Caso GSI e proposta de impeachment normalizam golpismo de extrema direita
JOTA.Info 2023-04-24
Passados 100 dias do início do governo Lula 3 e pouco mais de três meses depois da intentona bolsonarista de 8 de janeiro, o golpismo voltou com tudo. A divulgação de gravações de vídeo do circuito interno do Palácio do Planalto na semana passada mostra de modo inequívoco que, naquele dia de janeiro, o agora ministro afastado do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Gonçalves Dias, circulou tranquilamente entre os terroristas que atacaram as sedes dos Três Poderes.
Foi a senha para que contingentes de extrema direita fossem às redes sociais e até mesmo em páginas da imprensa profissional para insinuar que foi o próprio presidente da República que armou a invasão à sede do Executivo de modo a culpar os adversários derrotados em outubro passado, em particular o então candidato à reeleição Jair Bolsonaro. Nada mais ilógico haja vista que não apenas o Planalto foi invadido, mas também o Palácio do Congresso Nacional e a sede do Supremo Tribunal Federal (STF).
Na mesma semana, no feriado de Tiradentes, reportagem publicada no portal iG relatou que deputados federais do PSDB sondaram o ex-tucano e vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB) sobre a possibilidade de ele endossar o impeachment do titular. Discutir impeachment por si só não é golpismo, mas fazê-lo logo após um governo que acaba de completar 100 dias e com menos de dez dias sofreu uma tentativa de golpe, beira o crime de lesa-pátria. Não foi desta vez que as vivandeiras encontraram alguém disposto a desempenhar o papel de Joaquim Silvério dos Reis, o delator dos inconfidentes.
Que integrantes do governo — inclusive o presidente — sejam devidamente responsabilizados na hipótese de prevaricação caso as imagens tenham sido omitidas deliberadamente das autoridades responsáveis por investigar os atentados de 8 de janeiro. Se houver crime de responsabilidade e apoio popular para destituir Lula, que os parlamentares tomem as devidas providências.
No momento, ataques ao governo Lula que fogem à crítica das políticas públicas e defendem sua desestabilização com vistas à sua destituição são o mais puro suco do golpismo que tempera a República brasileira desde sua fundação pelo — sem ironias — golpe militar de 15 de novembro de 1889. Não que a instabilidade inerente à República seja obra exclusiva de fardados. Segundo pesquisa Atlas, quase 40% dos eleitores consideraram a tentativa de golpe justificada de algum modo.
Não é exagero dizer, portanto, que o golpismo de extrema direita já foi normalizado no Brasil. O fenômeno, porém, está longe de ser exclusivamente nosso. Na Europa Ocidental, onde os estudos sobre movimentos de ultradireita — a qual congrega a direita radical, que explicita xenofobia e racismo, entre outros vícios antiliberais, e a extrema direita, explicitamente golpista — já têm mais de 40 anos de massa crítica acumulada, a aceitação pacífica de tais posicionamentos já é fato consumado.
Numa edição especial da revista acadêmica Discourse & Society, pesquisadores discutiram no ano passado a normalização do discurso de ultradireita em veículos de mídia na Europa. Em linhas gerais, chegam à conclusão de que o jornalismo desempenha papel fundamental na absorção pela esfera pública de pautas outrora marginalizadas. Como resumido pelo artigo introdutório do volume, “atores de extrema direita frequentemente recorrem a um método muito peculiar – mas agora comum: adoção de muitos argumentos pró-democráticos, embora muitas vezes os ‘inverta’ a favor de argumentos e objetivos de ultradireita para, assim, pré-legitimar sua própria política antidemocrática de controle e exclusão”.
Volta-se, assim, ao velho dilema de tolerar os intolerantes e, portanto, criar terreno fértil para que a intolerância germine. As imagens que expuseram a inação do general Dias foram divulgadas em 19 de abril, em reportagem da CNN Brasil. Somente no dia 21 a gravação foi exibida na íntegra, sem borrar a imagem de outras pessoas, dentre elas militares que aparentam ter tratado os golpistas de forma mais solícita que o agora ministro afastado do GSI.
No último domingo (23), o governo federal finalmente deu acesso a todas as imagens gravadas em 8 de janeiro no Planalto. No mesmo dia, o jornal O Estado de S. Paulo noticiou que sete dos nove integrantes do GSI gravados nas imagens trabalharam proximamente a Bolsonaro em suas famosas motociatas e/ou durante sua campanha à reeleição. Considerando as movimentações golpistas do ex-presidente desde as vésperas do segundo turno, quando o então ministro da Justiça, Anderson Torres, deliberadamente armou operações da Polícia Rodoviária Federal em regiões do Nordeste onde Lula havia ganhado no primeiro turno com ampla vantagem, é plausível perguntar se a bolsonarização do GSI não é o que levou o órgão a ser leniente com a segurança do palácio presidencial.
O general Dias é próximo de Lula há 20 anos, desde o primeiro mandato do petista. Porém, parece que sua lealdade aos colegas de caserna, com familiares entre os golpistas, falou mais alto. Qualquer conclusão merece escrutínio detalhado das autoridades competentes. Dito isso, ecoar teorias da conspiração é agir como parte da imprensa europeia que, em particular nos últimos 20 anos, tomou como aceitáveis as posições de ultradireita que tanto solapam a democracia liberal.
O lado do jornalismo profissional é o da preservação do regime democrático, em particular dos mecanismos que impedem a tirania da maioria contra as minorias. Assim, a defesa de um governo sitiado pelo golpismo não viola os pressupostos da objetividade necessária ao bom exercício da profissão, mas assegura que a própria democracia liberal sobreviva às tentações autoritárias — inclusive aquelas que eventualmente possam surgir desde a extrema esquerda do espectro político.
Nesse contexto, desvendar o modus operandi de grupos de extrema direita em relação à mídia mainstream é fundamental. Outro trabalho acadêmico recente, publicado na revista Brazilian Journalism Research por pesquisadoras da Universidade Federal do Paraná, indica que perfis em redes sociais ora direcionam seus seguidores contra emissoras de TV, revistas e jornalões, ora repercutem positivamente o que publicam. Interpreto essa oscilação como reflexo da falta de honestidade intelectual. Interessante ainda notar que, além da imprensa, apenas as instituições sofrem mais ataques.
Trata-se do anti-establishment de resultados: o dito sistema é criticado quando não se alinha às pautas da extrema direita e defendido quando ela se vê refletida nas páginas e imagens que tanto detratam. Cabe questionar se procedimento similar não é aplicado pela mídia mainstream quando critica o atual governo: quanto dessa crítica não é fruto de divergência de agenda, em particular no quesito condução da economia? É possível monitorar o governo liderado pelo PT sem endossar o bolsonarismo? Como? Dependendo da resposta, saberemos não apenas qual é o futuro do jornalismo, mas da própria democracia nestas terras de golpismo fértil e contumaz.