O futuro das decisões estruturais no Brasil
Consultor Jurídico 2021-10-16
Um leitor assíduo e entusiasta do tema que aqui se busca explorar já é conhecedor que o marco histórico das “decisões estruturais” sucede do direito norte-americano e, ao longo dos últimos anos, vem ganhando contornos no Brasil. No cenário brasileiro, há diversas tentativas de alterações legislativas conduzidas tanto por juristas quanto por decisões proferidas por Magistrados adjetivados, por uns como “vocacionados e visionários”, e por tantos outros como “ativistas judiciais”.
Para os menos habituados com o tema, vale introduzir que a noção de processo estrutural marcou a atuação do Poder Judiciário norte-americano a partir da década de 1950, embora, naquele momento, não tenha existido preocupações com a definição analítica ou a categorização da sistemática desse tipo de atuação das Cortes locais.
O caso que marca este movimento é “Brown vs. Board of Education”, cujo objeto analisado foi a constitucionalidade da avaliação de admissão de estudantes em escolas públicas americanas com base em um sistema de segregação racial.
A decisão proferida foi pela inconstitucionalidade deste sistema, o que resultou na adoção de medidas com vistas à sua efetividade mediante a implementação de mudanças no Sistema Público de educação do país, fazendo surgir o que se se chamou de “structural reform”.
Para o professor americano Owen Fiss, que se dedicou a escrever e estudar este tipo de disputa, o caso “Brown x Board of Education” resultou na imposição pelo Judiciário ao Poder Público de reformas em instituições burocráticas, com o objetivo de restarem atendidos os valores constitucionais até então não tutelados.
De lá para cá, resta evidenciado que, embora haja divergências doutrinárias, a decisão estrutural é aquela que busca implementar uma reforma em um ente, organização ou instituição, com o objetivo de concretizar um direito fundamental mediante a realização de determinada política pública.
Para tanto, parte-se da premissa que a ação, ou omissão, das organizações burocráticas vinculadas ao Estado representaria uma ameaça à efetividade das normas constitucionais, o que se permite chegar à conclusão de que essas organizações, ou esses atos, precisariam ser reconstituídos, ainda que por meio de decisões judiciais.
No entanto, pertinente se ponderar que, no Brasil, ainda que em ao menos uma de suas facetas, tal atuação é vista como “ativismo judicial”, uma vez que a caracterização de omissões ou ações incompletas no cumprimento de preceitos e princípios constitucionais se faz de difícil percepção, em especial em um país que ainda busca a estabilidade política e, principalmente, econômica. Tal visão é que redunda na popularização do pejorativo termo “marginalização” frequentemente utilizado quando de críticas às “decisões estruturais” e ao “ativismo judicial”.
Pois bem, a primeira tentativa legislativa de se normatizar o processo estrutural veio com o Projeto de Lei n.º 5139/09, oriundo do trabalho de uma comissão constituída pelo Ministério da Justiça e composta por representantes do Ministério Público, da Magistratura e acadêmicos, por meio do qual foram propostas novas regras para a ação civil pública no tocante à tutela de interesses difusos. Este Projeto de Lei foi rejeitado pela Câmara dos Deputados ainda em 2010. No entanto, nas ponderações de seu veto fizeram os legisladores constar que não se poderia admitir um aumento nos poderes das instituições de justiça, na forma tal e qual proposta.
A segunda tentativa legislativa de se emplacar o processo estrutural se deu por meio do Projeto de Lei n.º 8058/14, apresentado pelo Deputado Paulo Teixeira, do Partido dos Trabalhadores, cujo objetivo era “[Instituir] processo especial para o controle e intervenção em políticas públicas pelo Poder Judiciário e dá outras providências”. Ou seja, buscava estabelecer, grosso modo, um controle jurisdicional de políticas públicas, fomentando o diálogo entre os Poderes.
