Austeridade X democracia

JOTA.Info 2023-03-15

Em tempos recentes, em que tanto se discute o alcance das políticas de austeridade e seus desdobramentos, vale a pena a leitura da provocativa obra de Clara Mattei “The Capital Order: How economists invented austerity and paved the way to fascism”[1], considerado um dos melhores livros de economia de 2022 pelo jornal britânico Financial Times. Em um trabalho multidisciplinar, a professora de Economia da New School for Social Research em Nova York mostra como a ideia de austeridade foi construída e os seus efeitos econômicos e políticos desde então.

Para a autora, o conceito de austeridade deve ser entendido em sentido amplo, a partir de um tripé: a austeridade fiscal, a austeridade industrial e a austeridade monetária. Todas essas dimensões estariam unidas pelos mesmos objetivos, que seriam, dentre outros, a diminuição de gastos públicos e benefícios sociais, especialmente os relacionados à educação pública, à saúde, à habitação e às proteções contra o desemprego. Daí os propósitos correlatos de regressividade tributária, transferência de recursos do consumo público para os investimentos privados, privatização e políticas contrárias aos empregados, incluindo a desregulação do mercado de trabalho, o achatamento de salários, o desemprego, o esfacelamento de sindicatos e a contenção de greves.

Premissa essencial para a compreensão do pensamento da autora é que a austeridade, em seu conjunto, nunca foi propriamente um meio de gerir a economia, mas sim um instrumento político de restringir a democracia, desempoderar a maioria e possibilitar que a política econômica se destine a beneficiar uma pequena elite. Na verdade, a autora define a austeridade como um projeto tecnocrático e uma reação antidemocrática às ameaças que viriam das lutas sociais, a fim de possibilitar a implementação de políticas econômicas que subjugam a maioria e excluem o público geral da tomada da decisão econômica, delegando-a a instituições tecnocráticas, especialmente os bancos centrais[2].

Para entender a função da austeridade para a preservação da chamada ordem capitalista, Clara Mattei considera que o pós-Primeira Guerra Mundial foi um momento decisivo, por ter destacado a importância do Estado como agente econômico, notadamente como o maior empregador e o maior produtor do período. Consequentemente, foram abalados dois pilares do capitalismo – a propriedade privada dos meios de produção e as relações salariais – e a economia foi necessariamente politizada[3].

É nesse contexto que a austeridade surge como uma poderosa contra-ofensiva diante de greves e outras formas de inconformismo. As discussões travadas nas famosas convenções de Bruxelas (1920) e Gênova (1922) já explicitavam que as instituições econômicas exigiam uma isenção do controle democrático, propondo soluções como a independência dos bancos centrais”.[4]

Não é sem razão que outro pilar fundamental da austeridade é a coerção dos trabalhadores – “work more, consume less” – a fim de desarmar as classes trabalhadoras e exercer pressões crescentes sobre os salários[5]. Apesar da justificativa formal de que determinados níveis de desemprego seriam necessários para o controle da inflação, o real objetivo de tais políticas era comprometer o entusiasmo político das classes trabalhadoras e obrigá-las a aceitar pagamentos cada vez menores[6]. Daí a conclusão geral da autora:

“(…) austerity was an anti-democratic and fundamentally repressive project emerging out of an epoch of unprecedented democratic demands. In a moment when the scope of social alternatives broadened and citizens were no longer willing to sacrifice their livelihoods in the name of economic rigor, experts deployed Hawtreyan economics to impose on people ever greater sacrifice for the purpose of stabilizing the economy.

