O dia em que esquerda, centrão e direita uniram-se para atacar as instituições

JOTA.Info 2023-09-22

Imagine, caro leitor, que num mesmo dia a presidente do partido do presidente da República, uma bancada de políticos pragmáticos e a extrema direita fazem declarações atacando instituições essenciais para a sobrevivência da democracia num país que há quase um ano sofreu uma tentativa de golpe de Estado. Para você, esse país está com a democracia consolidada?

Depois de 21 de setembro de 2023, os diagnósticos sobre os quase 35 anos de vida constitucional pós-ditadura são pouco alvissareiros. Em sessão na Câmara dos Deputados para debater a proposta de emenda constitucional (PEC 9/23) que anistia partidos políticos de irregularidades no uso do fundo partidário e cumprimento de cotas para minorias, a deputada federal pelo Paraná e presidente do PT, Gleisi Hoffmann, defendeu o fim da Justiça Eleitoral. Na prática, cerrou fileiras com a bolsonarista Bia Kicis (PL-DF).

No mesmo dia, a bancada ruralista — que tende à direita, mas cujo pragmatismo coloca-a junto ao centrão — bradou contra a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que considerou inconstitucional a aplicação do marco temporal para terras indígenas. Ou seja, territórios reivindicados por povos originários após a promulgação da Constituição de 1988 poderão ser reconhecidos como reservas — pelo menos se o agro e seus aliados não conseguirem passar uma lei estabelecendo o contrário.

Por fim, aquilo que já era possível intuir emergiu pela primeira vez de modo contundente. Segundo o ex-ajudante de ordens Mauro Cid, o então presidente Jair Bolsonaro (PL) tentou articular com as Forças Armadas um golpe de Estado, que incluiria a prisão de adversários e membros do Judiciário. O então comandante da Marinha, almirante Almir Garnier, teria aderido ao plano e até mesmo colocado tropas à disposição. No mínimo, os demais chefes militares deviam ter dado voz de prisão ao presidente e ao almirante por tentar levar o plano até o fim. Segundo reportagem do Valor Econômico, o comandante do Exército, general Freire Gomes, teria dito a Bolsonaro: “Se o senhor for em frente com isso, serei obrigado a prendê-lo”.

A participação de militares nas maquinações golpistas de Bolsonaro já era evidente na leniência em relação aos acampamentos levantados em frente a instalações das Forças Armadas país afora. Porém, o depoimento de Cid eleva a questão a um novo patamar, pois tem o potencial de levar oficiais da ativa para a lama.

Lama, aliás, é uma metáfora óbvia, ainda que precisa, para retratar o atual estágio da democracia no Brasil: ela está atolada no lamaçal de pretensões autoritárias que vêm sobretudo da direita, mas não são exclusivas desse lado do espectro político. Não há dúvidas de que o aperfeiçoamento das instituições passa pela crítica pública a seus eventuais desvios.

No entanto, o que se viu em 21 de setembro representa a convergência de representantes de diversos pontos no espectro político em propostas de subversão da ordem constitucional democrática. Gleisi, que horas depois fez um mea-culpa e relativizou o fato de ter dito que a existência da Justiça Eleitoral era um absurdo, talvez não saiba, mas antes da existência do órgão, as oligarquias da República Velha praticavam a chamada degola, prática que consistia em proibir deputados potencialmente opositores de tomar posse no Congresso Nacional.

A degola era exercida pela Comissão Verificadora de Poderes. Segundo o verbete sobre o tema no site do CPDOC, a Escola de Ciências Sociais e História da Fundação Getulio Vargas (FGV), “[n]a ausência de uma justiça eleitoral autônoma, configurou-se uma prática política em que os Executivos estaduais controlavam as apurações locais, ao passo que o Legislativo, ao levar a cabo um ‘terceiro escrutínio’, detinha a palavra final no momento da diplomação da qual dependiam as posses”.

Se o Brasil é a única democracia que tem uma Justiça Eleitoral — outros países têm apenas comissões eleitorais autônomas, sem poder judicial — é porque as forças políticas não têm condições de atingir um consenso para realizar eleições livres. O fim da estrutura atual de organização de pleitos no país representaria o risco de retorno ao Brasil pré-1930 — um Estado fraco, oligárquico, em que os representantes eram escolhidos por processos fraudulentos.

As oligarquias ainda estão aí, apresentando-se sob um verniz liberal que não resiste à menor exposição à luz dos fatos. O ponto fora da curva é alguém voltar ao poder derrotando notórios golpistas e cerrar fileiras com eles. O contexto atual sugere a necessidade de construir para 2026 uma alternativa a PT e PL nas eleições presidenciais. A democracia não pode depender das ambiguidades do primeiro e, obviamente, dispensa o golpismo que o segundo abraça sem pudores.