Candidato de extrema direita na Argentina ganha votos com campanha emocional

JOTA.Info 2023-10-02

O deputado Javier Milei, de 52 anos, é o mais novo fenômeno político da Argentina. Considerado um outsider, ele concorre à Presidência do país vizinho pela primeira vez e vem angariando os votos dos milhões de insatisfeitos que se revoltam contra a falta de oportunidades de trabalho, a desvalorização do peso e a inflação galopante, que já ultrapassa um índice anual de 120%.

No debate deste domingo (1º), o candidato se deu ao luxo de contestar que 30 mil pessoas desapareceram ou foram mortas pela última ditadura militar argentina, entre 1976 e 1983. A quantidade de vítimas é estimada por organizações de direitos humanos e conta com respaldo acadêmico. O Registro Unificado de Vítimas do Terrorismo de Estado aponta para 8.631 mortos e desaparecidos, embora reconheça que o número está muito aquém da realidade.

Numa postura negacionista, Milei afirmou que apenas 8.753 pessoas teriam tido suas vidas ceifadas pelo regime autoritário — que implementou uma política econômica liberal, com privatizações em massa e desmonte do Estado. Trata-se de uma lógica que, guardadas diferenças históricas, se assemelha ao que o candidato propõe para tirar a Argentina do buraco. Em tese, bastaria reduzir o tamanho do Estado para que todos os problemas se resolvessem num passo de mágica.

Apresentando-se geralmente despenteado, de jaqueta de couro e com uma música em crescendo que busca despertar a emoção dos argentinos, o candidato de extrema direita não hesita em atacar a classe política, colocando-a como inimiga do bem-estar dos hermanos. Nesse plano, Milei busca se colocar fora do campo político e criar uma identificação com o “povo”, deixando de lado as diferenças e complexidades que essa palavra envolve.

Quando se trata do simbolismo que perpassa o mundo da política, pouco importa se o que Milei busca ser ou dizer seja verdade ou não: o importante é produzir o efeito desejado, qual seja, o de atrair o eleitorado. Foi o que ele fez ao contestar os números de mortos e desaparecidos pelo regime de 1976-1983. E as pesquisas indicam que ele vem sendo bem-sucedido na tarefa ainda que no último levantamento, publicado no fim de semana passado, o candidato governista Sergio Massa apareça numericamente à frente do autointitulado anarcocapitalista.

Para os brasileiros, essa imagem do político outsider, que luta contra tudo e todos, prometendo um novo país, está desgastada. Após quatro anos de governo de Jair Bolsonaro, no qual o ex-presidente fechou acordos com o centrão e se envolveu em práticas suspeitas, apenas seus eleitores mais radicais acreditariam em seu sebastianismo de meia tigela. Mas para os argentinos parece que isso é novidade.

É também sinal de desespero. Após 20 anos sendo governados por partidos de centro-esquerda (quatro mandatos) e pela centro-direita (um mandato), o país se vê preso em uma crise econômica que não só parece eterna, como vem sendo agravada nas últimas duas gestões, com o nível de pobreza em torno de 40%. Nestes momentos, a forma como o candidato se conecta com a emoção dos eleitores costuma ser mais decisiva que os argumentos racionais para a sua eleição.

Milei e sua equipe sabem disso e, para vencer as eleições na Argentina, se utilizam das mesmas técnicas que vêm sendo utilizadas desde o Movimento Cinco Estrelas na Itália, passando pelas eleições de Donald Trump e Jair Bolsonaro: o discurso antissistema através das redes sociais digitais. Seja WhatsApp, Telegram ou TikTok, pouco importa: em um universo no qual os canais televisivos não possuem mais a mesma força de décadas atrás, o fundamental é correr por vias alternativas à chamada “mídia hegemônica”, com a vantagem de não passar pelos mesmos controles de qualidade e checagem de informações.

Assim como Trump e Bolsonaro, Milei transmite a imagem de “desajustado” e “rebelde”. Essa construção midiática contribui para criar uma identificação entre eles e seus eleitores, que também se veem à margem da vida política e social. Tal como Trump e Bolsonaro, a conexão de Milei com o eleitorado é maior entre os jovens e, principalmente, homens heterossexuais que se sentem ameaçados pelas demandas feministas e da população LGBTQIA+, associadas à chamada “esquerda identitária”.

No plano econômico, Milei se apresenta como um libertário, o que se reflete no nome de seu partido, La Libertad Avanza. Para muitos, inclusive economistas, suas propostas são vistas como polêmicas e vão desde a dolarização da economia até a liberação da venda de órgãos, passando pela abstenção do Estado em regular os campos da saúde e da educação. No entanto, em relação ao aborto, Milei se posiciona como contrário, o que indica um aceno do candidato a setores mais conservadores da população.

Em nível regional — ou mesmo global —, o favoritismo de Milei indica que a extrema direita segue viva no continente. Aliás, talvez estejamos diante de uma nova onda de candidatos que apresentam características similares. Já é amplamente conhecido que tais candidatos refletem a descrença dos eleitores nos sistemas políticos democráticos liberais, mas pouco se tem feito para escutar e responder às demandas dos setores sociais que se veem à margem da vida política e do Estado de bem-estar social. As redes têm o poder de conectar estes eleitores e ampliar o alcance de suas insatisfações com o sistema político atual.

Trump, Bolsonaro e agora Milei escutaram e compreenderam a linguagem dos que se ressentem da ausência de centralidade na sociedade e descobriram algo que os setores progressistas e até mesmo conservadores republicanos parecem deixar em segundo plano: não importa se o que é dito faz sentido ou é verdadeiro, basta falar a mesma língua e ganhar pela emoção.

Se as intenções de voto continuarem como estão, Milei será o novo presidente e os argentinos descobrirão que a emoção pode ganhar o voto, embora tenha pouco efeito para resolver os problemas sociais. Na maioria das vezes, essa história termina em tragédia.