A carne futurista já é uma realidade

JOTA.Info 2023-04-22

Na esteira da carne plant based (produzida a partir de insumos não animais), já é possível encontrar mundo afora a chamada como carne cultivada, ou carne de laboratório. É uma proteína produzida com base na cultura de células in vitro dos animais – seja de boi, frango, porco ou peixe – que dispensa a necessidade do seu abatimento. O impacto dessa tecnologia na realidade mundial é altamente positivo, seja em questões ambientais ou ainda nas formas mais amistosas das relações entre humanos e animais sencientes.

Em 2020, a Agência de Alimentos de Singapura concedeu a primeira aprovação do mundo para carne à base de células. Em 2021, o presidente de Israel anunciou que o governo adotaria a proteína alternativa como parte de sua Estratégia Climática Nacional. No ano passado, a Administração de Alimentos e Medicamentos dos Estados Unidos (FDA) concedeu a primeira licença de comercialização de frango cultivado. No Brasil, a JBS prometeu investir R$ 325 milhões nos próximos quatro anos para o desenvolvimento de carne cultivada através do seu Biotech Innovation Center. No entanto, não há ainda no país nenhuma aprovação para a comercialização desse perfil de alimento.

Ao mundo do direito, a novidade atrai uma curiosidade: há arquitetura regulatória suficiente para que esse novo perfil de alimento seja introduzido no Brasil?

O debate e o conhecimento já produzidos pela atuação das agências reguladoras internacionais dos EUA, de Singapura e de Israel são um ponto de partida relevante as respostas a essas perguntas.

No caso dos Estados Unidos, por exemplo, a FDA e o Departamento de Agricultura (USDA-FSIS) estabeleceram um acordo, no qual definiram a responsabilidade do FDA em supervisionar a coleção de células, bancos de células e crescimento e diferenciação celular. Em um estágio posterior, as empresas precisarão de uma “concessão de inspeção” do Serviço de Inspeção e Segurança Alimentar do USDA-FSIS para o estabelecimento de fabricação e, consequentemente, da marca de inspeção do USDA-FSIS antes de iniciar a comercialização da carne cultivada para o grande público. É um trabalho conjunto.

No Brasil, não se pode negar que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) será uma protagonista no âmbito da regulação desse novo alimento. De início, porque a função do controle de alimentos foi atribuída constitucionalmente ao SUS (artigo 200, inciso VI). Descendo ao âmbito infraconstitucional, a Lei 9.782/99 institui tal competência, no âmbito do SUS, à Anvisa (art. 8º, inciso II).

No esfera técnico-regulatória da Anvisa, a carne cultivada se enquadra no conceito de Novo Alimento, previsto na sua Resolução 16/1999, seguindo o padrão internacional proposto pelas demais agências reguladoras.

Novos Alimentos são os alimentos ou substâncias sem histórico de consumo no país ou alimentos com substâncias já consumidas, a que, entretanto, venham a ser adicionadas ou utilizadas em níveis muito superiores aos atualmente observados nos alimentos utilizados na dieta regular. Significa dizer que novas formas de fabricar um alimento já integrado no consumo diário dos brasileiros ensejam a classificação como Novo Alimento pelas diretrizes da Anvisa. É o exemplo da proteína isolada do leite (whey), do colágeno de frango tipo II e do leite produzido a partir de vacas com o genótipo A2A2.

Ainda, o documento “Novos Alimentos e Ingredientes: Documento de Base para Discussão Regulatória” publicado pela agência sanitária em 2020, no qual propõe-se uma revisão da legislação acerca dos Novos Alimentos, acrescenta ao conceito menção explícita aos alimentos que “consistam em culturas de células ou culturas de tecidos ou tenham sido produzidos a partir destas culturas”.

É justamente o caso da carne cultivada.

Os Novos Alimentos já possuem um fluxo administrativo a seguir, dentro da estrutura da Anvisa, que exige um relatório técnico científico de avaliação de risco e demonstração de segurança a ser avaliado por uma Comissão de Assessoramento Técnico-científica em Alimentos Funcionais e Novos Alimentos constituída pela agência. Mas, certamente, a introdução da carne cultivada no Brasil exigirá alguns degraus adicionais de regulação, a exemplo daquilo que se viu nos Estados Unidos.

Em paralelo, é possível premeditar uma concorrência regulatória do Ministério da Agricultura e Pecuária com a Anvisa. Isso em razão de a carne de laboratório poder ser considerada como “um produto de origem animal”, o qual, portanto, deverá ser registrado no Departamento de Inspeção de Produtos de Origem Animal do Ministério da Agricultura, nos termos do Decreto 30.691/52 (Alterado pelo Decreto 8.681/2016). Claro que a regulação concorrencial, para o mesmo fim (garantia da segurança alimentar) é uma afronta à eficiência, violando, inclusive um dos princípios do SUS (artigo 7º, XIV da Lei Orgânica da Saúde 8.080/90) que determina uma suficiente organização da atividade administrativa “de modo a evitar duplicidade de meios para fins idênticos”.

Assim, por mais que em um primeiro momento a carne cultivada possa causar dúvidas sobre o preparo normativo do Brasil para assimilar essa tecnologia, é certo que o pais já possui uma arquitetura regulatória suficiente e disponível a fabricantes e importadores dessa valiosa nova forma de produção de alimento.

Dito isso, como ainda não há nenhum alimento registro no Brasil com esse perfil, é bastante provável que haja um desenvolvimento da regulação setorial, a partir do surgimento dos primeiros casos. No mais, é de se lembrar que a ininterrupta evolução tecnológica exigirá da Anvisa uma constante atualização, além de contínuo diálogo com produtores e importadores de carne cultivada, sem prejuízo do benchmarking como com as agências reguladoras internacionais de primeira linha, a fim de diminuir riscos e seguir estimulando o ingresso de tecnologias alimentares que contribuam para o desenvolvimento sustentável da sociedade.