Um tributo aos valores de um dos maiores homens públicos da história do Brasil
Consultor Jurídico 2022-11-20
Péricles (495-429 a.C.) dizia, em sua famosa Oração Fúnebre, que o mais importante nesta vida não são os monumentos de pedra que deixamos ao mundo, mas sim os valores que conseguimos imprimir nas almas das outras pessoas. Os grandes homens e as grandes mulheres são aqueles que continuam a inspirar positivamente a vida das pessoas, pela força dos seus valores e a solidez do seu exemplo, mesmo séculos depois de terem deixado esta vida. São esses os indivíduos que constroem civilizações.No último dia 15 de novembro, data de comemoração da Proclamação da República, tive a honra de realizar uma peregrinação às Missões Rio-Grandenses, acompanhado de um grande amigo, o jurista Paulo Joel Bender Leal, e de sua esposa, a também advogada Irene Kulakowski, para, a convite da Prefeitura de São Luiz Gonzaga/RS, participar da reinauguração do Museu Senador Pinheiro Machado, dedicado à preservação da memória do tio-trisavô deste escriba. O museu está abrigado em um palacete de época, doado pelo senador à cidade e situado em uma das charmosas esquinas da sua bela Praça da Matriz. Do outro lado praça está a catedral, no interior da qual se encontra uma inestimável coleção de esculturas sacras do período jesuítico-guarani (ca. 1682-1767), incluindo a famosa imagem de São Luiz Gonzaga, padroeiro da cidade.Líder abolicionista e republicano, o senador José Gomes Pinheiro Machado (1851-1915) foi o consolidador civil da República brasileira e sua eminência parda por mais de um quarto de século. Pinheiro Machado encarnou, na passagem para a República, o Poder Moderador oriundo do Império. Detentor de um enorme prestígio, o “quero-quero dos pampas”, como era conhecido na imprensa, tornou-se o árbitro último da política nacional. A sua enorme influência, contudo, não era fruto apenas de sua capacidade ímpar como negociador, tal qual seria natural que a leitora assim pensasse. Não, eram outros tempos, e naquela época a influência era conquistada pela admiração e o respeito que a conduta dos homens públicos inspirava nas outras pessoas.Pinheiro Machado, na avaliação de Gilberto Freyre, foi o último dos românticos em nosso país. Era um homem para quem o sentido da vida estava em derramar o seu sangue e oferecer o seu corpo em sacrifício a serviço da pátria e do povo brasileiro. Ainda adolescente, aos 14 anos, junto com seu irmão Paulino, foge da Escola Militar do Rio de Janeiro para se alistar incógnito no Batalhão de Voluntários da Pátria durante a Guerra do Paraguai (1864-1870), na qual foi condecorado por bravura. Anos mais tarde, durante a Revolução Federalista (1893-1895), licencia-se de sua cadeira no Senado para organizar a famosa Divisão do Norte, criada e mantida com recursos privados seus. Pinheiro rejeitou diversas ofertas de auxílio financeiro do governo federal e somente permitiu que seus homens recebessem soldo público depois que a luta havia de espraiado para o estado de Santa Catarina. Em território gaúcho, seu estado natal, não aceitou um tostão de dinheiro público. Ele também nunca aceitou um cargo executivo nem nunca disputou uma eleição que não fosse para o senado. Era homem de contribuir, não de receber.E essa sua característica está indelevelmente marcada na cidade de São Luiz Gonzaga, terra que ele, natural de Cruz Alta, adotara para si. Há uma grande quantidade de prédios históricos na cidade que foram doados por membros da família, mas principalmente por ele, dos quais de destacam o palacete que abriga o museu, o grande prédio de uma escola primária, outro que abriga o Instituto de Artes do município e, também, o complexo onde ele fundou o Colégio Agrícola de São Luiz Gonzaga, que foi o precursor da Faculdade de Agronomia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, fundada por um sobrinho seu a quem havia mandado estudar na Europa para trazer para o Brasil os conhecimentos mais avançados das ciências da terra do seu tempo, Dulphe Pinheiro Machado (1885-1972).“Eles deram a ela [à democracia ateniense] a vida, a ela e a todos nós, e para si mesmos ganharam louvores que nunca envelhecem, os mais esplêndidos dos sepulcros – não o sepulcro em que seus corpos são depositados, mas onde sua glória permanece eterna nas mentes dos homens, sempre presentes na ocasião certa para incitar os outros a falar ou a agir. Pois os homens famosos têm toda a terra como seu memorial: não são apenas as inscrições em seus túmulos em seu próprio país que os marcam; não, em terras estrangeiras também, não de forma visível, mas no coração das pessoas, sua memória permanece e cresce. Devemos tentar ser como eles. Estejam convencidos de que a felicidade depende de ser livre, e a liberdade depende de ser corajoso.”
