País precisa de reindustrialização para superar autoritarismo à direita

JOTA.Info 2023-05-02

Qual é o caminho da democratização? E o da consolidação democrática? Resumir uma literatura acadêmica tão complexa em menos de mil palavras não é fácil, caro leitor. Se tivesse que explicar o básico dessa área numa aula introdutória para um aluno de graduação que acabou de ingressar no ensino superior, diria de modo resumido que, quanto mais complexa e rica uma sociedade se torna, maiores são as chances que ela se torne democrática. Tal complexidade está diretamente relacionada à economia: quanto mais segmentada, mais diversos tendem a ser os interesses e, portanto, aumenta a ocorrência de conflitos redistributivos.

Pode-se resolvê-los com violência — eis a essência da autocracia. Porém, se há muitos conflitos, usar instrumentos como o assassinato de opositores e a censura fica muito custoso. A conclusão lógica é que a democracia emerge quando sai mais barato gastar saliva do que manchar as mãos com o sangue de compatriotas ditos subversivos.

Fatores internacionais também importam. Teria sido o caso da queda das ditaduras latino-americanas à direita e dos regimes autoritários socialistas do Leste Europeu entre meados dos anos 1980 e começo da década seguinte a chamada terceira onda da democratização, muito bem explorada pelos trabalhos de cientistas políticos como Samuel Huntington, Guillermo O’Donnell, Philippe Schmitter e Laurence Whitehead — este último meu professor no doutorado e até hoje colega no âmbito de um comitê de pesquisa da Associação Internacional de Ciência Política (IPSA).

Ademais, a exposição ao comércio internacional também geraria estímulos à democratização ou pelo menos à consolidação democrática. Essa premissa levou os Estados Unidos, no auge da unipolaridade moldada pelo dueto democracia liberal-mercados livres, a apoiar a entrada da China — uma autocracia de partido único — na Organização Mundial do Comércio (OMC) sob o argumento de que Pequim seria socializada em valores liberais e democráticos pela economia. Nada mais equivocado e representativo da arrogância liberal do pós-Guerra Fria.

As duas primeiras décadas do século 21 demonstraram que é possível globalizar-se economicamente sem se democratizar ou manter a democracia. Índia e Turquia — países com características similares às do Brasil, notadamente a industrialização tardia e a posição semiperiférica no sistema internacional — caíram em todos os índices de democracia nos últimos dez anos muito embora sejam mais abertos em comércio do que nós. A China não aderiu a valores que, comparados a cinco milênios de civilização, sequer chegaram à primeira infância.

A maré externa, portanto, não favorece a democracia. Internamente diria que situação é pior, pois, ao que tudo indica, caso não tivesse havido pressão dos EUA e de democracias europeias, militares teriam embarcado no golpismo de Jair Bolsonaro. Uma hipótese para que, já no primeiro turno, a direita brasileira tenha cerrado fileiras atrás de um candidato declaradamente autoritário, sem o lustro do liberalismo econômico de botequim que esboçou no pleito de 2018, consiste na redução da complexidade da nossa economia neste século. Somente entre 2013 e 2020, quase 1 milhão de empregos em segmentos de alta complexidade foram perdidos.

Tal perda de complexidade está diretamente relacionada à desindustrialização e ao aumento da percepção de pobreza, como foi didaticamente explicado em entrevista com o pesquisador Armando Castelar, publicada no último domingo (30) no jornal O Estado de S. Paulo. Na política, considero seriamente a hipótese de que o declínio do PSDB está associado a esse movimento.

Para entender a plausibilidade dessa hipótese, precisamos voltar a 1974, ano em que eleitores das grandes cidades, em particular no Sul e Sudeste, reagiram ao fim do milagre econômico votando em massa no oposicionista MDB — contra, portanto, a ditadura. O sucesso da oposição levou a ditadura a baixar em 1977 o infame Pacote de Abril, que colocou o Congresso em recesso e instituiu a figura dos senadores biônicos, indicados pelo regime. No mesmo ano, porém, a Carta aos Brasileiros, lida na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, indicava que a sociedade civil organizada e partes significativas das elites econômica e intelectual não mais toleravam os altos custos do arbítrio.

