O TSE caçou Deltan cassando o registro de sua candidatura
JOTA.Info 2023-05-19
A decisão do TSE, por unanimidade, que cassou o registro de candidatura de Deltan Dallagnol (Podemos-PR), do ponto de vista estritamente técnico-jurídico, infelizmente, é errada.
E é errada por duas razões:
- porque afronta o texto expresso da Lei das Inelegibilidades, reformada pela Lei da Ficha Limpa (art. 1º, I, g, q, da Lei Complementar 64/1990, reformada pela Lei Complementar 135/2010);
- porque se baseia em uma interpretação extensiva indevida para restringir direito fundamental (direito político de votar e ser votado).
Segundo o voto do ministro relator Benedito Gonçalves, Deltan Dallagnol teve seu registro de candidatura indeferido, e por isso perdeu seu mandato, porque Deltan era membro do MPF, mas se exonerou voluntariamente, deixando para trás 15 procedimentos administrativos preliminares que poderiam ter se tornado processos administrativos disciplinares (PADs), o que constituiria afronta ao art. 1º, I, q, da Lei das Inelegibilidades (Lei Complementar 64/1990, reformada pela Lei Complementar 135/2010).
Segundo esse dispositivo, utilizado como fundamento legal da cassação do registro da candidatura de Deltan (art. 1º, I, q, LC 64/1990), se torna inelegível por 8 anos o membro do Ministério Público que se exonerar na pendência de processos administrativos disciplinares (PADs).
Porém, o que pendia de apreciação pelo CNMP à época da exoneração de Deltan não eram processos administrativos disciplinares (PADs), mas procedimentos administrativos preliminares. Ou seja, procedimentos de natureza jurídica diversa de PADs.
O TSE, no entanto, entendeu que, a despeito de serem procedimentos administrativos de outra natureza, a exoneração de Deltan teve o intuito de fraudar a lei, pois tais procedimentos administrativos poderiam ter se tornado PADs e, assim, impedido a candidatura de Deltan.
Esse entendimento, todavia, é errado.
Primeiro porque o fundamento da decisão do TSE viola o texto expresso da Lei Complementar 64/1990, art. 1º, I, q.
A lei exige processo administrativo disciplinar (PAD), e não qualquer procedimento administrativo. Ou seja, a lei definiu que o que torna um membro do MP inelegível é ele se exonerar tendo pendente contra si um processo específico, de natureza administrativa e sancionatória disciplinar. Não basta, portanto, mero procedimento administrativo preliminar. A lei exige processo administrativo disciplinar (PAD), que se destine a averiguar cabimento de sanção por violação de regras de conduta.
Essa previsão da LC 64/1990 é uma regra. Um comando disjuntivo, que separa quando existe o fato que causa a inelegibilidade e quando ele não existe. Essa regra ou se aplica integralmente, ou não se aplica. Não cabe tergiversação sobre isso. Ou existe PAD pendente, ou não existe. Não há circunstâncias que possam mitigar essa regra.
E faz sentido que a lei disponha desse modo. Afinal, se o direito político fundamental de votar e ser votado pode ser restringido porque a Constituição assim autoriza (art. 14, § 9º, CRFB/88), tal restrição, no entanto, deve ser disposta de modo preciso e objetivo pela lei. Se a Lei Complementar 64/1990 definiu com precisão e objetividade a pendência de processo administrativo disciplinar (PAD), e especificamente PAD, então o que causa a inelegibilidade é apenas PAD, e não qualquer outro tipo de procedimento administrativo que possua outra natureza.
Não há fraude à lei porque os procedimentos administrativos nunca se tornaram PADs. Pode até ser que se tornassem. Mas isso é mero exercício de futurologia, o que não se admite como argumento ou critério jurídico de julgamento. Ainda mais em se tratando de um direito fundamental. Aliás, é para isso que existe lei estrita em matéria eleitoral para se regular as inelegibilidades. Para se estabelecer marcos, temporais ou fáticos, de modo preciso e objetivo, que definem as inelegibilidades de um candidato. A LC 64/1990, art. 1º, I, q, definiu a pendência de PAD como causa de inelegibilidade. E não a pendência de qualquer procedimento administrativo. Logo, não pode haver inferência de existência de fraude pela existência de procedimentos administrativos, pois só haveria fraude à lei se fosse permitida uma candidatura com pendência de PAD, o que não era o caso de Deltan Dallagnol.
