Descentralização federativa nem sempre significa mais democracia

JOTA.Info 2023-07-10

Um dos argumentos mais fortes para se opor à reforma tributária reside no fato de que ela retiraria de estados e municípios o poder de definir alíquotas e, portanto, ter margem de manobra sobre a arrecadação. Tratar-se-ia, portanto, de uma violação da lógica da democracia liberal em que arrecadação de impostos deve estar vinculada à representação. Obviamente, Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais continuarão a existir, mas sem poderes diretos sobre a política fiscal referente a bens e serviços respectivamente.

Numa economia ainda globalizada, porém, importa mais reduzir os custos de transação, que hoje são altíssimos para qualquer firma operando no território nacional haja vista a existência de várias alíquotas e tributos que demandam das empresas tempo e, portanto, gastos sem precedentes com atividades tributárias no mundo. São necessárias 1.501 horas de trabalho por ano para calcular os impostos devidos. O segundo colocado no ranking, a Bolívia, soma dois terços desse total de horas, que é seis vezes a média mundial.

Mais burocracia, maiores as chances de haver sonegação (voluntária ou involuntária) e, assim, menor a eficiência do Estado e a entrega da infraestrutura necessária ao progresso material — fator fundamental, embora não-exclusivo, em assegurar a legitimidade democrática ao longo do tempo. Desta forma, a reforma tributária pode contribuir para que sobretudo a classe empresarial valorize mais o regime democrático no seu sentido mais amplo, além da existência de eleições livres e competitivas, englobando ainda a efetivação de direitos individuais e coletivos — tais como saúde e educação, os quais reverberam num ambiente mais produtivo.

No entanto, a discussão sobre democracia e federalismo vai muito além de aspectos tributários. Enquanto houver descentralização na entrega de políticas públicas — educação e saúde sobretudo —, a autonomia de estados e municípios estará respeitada. Isso, todavia, não significa ausência de padrões nacionais mínimos que devam ser seguidos por cada ente federativo. O problema reside quando brechas na legislação — que sempre existiram e devem estar presentes para o bem do equilíbrio de forças políticas necessários a evitar a tirania da maioria — dão espaço a experimentos que, para ser elegante, flertam com as tentações autocratizantes.

Nesse sentido, cabe acompanhar os efeitos da lei de Santa Catarina, promulgada em fevereiro passado, que versa sobre a educação no Estado e, segundo o Sindicato dos Trabalhadores em Educação do Estado (Sinte-SC), constrangeria a liberdade de cátedra de professores. O estado figura entre aqueles onde Jair Bolsonaro (PL) atingiu a maior proporção de votos no segundo turno das eleições presidenciais de 2018 e 2022.

Na esfera jurídica, também é importante para o equilíbrio entre autonomia federativa e representação democrática o debate no Supremo Tribunal Federal (STF) acerca da constitucionalidade do piso nacional para profissionais de enfermagem. Conforme reportagem do JOTA, “[o]s ministros afirmam que o STF sempre respeitou o poder e a liberdade do Congresso para fixar pisos salariais nacionais, mas que a possível generalização dessa prática ‘coloca em risco o princípio federativo e a livre-iniciativa’”.

Não há fórmula pré-definida que assegure a existência de um regime federativo de fato e manutenção de direitos individuais e coletivos contra a erosão democrática. Nos Estados Unidos, o federalismo que permitiu a estados e cidades manterem-se compromissadas com as metas do Acordo de Paris nos anos Trump é o mesmo sistema que abre margem a regras eleitorais que, na prática, dificultam minorias raciais a exercerem o direito a voto e, na Flórida, levou à restrição no acesso por parte de estudantes a livros com temáticas ditas progressistas.

Na falta de estudos que permitam uma conclusão mais assertiva, pode-se adaptar o velho adágio sobre o poder ao federalismo e à centralização política: ambos, se exercidos de maneira absoluta, corrompem a si mesmos e, portanto, a própria democracia.