Extremismo, inteligência artificial e democracia em perigo
JOTA.Info 2024-01-08
Escrevemos este texto às vésperas das movimentações de repúdio ao dia da infâmia, no qual ocorreram os ataques abjetos à democracia, registrados em 8 de janeiro de 2023, lembrando, com alívio, que o Brasil faltou ao encontro marcado com o golpismo. As ações violentas, contudo, deixaram marcas que não podem ser ignoradas.
Em rápido olhar para trás, voltando algumas décadas na história, de tempos em tempos ocorrem ações criminosas contra a democracia, com resultados catastróficos, e quase sempre com as mesmas práticas: a disseminação do medo, a manipulação da verdade, o aparelhamento de grupos armados para perseguição de adversários e o uso de algum ferramental tecnológico para distribuição das ações nefastas.
O nazifascismo, por exemplo, orquestrado pelo medíocre cabo do exército alemão que se transformou no Führer, exterminou milhões de pessoas, contou com tecnologias emergentes como o rádio e o cinema, fez das fake news uma arma de manipulação das massas e se valia de milícias paramilitares como as Sturmabteilung (SA), sucedida pelas Schutzstaffel (SS). Tudo para garantir a imposição do medo com a banalização de violações contra qualquer pessoa que se opusesse ao regime, usando a destruição de reputações e a espionagem para controle e extermínio de adversários políticos.
A diferença experimentada nesse novo século, que revela o extremismo bastante ativo pelo mundo, envolve o uso das plataformas sociais estruturadas pela inteligência artificial algorítmica, que se alimentam dos dados das pessoas usuárias das novas tecnologias de informação e comunicação disponibilizadas na web.
O extremismo, fenômeno global em rota tortuosa pelo mundo, com modus operandi padronizado, que busca o poder ilimitado com o nítido propósito de facilitar a ascensão dos seus líderes autoritários mitificados, que não toleram críticas ou contrapontos, revelou no Brasil sua face extremamente violenta, cujo ápice se deu em 8 de janeiro de 2023, mas não desapareceu.
É fato que, incubado há tempos, numa espécie de vírus que hiberna, se desenvolvia nos subterrâneos da política e acabou por evidenciar a indispensabilidade das redes sociais plataformizadas para se organizar, difundir seus conteúdos e possibilitar a ação de suas milícias, compostas por mercenários pagos com monetização de seus canais de ódio e desinformação ou outras vantagens econômicas e políticas.
Observamos que, nessa busca desenfreada pela tomada do poder, os meios de comunicação de cada época são fortemente utilizados – com preferência para os que permitam maior difusão de conteúdos, possibilitem convocatórias gerais, por vezes com a utilização de códigos para dificultar o controle.
Atualmente, os meios de comunicação tradicionais, até mesmo pela transparência na publicidade de suas ações, métodos investigativos e pessoas envolvidas, recebem um mínimo de regulação, restando bem explicado no ordenamento brasileiro que a liberdade de imprensa é garantida, sem que se admitam, no entanto, o anonimato que impeça desagravo ou reparação, a violação da intimidade, da imagem, da honra e da vida privada. No campo da política, o abuso do poder comunicacional que atinge a liberdade de escolha do eleitorado gera responsabilidade direta para os envolvidos nas práticas delitivas, conforme regramento próprio.
Quando nos referimos às plataformas sociais, cujo modelo de negócio ainda é opaco e resistente à regulação, percebemos que é da sua gênese a segmentação que se transforma em bolhas, que acaba por facilitar a exploração de narrativas e o uso estratégico das emoções para gerar engajamento e aumentar mais e mais acessos e visualizações, turbinados pelos algoritmos preparados para despejar conteúdos.
Nesse campo minado, o problema envolve o marketing político aético, com o uso da inteligência artificial e a robotização da propaganda, distribuída pelas milícias contratadas para ecoar e ampliar cada vez mais rápido narrativas distópicas, com o propósito deliberado e estratégico de desinformar, coagir e desestimular para que seja mas fácil o domínio dos espaços decisórios.
É de se reconhecer que o uso de bots (agentes inteligentes virtuais) por extremistas, para criar narrativas desinformativas e manipular a verdade, adotando mecanismos digitais para assassinar reputações, contaminaram de modo indelével a esfera pública digital e foi decisivo para a eclosão dos atos golpistas de 08 de janeiro. Esta é uma das marcas do período que redundou no dia da infâmia: o uso frenético e incontido das redes sociais para disseminar agressões contra a democracia.