Em segundo lugar, porque, ainda que se considere que os 15 procedimentos administrativos preliminares poderiam, pelos fatos que veiculavam, ensejar a instauração de PAD, essa seria uma interpretação extensiva indevida para restringir o direito político fundamental de votar e ser votado, o que não encontra amparo na Constituição ou na própria lei invocada como fundamento.
Um direito fundamental pode ser restringido pela Constituição e por lei infraconstitucional. No caso dos direitos políticos, e no caso de Deltan, o direito de votar e ser votado é restringido com autorização constitucional – art. 14, § 9º, CRFB/88. E regulado pela Lei das Inelegibilidades, que define em quais casos, quando e por quanto tempo uma pessoa é inelegível. Se a LC 64/1990 definiu os casos e o tempo das inelegibilidades, então não cabe ao TSE ampliar tais hipóteses com base em outros fatos externos à lei e não abarcados por ela, sob pena de interpretação extensiva que restringe direito fundamental que deveria ser garantido na maior extensão e medida possível, salvo as hipóteses precisas e objetivas definidas pela lei.
No caso de Deltan, o TSE, no entanto, inferiu fraude à lei porque a exoneração de Dallagnol impediu que 15 procedimentos administrativos pendentes terminassem sua tramitação e se convertessem, eventualmente, em PADs. Ou seja, o TSE identificou numa conduta permitida pela lei (a exoneração de cargo de membro do MPF) uma fraude para escapar de possível inelegibilidade. Mas essa inelegibilidade tem um marco fático e temporal bem definidos e que não se encontram presentes quando da exoneração de Deltan. Não é possível, assim, se interpretar de modo extensivo e expansivo a específica e objetiva previsão de inelegibilidade presente no art. 1º, I, q, que definiu a pendência de PAD como causa de inelegibilidade.
Ao estabelecer uma interpretação extensiva e expansiva, se valendo de outros procedimentos, de outra natureza, tomando em conta outro marco temporal, o TSE não protege a Constituição, não tutela o processo eleitoral, nem fiscaliza a adequada aplicação da Lei das Inelegibilidades. Ao contrário, restringe direito fundamental, fora da hipótese legal e fragiliza o processo democrático que a tanto custo defendeu nos últimos tempos.
E que não se argumente que Deltan já tinha tido dois PADs julgados contra si pelo CNMP, em 2019 e 2020, ou que seu companheiro de MPF e Lava Jato havia sido penalizado com demissão. Tudo isso é verdade. Mas os PADs de Deltan já tinham sido julgados pelo CNMP. E estavam com seus efeitos suspensos por decisão do STF.
Aquilo que nos acostumamos a ouvir, ler ou chamar de República de Curitiba, Lava Jato, ou juízo universal da 13ª Vara Federal de Curitiba, tem de ter nos dado uma lição. Não há Direito fora da Constituição e do devido processo legal. Não há processo justo ou com pretensão de justiça quando os fins justificam os meios, pois o processo é justamente quem regula e limita o exercício do poder pelo Estado. Não há devido processo legal com mitigação de regras jurídicas, constitucionais ou legais.
Devemos aprender com os erros e abusos do MPF, da Lava Jato, como bem vêm mostrando pesquisas sérias como a de Fabiana Alves Rodrigues, Fábio Kerche, Marjorie Marona, Rafael Viegas, entre outros. Sobretudo depois do que foi descoberto com a Vaza Jato, revelada pelo The Intercept Brasil. Não é possível alcançar justiça praticando injustiça. Não é flexibilizando a Constituição que garantiremos direitos. Não é torcendo regras que iremos evitar repetições de erros.
Não precisamos gostar ou concordar com Deltan, pasmem, juntando-se à famiglia Bolsonaro e seus asseclas mais radicais. Nem tampouco precisamos gostar ou concordar com a Lava Jato que ele tanto defende. Mas podemos e devemos respeitar a Constituição e as leis. Ninguém está acima delas. Nem quem achou que estava e que podia fazer delas o que bem entendesse, fosse ontem Deltan Dallagnol, seja hoje o TSE. O STF poderá corrigir o erro. Espero que não insista nele.