Nas eleições de 1978, o MDB seguia forte nos grandes centros, um reflexo da industrialização em marcha — ou seja, o próprio regime plantou as sementes de sua destruição ao estimular a expansão da complexidade econômica nacional. Não foi à toa, portanto, que dez anos depois surge com grande respaldo em São Paulo — estado que chegou a concentrar no começo do século 40% da produção industrial nacional — a dissidência do então PMDB chamada PSDB.

Os tucanos simbolizavam a alternativa viável para a classe média formada graças à industrialização perante o retrocesso malufista-autoritário e a incerteza dos arroubos petistas à esquerda, demasiadamente radicais. Recheado de intelectuais, dentre os quais se destacavam Fernando Henrique Cardoso e José Serra, o PSDB encarnava a racionalidade nas políticas públicas, algo que também existia no PT, mas cujo discurso ainda não era palatável aos mais centristas.

O PSDB começa a morrer quando deixa de defender seu legado perante um Lulinha Paz e Amor que conduziu o PT rumo ao centro. Com a ascensão do agro nos dois primeiros mandatos do petista, as bases na sociedade para um partido social-liberal — a verdadeira identidade tucana desde sempre — viram ruínas, as ruínas do Brasil moderno que, por ora, parece ter ficado para trás.

Li há alguns dias nas redes sociais (confesso que, por descuido, não guardei a autoria) que o Brasil precisa de uma direita bossa nova. Essa era acabou: agora ou é pancadão ou berrante — funk ou sertanejo, para ficarmos no estereótipo da divisão entre Complexo do Alemão e agroboys. Não há calmaria, meio-termo, a elegância de uma batida inovadora no violão ecoando nossa herança sincrética. Sem base social, o PSDB ficou à deriva. Tal como a esquerda do Norte Global convertida em Terceira Via por nomes como Bill Clinton e Tony Blair no auge da globalização centrada no Ocidente, os tucanos merecidamente receberam a alcunha de elitistas e arrogantes. Sem povo, viraram sublegenda do bolsonarismo.

Engana-se ou age de má-fé quem acredita que uma direita civilizada possa surgir das franjas de um governo com 700 mil mortes nas costas, para não citar o legado de miséria intelectual e ódio, encarnado nos ataques a crianças indefesas. A direita civilizada está no atual governo e responde pelo nome de Simone Tebet. O resto tem as mãos sujas de sangue pátrio no genocídio perpetrado pelo mito-capitão, o qual pode ter de encarar o Tribunal Penal Internacional. Entre lideranças políticas, não se pode servir a dois senhores: ou se é democrata, ou se é bolsonarista, alcunha da extrema direita em Terra Brasilis.

Tebet, porém, não terá força para empreender uma candidatura própria em 2026 pela mesma razão que o PSDB morreu e não vai ser ressuscitado: falta base para a defesa de valores sociais-liberais no Brasil. No agro, a ausência de valores liberais se evidencia quando a Agrishow — maior feira do setor — convida Bolsonaro para sua abertura em 1º de maio às custas de romper pontes com o atual governo. Caso seja bem-sucedido em reindustrializar o Brasil, Lula ironicamente terá a mesma função que, indiretamente, Geisel teve para a democracia brasileira. Embora tenha freado os ímpetos de abertura política, o general — que achava Bolsonaro um mau militar — contribuiu para a redemocratização ao avançar o 2º Plano Nacional de Desenvolvimento, sofisticando ainda mais a estrutura socioeconômica brasileira.

Assim, numa ironia do destino, Lula tem o poder de começar a ressuscitar — sem o rótulo PSDB — aqueles a quem injustamente acusou de lhe ter entregado uma herança maldita em 2003. Quiçá os “novos tucanos” possam até ser uma futura dissidência do PT, mais comprometida com a atualização de um pensamento que, embora respeitoso da democracia no Brasil, lembra elementos da Guerra Fria, contexto ao qual os autoritários bolsonaristas estão presos dado que rotulam todo e qualquer adversário de comunista. Seja você comunista também: abrace a Constituição, defenda a democracia, apoie (se houver) qualquer esforço de reindustrialização e complexificação da economia brasileira. Sua liberdade agradece.