Argentina se volta à direita às vésperas da escolha de candidatos presidenciais
JOTA.Info 2023-08-04
Insegurança. Se tivéssemos que escolher uma única palavra para definir a Argentina, talvez esta seria a mais adequada. Se durante o século 20 pensar a instabilidade no país vizinho significava se referir à sua política, marcada por diversos golpes de Estado, nas primeiras décadas do século 21 a palavra está atrelada principalmente à sua economia decadente. Esse é fator decisivo para explicar os destinos de nosso principal vizinho no atual ciclo eleitoral, que começa no próximo dia 13 com as eleições primárias obrigatórias para definir os candidatos que vão disputar a sucessão de Alberto Fernández, do Partido Justicialista, de centro-esquerda, em outubro.
Desde 2003, quando Néstor Kirchner foi um dos candidatos justicialistas e assumiu a Presidência, o governo argentino foi ocupado por apenas dois polos: de um lado os aliados da família Kirchner – os “K”, como são chamados por seus críticos –, do outro, os liberais de Juntos por el Cambio, durante o mandato de Mauricio Macri, de centro-direita. Ambos os lados tentaram soluções para o mais grave problema argentino: a inflação, que em junho passado bateu a marca de variação de 115,6 %, chegando a acumular um aumento de 50,7% no primeiro semestre de 2023.
A política acompanha a economia: quando esta vai mal, o governo segue a tendência e torna-se impopular. Assim, os argentinos demonstram insatisfação com seus mandatários desde o início da década de 2010, o que levou Macri ao poder em 2015 como uma promessa concreta de mudanças. Quatro anos depois, entregou o governo com a inflação mais alta desde 1991, na casa dos 50% de aumento anual.
Agora, quatro anos após os justicialistas — herdeiros do populista Juan Domingo Perón — terem voltado ao poder, Fernández — encarado por muitos como um mero fantoche da ex-presidente e atual vice-presidente Cristina Kirchner — vê a credibilidade de seu partido se abalar ao legar a seu sucessor ou sucessora uma situação econômica ainda mais grave do que quando assumiu. A deterioração econômica argentina atingiu um ponto em que o atual presidente sequer busca a reeleição.
Segundo pesquisa publicada no jornal La Nación nesta quinta-feira (3), o bloco oficialista Unión por la Patria está em segundo lugar na disputa, com 30,4% das intenções de voto, sendo que o pré-candidato Sergio Massa concentra 25,5% do eleitorado, enquanto Juan Grabois se mantém bem atrás, com 4,9%. Juntos por el Cambio atrai 33% do eleitorado, divididos entre Patricía Bullrich (18,7%) e Horacio Larreta (14,3%). Em terceiro lugar está o bloco La Libertad Avanza, cujo único candidato, Javier Milei, jovem político de extrema direita, alcança significativos 20% do eleitorado.
Caso essa configuração se confirme nas eleições primárias de 13 de agosto — durante as quais os candidatos para o pleito de outubro serão definidos —, o cenário se tornará ainda mais complicado para o bloco governista. Isso porque Larreta, o segundo colocado na coalizão de direita, apresenta um posicionamento liberal mais próximo de Macri, menos radical e mais democrático. Já entre Bullrich— que lidera as intenções de voto no campo liberal — e Milei existe uma maior proximidade de ideias. Assim, caso Bullrich confirme seu leve favoritismo, os eleitores de Milei tendem a migrar para a candidata por pragmatismo até mesmo antes do segundo turno, previsto para novembro.
Ex-ministra de segurança de Macri, Bullrich promete reformas sociais e trabalhistas rápidas, além da possibilidade de adoção do “bimonetarismo”, incorporando o dólar como moeda oficial. A candidata ainda defende outros temas caros à direita, como a independência do Banco Central, o fim de diversos programas sociais, o combate duro a paralisações e greves e a redução da maioridade penal para 16 anos. Em relação à liberação do porte de armas, a candidata, porém, afasta-se das afinidades com a agenda da extrema direita, defendendo que o Estado continue sendo o responsável pela segurança
Milei, por sua vez, apresenta uma série de pautas semelhantes a outros candidatos de extrema direita ao redor do mundo: combate ao que chama de “comunismo”, ao aborto e descrença quanto às mudanças climáticas. De qualquer forma, uma coisa é clara: o eleitor argentino está insatisfeito e o pleito tende a se decidir a partir da rejeição mais que por uma adesão ideológica aos candidatos.
No imaginário argentino, assim como no contexto brasileiro de 2018, está presente a percepção de que um governo que comande o país com “mão de ferro” seja capaz de resolver seus problemas. Nesse sentido, a posição de Bullrich pode apontar para uma tendência em outras eleições na América Latina: uma direita “linha dura” que transita entre o liberalismo e a extrema direita que ganhou terreno nos últimos dez anos. No Brasil, o governador de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo), se encaixa nesse perfil.
Uma explicação plausível para a direita adotar posturas ainda mais rígidas em relação à agenda econômica e social advém da necessidade de atrair aqueles eleitores simpáticos à extrema direita. Conforme os casos de Brasil e Estados Unidos bem ilustram, as forças à direita vêm se adaptando às mudanças do cenário político: enquanto as facções liberais modernizam e abraçam ideias progressistas na pauta cultural-social, aqueles que flertam com a “linha dura” apresentam postura dúbia, combinando liberalismo econômico e reacionarismo em questões comportamentais.
Seria apressado dizer que Bullrich é uma candidata de extrema direita. Apesar de expor posicionamentos que se aproximam de uma “política do ódio”, ela procura se afastar desse rótulo ao demarcar diferenças com Milei em questões mais sensíveis, como o porte de armas. Se vencer, terá de dar soluções eficazes para os problemas econômicos urgentes. Assumirá o cargo máximo de um país quebrado, rumo a uma crise igual ou pior que a de 2001, que levou à queda do centro-direitista Fernando de la Rúa com apenas dois anos de mandato.
Para nós, brasileiros, as eleições argentinas oferecem um recado claro: o descuido com a economia pode dar espaço à “linha dura” da direita, seja ela na versão “sapatênis”— sem explicitar seus instintos mais primitivos — seja no modo Milei, considerado o Bolsonaro dos hermanos.