assim. Todavia, a experiência forense parece mostrar que se trata de uma expectativa de tubo de ensaio, factível apenas em “condições normais de temperatura e pressão”.
A velocidade da propagação e do espraiamento de decisões autoritárias, em contraposição à resistência e imensa dificuldade na implementação de decisões garantistas, objeto de crítica recente por parte de ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ), inclusive, parece indicar que o conservadorismo e o autoritarismo que culminaram no fenômeno Bolsonaro também estão enraizados em setores do Judiciário. Assim, a preocupação veiculada por Arguelhes e Recondo se justifica, na prática.
Então, para a melhor compreensão da questão, de suas causas e consequências, recomenda-se a leitura conjunta dos ensaios, ressaltando a qualidade de ambos.
Parabéns aos articulistas e, também, ao JOTA. É muito bom encontrar diálogo de alto nível. Preocupa-nos, sobremaneira, saber por quanto tempo teremos que saborear o gosto amargo dessa ressaca.