Lembrar dessa praça de guerra sem quaisquer regras coloca na pauta a necessidade de se estabelecerem parâmetros para o uso minimamente seguro das plataformas sociais digitais para a vida cidadã, em que o debate de temas de interesse coletivo, mesmo que com a contraposição de ideias, não seja autorização para a agressão e a morte.
A despeito dessa reconhecida necessidade, há forte resistência das proprietárias das plataformas e tudo isso sem qualquer oferta de regulação alternativa compreensível, sequer adotada internamente para reportar ou apurar condutas ilícitas perpetradas e percebidas pelos algoritmos de filtragem de que dispõem, mitigando os danos causados à democracia, à sanidade e à imagem das pessoas.
Além da violação do dever de cuidado – princípio jurídico universal que impõe a obrigação de se adotarem medidas de prevenção ou reparação dos possíveis danos causados pelos serviços disponibilizados, conforme o Código de Defesa do Consumidor preconiza –, a falta de colaboração com os agentes estatais em busca de apurar ações ilegais para estancar agressões, exibe recusa ao princípio da colaboração e da construção de consensos, estampado no Código de Processo Civil, estendido à legislação penal.
É notável que a corrosão da democracia, com as manipulações levadas a efeito por criminosos que atuam no submundo das redes sociais, mercenários a serviço de grupos extremistas, pode e deve ser enfrentada pela própria tecnologia, com o desenvolvimento de algoritmos rastreadores do discurso de ódio, inibidores da monetização da misoginia, do racismo e da homofobia, fundamentalmente nos períodos eleitorais.
Fluxos de informação adotados por perfis ou grupos de perfis, lançando mão da robotização, para atingir pessoas ou instituições no processo eleitoral, devem ser relatados ao sistema de justiça competente, sob pena de leniência e responsabilidade solidária.
Para cumprimento desse dever, as plataformas deverão programar seus algoritmos para combater a nocividade da agressão à democracia, apresentando as ferramentas disponibilizadas e os termos de uso inteligíveis, com canais de denúncias ágeis e conectados digitalmente aos agentes de fiscalização e repressão aos crimes cibernéticos.
Falamos aqui também de transparência algorítmica, que exige das plataformas informações acerca das fórmulas que se transformam nos algoritmos direcionados aos processos eleitorais. Explicitar os efeitos das fórmulas algorítmicas ao serem transformadas em produtos consumidos, enfim, atende à transparência e explicabilidade como princípios a serem adotados, voluntariamente, sem necessidade de coerção.
Por sua vez, o sistema político deve se comprometer com a ética na propaganda eleitoral na internet, recusando o estratagema das fake news e valorizando o direito do povo se informar por meio de conteúdos de acesso simples, propostas diretas, identificação explícita dos problemas verificados na localidade onde se pleiteiam cargos, respectivas fontes de financiamento das soluções propostas e prazo para sua execução. Tudo isso sem se descuidar do dever de informar o custo da propaganda hospedada em meio digital, o responsável técnico por ela e eventual uso de robôs ou outros elementos de inteligência artificial para distribui-la e em quais canais.
Concluímos, com as marcas deixadas pelo dia da infâmia, que a regulação das relações digitais é um dever, implicando reconhecer que a tecnologia deve servir à sociedade, mas que seu mau uso, com impactos na democracia, causa danos que podem ser irreversíveis. Logo, descuidar desse dever é relegar a democracia a um plano secundário.
Notamos que ocorreu algum abalo da democracia, no mínimo a perplexidade com os danos infligidos a importantes símbolos da República, estimulados pelas manipulações levadas a efeito pelos criminosos que atuavam no submundo das redes sociais, mercenários a serviço dos extremistas que tentaram mergulhar o Brasil no caos, agindo impunemente por muito tempo, sem que houvesse qualquer comunicação das plataformas com as autoridades, numa oferta acrítica dos veículos digitais utilizados nos crimes perpetrados.
Anotar o repúdio aos atos de infâmia todo dia 8 de janeiro é crucial para que não sejam esquecidos, se estendendo a prevenção de ocorrências similares em todos os outros dias do ano para que jamais se repitam.