Homem é condenado criminalmente por dizer que prefeita tem ‘cabelo de bozo’
Consultor Jurídico 2022-11-14
A 5ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) condenou um homem por injúria por ele ter chamado de “peruca de bozo” e “cabelo de bozo” a prefeita de Lucélia, no oeste do estado de São Paulo, Tatiana Guilhermino Tazinazzio.
Os desembargadores consideraram que houve intenção de ofender a dignidade da política e impuseram pena de um mês e 23 dias de detenção, em regime semiaberto. O processo é o 0001690-27.2021.8.26.0326.
A prefeita alega que foi ofendida publicamente no Facebook, em uma postagem na qual o homem se referia a ela pelo apelido. Ela diz que entendeu a expressão como um ataque pessoal, e não mera crítica ao exercício do cargo.
Segundo Tazinazzio, as referências ao palhaço eram frequentes. Ela conta que, após a eleição, os dois estiveram em uma fazenda para comemorar a vitória. Foi quando o réu se aproximou, a chamou de “peruca de bozo” e na sequência manifestou parabéns com um abraço: “A vitória é sua!”, teria dito ele.
A prefeita registrou um boletim de ocorrência sobre o ocorrido em 1 de dezembro de 2021. Quinze dias depois, o Ministério Público denunciou o homem à Justiça.
Em juízo, ele admitiu que se referia à vítima pela expressão, por conta da cor do cabelo dela e do penteado. Mas afirmou que nunca teve a intenção de injuriá-la e que acreditava ter liberdade com a mandatária.
“[O réu] considerava privilégio a comparação ao personagem Bozo, por se tratar de figura presente na infância”, narram os autos.
O relator na 5ª Câmara, Tristão Ribeiro, entendeu que há “robusto conjunto probatório” e que “não restam dúvidas do cometimento do delito pelo acusado, que, de forma pejorativa, postou na rede social Facebook, de acesso irrestrito aos usuários, comentário chamando a vítima de “peruca de bozo, cabelo de bozo”, com o claro intuito de lhe ofender a dignidade”.
Ao embasar o voto, acompanhado pelos desembargadores Geraldo Wohlers e Claudia Fonseca Fanucchi, Ribeiro reproduziu trecho da decisão de primeira instância: “(…) diversamente do apontado pelo réu em sede de autodefesa, não é possível vislumbrar qualquer privilégio na atribuição da pecha ‘peruca de bozo’, seja pelo contexto das postagens, seja pela figura representada pelo personagem Bozo. Pelo contrário, a expressão utilizada revelou a vontade deliberada e consciente de ofender dignidade e o decoro da vítima, constrangendo-a e humilhando-a”.
Para o pesquisador Marco Antonio Sabino, do Instituto de Liberdade Digital (ILD), o caso é, de certa forma, limítrofe. “Afinal de contas a prefeita está em um cargo público. Já temos uma construção jurisprudencial, técnica, no sentido de que essas pessoas têm os direitos a personalidade mais restrito que outras pessoas, de modo que elas estão mais sujeitas críticas”.
Ele considera que a utilização da esfera criminal é equivocada e é uma forma de inibir qualquer crítica à prefeita. “Considero que seja uma estratégia inibitória. Gerar uma condenação criminal eu acho que é demais e o efeito que todas as pessoas que tiverem contato com o assunto, as mais bem informadas, que são capazes de criticar a prefeita, vão sofrer uma restrição do discurso. Quando elas pensarem em falar algo, elas simplesmente não vão falar, porque essa é a mensagem da decisão”, diz o pesquisador.
Sabino ressalta que decisões do mesmo teor têm sido tendência no TJSP, nos últimos anos. “O TJSP tem se mostrado um tribunal bastante pendente para a restrição das liberdades e o controle das liberdades. Ele dá mais atenção aos direitos que conflitam com a liberdade de expressão, como privacidade, honra e imagem”.
O advogado André Marsiglia, especialista em liberdade de expressão e consultor jurídico da Repórteres sem Fronteiras, entende que, pela descrição feita nos autos, a fala do autor está coberta pela liberdade de expressão e, portanto, a condenação é incabível.
“Me parece que, neste caso, só duas coisas poderiam tornar a condenação viável: a existência do dolo, que não me pareceu comprovada, e a demonstração que esse dolo se referia a uma questão racial, o que também não me pareceu comprovado. Da forma como o caso se constrói, o autor pode se considerar coberto pela liberdade de expressão. Se comprovado dolo e se comprovado a ofensa contida em uma questão racial, aí a situação pode mudar”, opina.
Para o advogado, porém, qualquer discussão a respeito do caso deveria ser travada exclusivamente na esfera cível, jamais na penal.
“A utilização da esfera penal eu entendo como lamentável. Não se deve utilizar a esfera penal em casos desse tipo, porque ela serve unicamente como instrumento de intimidação. Isso pode ser muito bem resolvido pela esfera cível”.
Marsiglia diz notar um aumento substancial do uso da esfera penal por parte de políticos para intimidar e constranger, principalmente contra a imprensa. Segundo ele, é preciso que os juízes se atentem cada vez mais à intenção dos autores das ações.
“É preciso existir uma conscientização da intenção desses autores. Quando tratamos de liberdade de expressão, precisamos perceber que a utilização de polícia ou da esfera criminal são limites que não devemos ultrapassar. Temos que ser absolutamente críticos a essa situação. As críticas a pessoas públicas são possíveis e desejáveis. Para reforçar isso, precisamos de uma educação jurídica para liberdade de expressão. É um processo longo, árduo, mas que precisa ser construído em uma democracia”.