Sacrifice came in the double form of decreased consumption (which would reduce internal demand and prices) and decreased wages (which would reduce costs) to boost production and economic competitiveness. Such was the “recipe for the long-term general interest.”[7]

Clara Mattei toma o exemplo do Reino Unido e da Itália, para mostrar como, mesmo com contextos políticos bem diversos – uma democracia liberal no primeiro e o fascismo na segunda – os resultados das políticas de austeridade, em termos de opressão dos cidadãos comuns, foram muito próximos em ambos os países:

“The explicit connection between austerity and political repression – so evident under Fascism – reveals how the economic treatment of Italian citizens was not in fact so different from the treatment the British experts envisioned for their own people. Indeed, as chapter 6 emphasized, British technocrats pushed hard for a non-democratic implementation of economic policy through the independence and authority of central banks. Even if different in nature, the Italian and the British versions of technocracy shared a common end: creating systems that imposed sacrifice on the majority of the public, then insulating those systems from political interruption.”[8]

Daí por que a onda de austeridade que se inicia a partir das décadas de 1970 e 1980 com o neoliberalismo, segundo a autora, nem é um fenômeno novo nem propriamente vinculado ao neoliberalismo. Na verdade, reflete um dos próprios pilares da ordem capitalista desde o pós-Primeira Guerra, consistindo em poderoso instrumento para o insulamento das hierarquias capitalistas e a manutenção do status quo mesmo diante de choques e crises, quando há clamor social por mudanças.

Especialmente quando se observa as evidências de que as políticas de austeridade nunca geraram os ganhos econômicos esperados, a conclusão da autora é a de que o principal efeito da austeridade é precisamente o de domesticar as relações de classe:

“What’s clear is that austerity is particularly effective not in stabilizing economies, but in stabilizing class relations. After all, austerity has historically never been about curbing inflation and budget controls; its manipulations of aggregate demand have always been a means to a deeper end. Austerity secured the best possible conditions for profits to soar, while the majority – the politically undeserved – were forced to relinquish all fledgling projects of economics democracy and “to live harder” through lower wages and lower consumption. Austere capitalism produces losers and winners, and it always has.”[9]

Portanto, a austeridade não pode ser considerada apenas como uma política ineficiente ou como uma loucura, tal como a define Mark Blyth[10]. Para Clara Mattei, há um método nessa loucura, uma vez que se trata de baluarte vital para a defesa do sistema capitalista[11].

Para comprovar o seu argumento, a autora procura analisar com cuidado os efeitos econômicos das políticas de austeridade, concluindo que o que chama de austerity effect é o sofrimento da população enquanto nações e estados cortam benefícios públicos em nome da solvência e da indústria privada[12] e a estagnação dos salários se torna o principal motor da desigualdade global[13].

Mesmo no cenário pós-Primeira Guerra, já era clara a conexão entre a austeridade e a concentração de renda[14], cenário que não se modificou essencialmente nos tempos atuais:

“The economics statistics collated in this chapter corroborate the argument that austerity worked (and still work) to restore the optimal conditions for capital accumulation, primarily through higher unemployment, lower wages, increased exploitation, and an increase in profit share. Austerity produces the large-scale scarcity that aligns workers with owners’ interests. In this sense, austerity “inflation-targeted” policies might be better described as “rate-of-exploitation” targeted.”[15]

Não obstante os resultados econômicos, a austeridade continua se impondo com base em uma visão objetiva e neutra da teoria economia – a pure economics –, que acaba sendo uma verdadeira arma na luta de classes:

“Economic theory was no longer a tool for a critical thought and action; it was a mold for imposing passive consent and maintaining a top-down status quo.”

“Under a veneer of apolitical science, technocrat economists were undertaking the most political action of all – bending the working classes to the wills and needs of the capital-owning classes for the enrichment of a small minority.”[16]

“No physical weapon could have been as powerful as this theoretical framework in removing agency from workers and justifying private profit.”[17]

O fato de a austeridade ter nascido como um projeto tecnocrático foi fundamental para que pudesse ter sido implementada em países com contextos políticos tão distintos[18]. Esse caráter técnico também foi crucial para que fosse implementada no Chile, mesmo que ao preço do sacrifício da democracia[19]. Em suas versões mais atuais, tais como as implementadas a partir de Margaret Thatcher, a austeridade continua a ser reforçada pela visão idealizada e distorcida da teoria econômica e pela necessidade de domesticação dos trabalhadores[20].

