Limites do ESG e a importância dos agentes públicos na transição verde brasileira
Consultor Jurídico 2022-12-13
Empresas e investidores resolverão o problema do aquecimento global e outros desafios ambientais? Para responder a essa pergunta, pesquisadores ao redor do mundo têm buscado identificar se iniciativas ambientais, sociais e de governança (ESG, na sigla em inglês) melhoram o desempenho financeiro das firmas[1]. A premissa por que se orientam é simples, apesar de controvertida: se práticas ESG geram valor para negócios, a transição verde será espontaneamente alcançada por decisões corporativas. O quadro ambiental brasileiro, contudo, difere do padrão verificado em outros países. E nossas particularidades levantam dúvidas adicionais a respeito da aposta em atores privados como únicos protagonistas da agenda ambiental.
Segundo o Painel Intergovernamental da ONU sobre Mudanças Climáticas, aproximadamente 79% das emissões globais líquidas de gases de efeito estufa (GEE) em 2019 decorreram dos setores de energia, indústria, transporte e edificações. Essas emissões são altamente relacionadas à queima de combustíveis fósseis e, direta ou indiretamente, podem ser associadas à atuação de grandes companhias, como as de petróleo, mineração e automotivas.
Empresas desse porte geralmente divulgam informações sobre suas atividades e são escrutinadas por investidores e outros grupos. Por serem transparentes, têm maior probabilidade de ver seus resultados comprometidos por perdas reputacionais – por exemplo, vendendo menos produtos –, e penalidades aplicadas pelo Estado em razão de danos ambientais a que deem causa. E, também, têm mais chance de serem premiadas – por exemplo, com custo de capital menor – se conceberem soluções para desafios ambientais.
É em contextos assim que decisões corporativas estão fortemente ligadas à transição verde. Se conservar o meio ambiente aumenta o valor das empresas, seus diretores, incentivados por sua remuneração variável ou pelo receio de serem demitidos, zelarão por isso – os investimentos substanciais de muitas companhias do setor de petróleo em energias renováveis ilustram o ponto[2]. Caso administradores não ajam, abre-se a oportunidade para investidores adquirirem participações em firmas marrons e mudarem seus rumos em busca de ganhos – o que o Engine nº 1, um hedge fund, buscou fazer com a Exxon Mobil, por exemplo. Ainda que não consigam avançar suas propostas por canais internos, em algumas jurisdições, acionistas minoritários podem valer-se de ações derivadas (derivative suits) – como aquela em que a ClientEarth, acionista da Shell, busca forçar a redução de emissões da companhia. Esses e diversos outros atores e mecanismos privados podem, em tese, fazer do mercado o palco central da transição verde.
Decisões corporativas também estão relacionadas a parcela dos desafios ambientais brasileiros. Portanto, debates sobre se iniciativas ESG influenciam o valor de empresas tem relevância para nós. Contudo, o quadro brasileiro tem traços distintivos marcantes, que dão origem a preocupações estranhas às tipicamente exploradas quando se trata da responsabilidade ambiental corporativa.
Em primeiro lugar, as mudanças no uso da terra e florestas – leia-se, o desmatamento ilegal[3] – são um de nossos grandes vilões. De acordo com o Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa, em 2021, aquele fator respondeu por quase metade – cerca de 49% – de nossas emissões de GEE[4].
Acontece que desmatadores ilegais não são grandes companhias, não divulgam informações sobre sua operação e tampouco têm acionistas dispostos a brigar por interesses de longo prazo. Suas receitas costumam ter origens total ou parcialmente ilícitas, como a extração e comercialização irregular de madeira e a criação de gado em áreas proibidas[5].
Nesse cenário, é difícil imaginar que seu “empreendimento” possa ser adquirido por investidores ESG. No caso de terras públicas, onde ocorre parcela considerável do desmatamento, uma aquisição sequer seria possível. É que a lei proíbe sua exploração econômica. Em terras privadas, embora não haja obstáculo legal semelhante, a transição verde espontânea parece improvável. Partindo da premissa de que desmatadores ilegais são agentes econômicos em busca de maximizar lucros, eles apenas abririam mão da exploração das terras desmatadas caso essa opção fosse vantajosa financeiramente. Para que isso acontecesse, seria preciso que ganhos proporcionados por medidas ESG fossem suficientes para superar o retorno esperado pelos infratores tanto com suas atividades legais quanto com as ilegais. Só assim, se as áreas desmatadas valessem mais nas mãos de agentes econômicos verdes do que nas de marrons, todos sairiam ganhando com a transferência da terra destes para aqueles.
Para complicar ainda mais a situação, a reputação perante consumidores, fornecedores e investidores, capaz de disciplinar agentes econômicos, não parece ser uma grande preocupação no caso específico dos desmatadores. Uma das razões para isso é que, em algumas regiões, o fator determinante para a decisão de invadir uma área e desmatá-la é a expectativa de regularização de sua propriedade junto ao governo, o que abre portas para a obtenção de lucro com sua venda. Nesse caso, a reputação é irrelevante financeiramente.
