Protocolo sanitário Brasil-China e a nossa vulnerabilidade estratégica

JOTA.Info 2023-03-01

O agronegócio brasileiro é uma máquina de grande potência. Somos os maiores produtores e exportadores das mais variadas culturas e proteínas animais. No mercado de carne bovina, não seria diferente. Dados do Agrostat Brasil[1], sistema de estatísticas de comércio exterior do Ministério da Agricultura e Pecuária (MAP), indicam que, somente em 2022, aproximadamente US$ 12 bilhões em carnes bovinas frescas, refrigeradas ou congeladas foram exportadas pelo Brasil.  

Desse total, mais de 67% das carnes bovinas vendidas ao exterior pelo Brasil foram destinadas à China, responsável pela geração de quase US$ 8 bilhões em faturamento para o setor. Um crescimento de mais de 103% em apenas um ano, já que em 2022, US$ 3,9 bilhões em carnes foram vendidos ao gigante asiático. A predominância chinesa como principal destino das carnes bovinas brasileiras é tão grande que o segundo colocado no ranking, os EUA, adquiriu US$ 446 milhões em carnes de origem bovina do Brasil em 2022 – ou pouco mais de 5% do montante adquirido pela China no mesmo período.  

É inegável, portanto, que a China possui enorme importância para o mercado brasileiro de carnes bovinas, assim como para os mercados de outras commodities de também essencial importância para a economia nacional e a geração de divisas, empregos e renda em nosso território. Trata-se de um parceiro comercial estratégico e fundamental para nosso desenvolvimento, em uma relação de quase mútua dependência: nós precisamos dos chineses, nossos grandes compradores; eles precisam de nós, um dos poucos ou o único país a suprir com eficiência e preço a demanda do parceiro asiático.  

Contudo, no substancial e relevante mercado de carnes bovinas existente entre Brasil e China, há um elemento de natureza regulatória que, uma vez acionado, suspende a cadeia exportadora para nosso principal parceiro comercial. Trata-se de um protocolo sanitário assinado entre as nações em 2015, no governo Dilma Rousseff, que determina a imediata suspensão – ou “autoembargo” – das exportações de carne bovina brasileira para a China quando detectado um ou mais casos suspeitos de Encefalopatia Espongiforme Bovina (EEB), doença degenerativa conhecida pela alcunha de “vaca louca”, já que atinge o sistema nervoso central de bovinos e provoca alteração do comportamento e irritação animal.  

Há duas formas conhecidas de EEB, sendo uma denominada “típica”, isto é, adquirida pelo animal através da ingestão de alimento contaminado, e “atípica”, quando originada de forma espontânea e esporádica no próprio organismo do bovino. Dado o longo período de incubação da proteína responsável pela enfermidade, denominada “príon”, a forma atípica da doença, quando manifestada, costuma acometer animais de idade avançada e não se mostra transmissível aos demais animais e aos seres humanos que venham a ingerir a carne do animal contaminado.  

No Brasil, as medidas de segurança sanitária relativas à EEB possuem mais de 23 anos de existência, e desde 2015, em função do protocolo sanitário firmado entre Brasil e China, qualquer caso suspeito da doença em território brasileiro, seja típico ou atípico, congela as exportações de carnes bovinas para Pequim até que confirmada a natureza isolada da manifestação da enfermidade – afastando, portanto, o risco de disseminação entre animais ou humanos. Nesse contexto, a China possui um grau adicional de segurança contra a doença em relação às carnes bovinas adquiridas do Brasil. Ocorre que o protocolo sanitário firmado entre Brasil e China há aproximadamente oito anos tem causado problemas para os integrantes da cadeia nacional.  