A terceira tentativa se deu por intermédio de projetos de lei que novamente tiveram por escopo alterações na Lei da Ação Civil Pública, destacando-se, dentre eles, os Projetos nº 4441/20 e nº 4778/20, este apresentado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Ambos foram substituídos pelo “Projeto de Lei Ada Pelegrini Grinover”, resultado de discussões promovidas pelo professor Kazuo Watanabe e demais membros do Instituto Brasileiro de Direito Processual Civil (IBDP).
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Da análise do processo de “decisões estruturais” no Brasil, verifica-se que, se por um lado, o Poder Legislativo busca, reiteradamente, a rejeição daquilo que se pede vênia para se chamar de “desmarginalização do ativismo judicial”; por outro, as Cortes de Justiças do País continuam sendo, rotineiramente, instadas a tutelar direitos de minorias que não lograram êxito em obtê-los perante os parlamentos, tal como tem acentuando o Ministro Luís Felipe Salomão, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em seu posicionamento sobre o tema[1].
A título exemplificativo, apresenta-se o julgamento de Medida Cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 347, de relatoria do ministro Marco Aurélio, ocorrido em 2015, no Supremo Tribunal Federal (STF).
Nesta ADPF o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) postulou ao Poder Judiciário que fosse o sistema penitenciário brasileiro declarado um “Estado de Coisas Inconstitucional”, pretendendo, com isso, que o judiciário interferisse na criação e implementação de políticas públicas, alocações orçamentárias e na interpretação e aplicação da ordem processual penal, com objetivo de reduzir os problemas da superlotação dos presídios e demais condições degradantes do encarceramento.
Nos termos do voto do Relator, dentre outras disposições, constou a ordem à União para a liberação do saldo acumulado no Fundo Penitenciário Nacional para a utilização, exclusiva, ao fim para o qual fora criado.
Evidentemente que desta ADPF e do voto do Ministro Marco Aurélio saíram diversas ponderações que merecem reflexões, dentre as quais destacam-se a necessidade de observância pelo Poder Judiciário da separação dos Poderes e a urgência de se repensar o papel do Judiciário, sobretudo para se potencializar questões já garantidas pela legislação, ainda que nunca implementadas.
Tais ponderações permitem se reconhecer que, ainda que “desmarginalizado”, o ativismo judicial deverá se pautar pela necessidade da criação de Varas Especializadas, compostas por Magistrados detentores de conhecimentos acerca da organização da Administração Pública e do Orçamento Público, portanto, aptos a realizar a análise das especificidades da gestão da coisa pública ante o interesse público.
No entanto, esta reflexão somente se fará possível depois que tomada a decisão, quiçá pelo próprio Poder Judiciário, apta a resolver a indagação que serve de título a este artigo.
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ARENHART, Sérgio Cruz. Decisões estruturais no direito processual civil brasileiro. In: Revista de Processo, São Paulo: Revista dos Tribunais. v. 38. nov. 2013. p. 389-410.
DIDIER JUNIOR, Fredie; ZANETI JUNIOR, Hermes; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Elementos para uma teoria do processo estrutural aplicada ao processo civil brasileiro. In: ARENHART, Sergui Cruz (org.); JOBIM, Marco Félix (org.). Processos Estruturais. 3. ed. Salvador: Juspodium, 2021, p.423-461.
FISS, Owen. To make the Constitution a living truth: four lectures on the structural injunction. In: ARENHART, Sergui Cruz (org.); JOBIM, Marco Félix (org.). Processos Estruturais. 3. ed. Salvador: Juspodium, 2021, p.31-55.
GABBAY, Daniela Monteiro; COSTA, Susana Henriques da; ASPERTI, Maria Cecília Araujo. Acesso à justiça no Brasil: reflexões sobre escolhas políticas e a necessidade de construção de uma nova agenda de pesquisa. In: Revista Brasileira de Sociologia do Direito. v. 6. n. 3. set-dez. 2019. p.152-181.
[1] Palestra realizada na XXIII Conferência Nacional da Advocacia Brasileira, em 27 de novembro de 2017, em São Paulo.