Se, hoje, ferramentas privadas têm baixa eficácia contra a destruição de florestas, o mesmo não se pode dizer de políticas públicas e regulação. Perdas esperadas com multas são um exemplo de fator capaz de manter árvores de pé. Pesquisadores do Núcleo de Avaliação de Políticas Climáticas da PUC-Rio concluíram que, entre 2007 e 2016, políticas de monitoramento e cumprimento da lei evitaram desmatamento em 270.000 km² na Amazônia[6]. Por outro lado, a partir de 2019, a diminuição do investimento público na preservação ambiental está relacionada ao aumento da devastação[7].
Um segundo traço distintivo do quadro ambiental brasileiro é a influência de políticas públicas de direcionamento de crédito sobre atividades agropecuárias – responsáveis por aproximadamente 25% de nossas emissões de GEE em 2021. A depender de como ponderem fatores ambientais, econômicos e políticos, decisões estatais podem ter efeitos ambientais positivos, como um fator-chave para a promoção de práticas sustentáveis[8], ou negativos, induzindo o aumento do desmatamento[9]. Equação igualmente desafiadora decorre do fato de o governo controlar uma grande empresa de petróleo e gás.
Essas circunstâncias não deixam dúvidas sobre a centralidade dos agentes públicos na construção de uma economia de baixo carbono. Elas se somam, portanto, às preocupações praticamente universais com a atuação estatal para eliminar subsídios para atividades marrons, regular o mercado de carbono e a qualidade das informações relativas ao impacto ambiental de decisões de empresas e gestores de ativos, além de corrigir externalidades negativas.
Como essa maior importância relativa dos agentes públicos no Brasil deve repercutir em ações da sociedade, inclusive em práticas ESG? A responsabilidade política corporativa deve ser um tema mais presente aqui do que em outros países? Tal qual na esfera fiscal, deveríamos pensar em instrumentos normativos para impedir ou, ao menos, dificultar, que eventuais governos descomprometidos com a pauta ambiental prejudiquem o futuro do País? Há desafios específicos para que empresas estatais incorporarem fatores ambientais em suas decisões? Como lidar com eles? Essas e outras questões sobre o papel do Estado na preservação ambiental devem ganhar destaque à medida em que os efeitos dos danos ao meio-ambiente se tornem cada vez mais evidentes.
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[1] Também se discute o impacto de práticas ESG em portfolios de ativos, mas essas discussões não parecem ter a mesma relevância para o caso brasileiro. Explorei um pouco mais esse argumento em outro artigo publicado no Jota. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/e-do-esg-nao-e-suficiente-para-regulacao-ambiental-do-brasil-10112021.
[2] The renewable energy strategies of oil majors – From oil to energy? Energy Strategy Review 26 (2019).
[3] O desflorestamento causa uma série de outros prejuízos – por exemplo, para a biodiversidade e a ciclagem de água, crucial para o clima de parte considerável do continente. Ver Fearnside. Desmatamento na Amazônia: Dinâmica, impactos e controle. Fearnside, P.M. (organizador), Destruição e Conservação da Floresta Amazônica, Vol. 1. Editora do Inpa, Manaus, pp 265-272.
[4] Segundo o Observatório do Clima, dificuldades no cálculo de remoções de carbono no Brasil recomendam a utilização de emissões brutas como referência de nosso inventário.
[5] Estima-se que 80% das terras desmatadas na Amazônia sejam destinadas à pecuária extensiva, de baixa produtividade. Verr Skidmore et al. Cattle ranchers and deforestation in the Brazilian Amazon: Production, location and policies. Global Environmental Change Volume 68, May 2021. Sobre fontes de retorno para desmatadores, Fearnside, The Roles and Movements of Actors in the Deforestation of Brazilian Amazonia. Ecology and Society, Vol. 13, No. 1, Jun 2008.
[6] Gandour e Assunção. Policy Brief. Brazil Knows What To Do To Fight Deforestation in the Amazon: Monitoring and Law Enforcement Work and Must be Strengthened. Rio de Janeiro: Climate Policy Initiative, 2019.
[7] Tonin, Xavier e Canabrava identificaram que o orçamento do Ministério do Meio Ambiente e o número de servidores do Ibama são variáveis preditivas do desmatamento na Amazônia. Ver O que explica o aumento do desmatamento na Amazônia? https://bityli.com/GPmNInTUy.
[8] Ver Lopes et al. Crédito rural no Brasil: desafios e oportunidades para a promoção da agropecuária sustentável. Revista do BNDES 25, junho 2016.
[9] Ver Assunção et al. Does Credit Affect Deforestation? Evidence from a rural credit policy in the Brazilian Amazon. Janeiro, 2013. Disponível em https://bityli.com/InOmNBPTO.