É em face do cenário descrito que Clara Mattei conclui que não se pode conceber a austeridade apenas como uma forma de irracionalidade política, mas sim como objetivo insidioso de proteger o capitalismo da própria democracia.

Tais reflexões são fundamentais em tempos atuais, em que tanto se discute os limites e o alcance das teorias econômicas que dão lastro às políticas atuais. Daí por que finalizo o presente texto com algumas das conclusões de Mattei:

“If one subscribes to the argument that austerity is a tool for managing a capitalist economy, as Keynesian economists did and do, then one might believe that the continued deployment of austerity across societies and economies is a form of political irrationality – a wrong economic policy based on wrong economic theory that has never succeeded in achieving its stated ends.”[21]

“In other words, when economists peddle austerity as a means to “fix the economy” their goal is something more insidious.”[22]

“Far from irrational, austerity was a wily counteroffensive that protected capitalism and its relations of productions against the inroads of democracy. To be sure, austerity successfully disempowered the majority.”[23]


[1] The Capital Order. How economists invented austerity and paved the way to fascism. Chicago: University of Chicago Press, 2022.

[2] Op.cit., pp. 6-9.

[3] Op.cit., p. 51.

[4] Op.cit., p. 15.

[5] Op.cit., pp. 127-130.

[6] Op.cit., p. 16.

[7] Op.cit., pp. 202-203.

[8] Op.cit., p. 269.

[9] Op.cit., pp. 272-272. Vale ressaltar que a autora também se socorre da contribuição de diversos autores sobre o tema, dentre os quais Michael Kalechi: “As Michael Kalechi’s 1943 classic article “Political Aspects of Full Employment” pointedly theorized, a dosage of unemployment is imperative to secure the balance of forces between capital and labor that perpetuates social relations favorable to capital investiment, in particular a sufficient discipline of workforce. Governement spending programs and monetary expansions instead challenged this precondition by fostering a tighter labor market. As Kalecki writes, “Undr a regime of permanent full unemployment, the ‘sack’ would cease to play its role as a disciplinary measure… [creating] political tension” (Kalecki 1943, 3).“The gains of austerity came primarily in the form of replacing political tension with a shallow notion of political stability, which in turn enabled the resurgence of investment.” (Op.cit., p. 286).

[10] Austerity. The History of a Dangerous Idea, Oxford: Oxford University Press, 2015.

[11] Op.cit., p. 3.

[12] Op.cit., p. 2.

[13] Op.cit., p. 18.

[14] Op.cit., pp. 284-285.

[15] Op.cit., p. 286.

[16] Op.cit., p. 12.

[17] Op.cit., p. 286.

[18] Vale a pena reproduzir o seguinte trecho sobre a experiência italiana: “This chapter has set out to explore the birth of austerity in Italy under the “impartial” guide of four renowned professors of economics. Despite their ideological divergence, the four shared a deeper set of beliefs and a precise mission: they worked together in concert as guardians of a universal economic science – a science that, despite its purposed purity, had the intrinsic practical aim of “taming” citizens to consume less and produce more. The emerging Fascist regime endowed the professors with the opportunity of a lifetime: to actually mold the society to correspond to the ideal of their models.” (Op.cit., p. 243).

[19] A autora trata expressamente dos resultados do combo austeridade/ditadura no Chile, citando o economista (Chicago Boy) Rolf Lüders sobre o assunto, na parte em que reconhece que as transformações econômicas do Chile jamais poderiam ter sido realizadas sem um regime autoritário (Op.cit., p. 201).

[20] “But 1979 also saw the rise of Prime Minister Margaret Thatcher, who famously dismissed workers as “idle, deceitful, inferior, and bloody-minded” and rejected talk of class in favor of a focus on “personal responsibility”. Thatcher inaugurated austerity’s comeback in Britain, this time under the counsel of a team of experts that included members of the famed Mont Pelerin Society” (Op.cit., p. 291).

[21] Op.cit., p. 288.

[22] Op.cit., p. 289.

[23] Op.cit., pp. 289-290.