Quando firmado, o protocolo sanitário visava a abertura de novos e promissores mercados para a carne bovina brasileira. De fato, desde então, as exportações para a China cresceram impressionantes 2.000%, aumentando a participação da pecuária nacional na alimentação da outrora maior população do planeta, recentemente superada, segundo estimativas, pela Índia. Contudo, com o passar dos anos, os casos suspeitos de EEB detectados no Brasil, sempre esparsos e atípicos, afetaram toda a cadeia de produção, abate e comercialização de cortes bovinos.  

É um dilema difícil de lidar, já que o apetite chinês pela carne bovina nacional só aumenta e, com ele, aumenta a geração de riquezas no Brasil, porém nos submete a uma situação de estresse toda vez que um caso suspeito de EEB é detectado, já que o protocolo sanitário firmado com a China não determina prazo para retirada das suspensões, mesmo após comprovada documental e cientificamente a natureza atípica da doença apresentada por animal nacional. Nesse contexto, algumas vulnerabilidades de natureza econômica, (geo)política e concorrencial surgiram após a assinatura do protocolo sanitário em questão.  

No âmbito econômico, a falta de parâmetros e prazos para levantamento da suspensão automática prevista no protocolo sanitário coloca o mercado de carne bovina brasileiro de joelhos, prejudicando investimentos domésticos e colocando nas mãos da China o controle total sobre 2/3 da carne bovina exportada pelo Brasil. A simples suspeita da incidência de EEB em território nacional derruba os preços nas praças brasileiras e reduz o ganho por arroba. Isso gera perda de receitas para o criador nacional e uma assimetria na relação comercial entre os países, na medida em que desequilibra a relação de forças no mercado, já pendente para o lado chinês – o país asiático pode comprar a carne de outros fornecedores, já o Brasil dificilmente consegue realocar de forma célere e vantajosa para outro(s) comprador(es) o montante destinado à China.  

No que diz respeito às questões de natureza política e, também, geopolítica, a situação obtém alto grau de subjetivação, vez que a decisão pelo fim do autoembargo fica inteiramente nas mãos da China, que decide quando e como será o fim da suspensão das exportações. Não há um mecanismo ou procedimento claro e automático de revisão da suspensão em questão, e cabe aos chineses, em uma decisão não apenas de saúde animal, mas, principalmente, política, definir o momento do fim da aplicação do protocolo sanitário.

Com tantos interesses do Brasil e da China em jogo na nova ordem mundial, muito além da questão da carne bovina, os episódios de suspensão das exportações podem ser usados politicamente como mecanismos de pressão diplomática. No complexo tabuleiro geopolítico global, considerando a importância desse mercado para a economia brasileira, o protocolo sanitário, nos termos atuais, é um relevante instrumento não violento de influência e pressão chinesa para satisfação de seus interesses estratégicos.  

Por fim, no quesito da concorrência, a ausência de determinações claras para finalização do período de suspensão das exportações de carne bovina brasileira para a China pode gerar uma disputa comercial e prejudicar a concorrência do produto brasileiro no mundo, uma vez que concorrentes diretos da cadeia agropecuária brasileira podem ser beneficiados artificialmente com uma decisão não econômica da China. Dado o gigantismo dos números envolvidos, uma suspensão longa e incerta das exportações de carne bovina para a maior economia da Ásia pode alterar substancialmente as margens e receitas dos produtores no Brasil.  

Assim, fica clara a necessidade da revisão dos atuais termos do protocolo sanitário firmado entre Brasil e China, sob pena de estarmos enrolando – e apertando aos poucos – a corda sobre nosso próprio pescoço. O mesmo termo que nos abriu de vez as portas do mercado chinês está nos asfixiando e nos tornando cada vez mais vulneráveis ao acaso, já que os casos atípicos de EEB aparecem de forma frequente e esparsa e as suspensões se tornarão, cada vez mais, frequentes e incertas. Uma decisão estratégica precisa ser tomada pelo Brasil.


[1] Acesso em https://indicadores.agricultura.gov.br/agrostat/index.htm. Consultado em 27 de fevereiro de 2023.