Péricles, Oração Fúnebre
Um dos aspectos mais impressionantes de São Luiz Gonzaga é o alto grau de valorização da população da local da sua história e da sua memória. A cidade conta com seu próprio Instituto Histórico e Geográfico (IHGSLG), que tem uma produção pujante e de altíssimo nível, presidido pela professora Anna Olívia do Nascimento. O IHGSLG conta com um acervo riquíssimo, que inclui muitas obras raras, como a primeira edição das obras completas de Pontes de Miranda, além de reunir os principais artistas e literatos da região, como a poetisa Ivone Ávila.
O instituto trabalha em uma sintonia muito fina com a equipe do prefeito Sidney Luiz Brondani, que se traduz em um trabalho de extrema atenção e carinho pela cidade, que está impecavelmente mantida. A secretária de turismo e cultura de São Luiz, Luiza Caterine Santos Panegalli, juntamente com a vereadora Rose Grings, coordenam um grupo de pessoas apaixonadas pela cidade, que trabalham incansavelmente para que São Luiz mantenha sempre o padrão de excelência que o senador Pinheiro Machado para lá levou durante o esplendor da Belle Époque (1871-1914).
Para o senador Pinheiro Machado os valores de honra, da manutenção da palavra empenhada, da lealdade a um amigo e do respeito aos adversários eram parte da sua postura cotidiana. Durante a belíssima cerimônia de reinauguração do museu, cujo protocolo foi impecavelmente conduzido pela secretária Luiza Panegalli, o prefeito do município de Bossoroca, José Moacir Fabrício Dutra, contou-me que seu bisavô, apesar de federalista, maragato, era muito amigo do senador Pinheiro Machado, líder do partido oposto, os republicanos ou chimangos. Contou-me o prefeito que o senador estava para fazer um negócio de terras com o seu bisavô quando adveio a notícia da eclosão da Revolução Federalista (1893-1895). O senador, ao ter presente a gravidade do momento, disse ao amigo que infelizmente o negócio não poderia ser concluído naquele momento e lhe pediu para se afastar da política, porque teria muito desgosto em lutar de lado oposto ao dele.
História semelhante me foi relatada pela presidente do IHGSLG, a professora Anna Olívia do Nascimento. Segundo a professora, o seu avô também era maragato, mas muito amigo do senador, que, ao ter notícia da eclosão da Revolução Federalista, também teria lhe pedido pessoalmente para não se envolver na contenda e mesmo passar uns tempos na Argentina, porque não queria ter de lutar contra um amigo.
Para o senador Pinheiro Machado, as lutas políticas mais ferrenhas, mesmo aquelas que descambariam para a guerra civil mais sangrenta que o nosso país já sofreu, deveriam ficar sempre circunscritas ao campo de batalha e jamais passar para o lado pessoal. Os laços de amizade e de respeito jamais deveriam ser cindidos por divergências políticas. E o respeito era devido mesmo aos adversários. Ao saber da morte do líder federalista Gaspar da Silveira Martins, adversário histórico da família no Rio Grande do Sul e que perdera duas eleições para deputança-geral do Império para o pai do senador, Pinheiro Machado profere um elogio ao adversário da tribuna do Senado. “O primeiro dever do combatente é respeitar o inimigo abatido”, dizia ele.
Nós, os contemporâneos, ao fim e ao cabo, não passamos de um mero elo na longa corrente que liga as gerações passadas àquelas que ainda estão por vir. E se o traço dos verdadeiros grandes homens, como bem marcou Péricles, está na capacidade de imprimir valores na alma dos outros, valores esses que lhes sirvam de orientação para encontrar o caminho reto a seguir, o senador Pinheiro Machado conseguiu o maior dos feitos: o de imprimi-los não apenas na arquitetura da cidade de São Luiz Gonzaga, mas também na conduta individual de gerações de são-luizenses que com muito carinho e afeto cultivam a memória e o exemplo de um dos maiores homens públicos que este país já teve. Non fortuna homines aestimabo, sed moribus.[1]
[1] “Não estimo um homem pela sua fortuna, mas pela sua conduta” – Sêneca.