Reclamação no anteprojeto de regulamentação da relevância da questão federal no RE

Consultor Jurídico 2023-09-03

É claro o posicionamento restritivo do Superior Tribunal de Justiça (STJ) para o cabimento e processamento da Reclamação. Apesar de ser o meio processual adequado para o controle do precedente judicial qualificado, conforme disposição do art. 988, § 5º, II do CPC/15, após o exaurimento dos recursos cabíveis, o tribunal superior tem refreado o cabimento de reclamação nessa hipótese, desde o julgado da Corte Especial da Rcl 36.476/SP, relatora-ministra Nancy Andrighi, julgado em 05/02/2020, DJe 06/03/2020.[1]

Após, o STJ apresentou mais um julgamento controverso no Agravo Interno no recurso em mandado de segurança 53.790 – RJ (2017/0077579-0), de relatoria do ministro Gurgel de Faria (Sessão Virtual de 11/05/2021 a 17/05/2021), ao determinar o retorno dos autos para o Tribunal a quo para processar e julgar o mandado de segurança lá impetrado, no sentido de apontar o remédio constitucional como via adequada para controle e correção de aplicação equivocada de precedente judicial qualificado em Recurso Especial repetitivo.

Contudo, o mandado de segurança como instrumento de controle de precedente qualificado não se apresenta cabível, mesmo após o julgamento do Agravo Interno. O caminho mais adequado, e com fundamento na própria legislação processual, seria o manejo de reclamação perante o STJ ou STF, porém o próprio tribunal da cidadania blindou essa possibilidade com mais uma prática de jurisprudência defensiva.

O cenário de congestionamento do STJ e a necessidade da redução da carga de trabalho para aprimoramento da prestação jurisdicional pelo STJ impulsionaram a promulgação da EC 125/22[2] que insere o filtro recursal da relevância como requisito de admissibilidade do recurso especial, a exemplo da necessidade de demonstração de repercussão geral no recurso extraordinário. Porém, a aplicação prática do filtro recursal está pendente de regulamentação por lei específica, sendo que apenas há um anteprojeto apresentado pelo STJ, o qual está em tramitação.

Tal anteprojeto não faz referência ao cabimento de reclamação para controle do precedente formado em sede de decisão sobre a existência da relevância da questão federal (o precedente qualificado que deverá ser exarado pelas Seções), apesar da previsão de cabimento da reclamação para o controle de precedentes formados a partir do julgamento de recursos repetitivos, o qual já vem sendo recusado pelo STJ.

A Corte Superior entende que essa previsão de reclamação não é autônoma, não servindo para controle de precedentes, além de que o acolhimento da reclamação nessa hipótese aumentaria a quantidade de processos dirigidos ao tribunal, sendo que a mobilização da corte superior é justamente em sentido contrário. A doutrina contrária à necessidade de incluir o precedente advindo do recurso especial com relevância dentre os que podem ser objeto de reclamação refere que a obrigatoriedade do precedente não se confunde com o cabimento de reclamação para seu controle.[3]

Em sentido contrário, entendendo pelo necessário cabimento da reclamação para controle do precedente firmado em sede do julgamento da relevância da questão federal no recurso especial, refere-se o entendimento de Teresa Arruda Alvim, Carolina Uzeda e Ernani Meyer.[4]

Nessa linha de pensamento, a reclamação tem uma clara ligação como mecanismo de garantir a autoridade das decisões do STF e STJ, possuindo um caráter pedagógico[5], criando, inclusive, uma das características de intensidade vinculante de um “precedente”, considerando que na hipótese de não observância da sua ratio, o remédio é a reclamação.[6]A reclamação ainda tem a importante potencialidade de evitar a ausência de oxigenação do direito, fator essencial para fortalecer o sistema de precedentes judiciais.[7]

Dessa forma, considerando a possibilidade de cabimento de reclamação para a preservação da competência das Seções e garantia de autoridade de suas decisões e das Turmas e, ainda, que o “órgão competente para julgamento”, mencionado no art. 105, § 1º, da CF, com redação pela EC 125/22, devam ser as Seções (até mesmo pelas competências definidas no Regimento Interno do STJ) para deliberar sobre a presença ou não da relevância da questão federal nos recursos especiais, repetitivos ou não, é possível considerar o cabimento de reclamação para o controle do precedente firmado.[8]

Outro argumento favorável ao cabimento da reclamação no precedente formado em julgamento do recurso especial com relevância da questão federal é a previsão do art. 988, § 5º, II, que admite a reclamação para garantir a observância de acórdão de recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida ou de acórdão proferido em julgamento de recursos extraordinário ou especial repetitivos se esgotadas as instâncias ordinárias, estando incorreta a fundamentação da decisão proferida pela reclamação 36.476 no STJ.[9]

Entretanto, o anteprojeto apresentado pelo STJ para a regulamentação do processamento do recurso especial com relevância da questão federal não faz referência ao cabimento de reclamação, seguindo a linha restritiva quanto ao cabimento da ação para controle de aplicação de precedentes antes exposta, mas seria oportuno que a legislação regulamentadora enfrentasse o ponto especificamente para evitar práticas de jurisprudência defensiva hoje praticadas e, ainda, para viabilizar a evolução da disciplina da matéria de forma consentânea com os escopos de outorga de unidade do Direito subjacentes ao sistema de precedentes judiciais vinculantes à brasileira.

Destarte, caso a lei regulamentadora da EC 125/2022 não atribua instrumento processual apto a manejar o debate de teses firmadas no âmbito da relevância da questão federal, é indispensável a pacificação entre as Cortes acerca de um instrumento processual capaz de viabilizar a rediscussão de determinados precedentes, impedindo a diferenciação de tratamento entre eles.


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[1] Referem-se os tópicos 6 e 7 da ementa do referido julgado:  “6. De outro turno, a investigação do contexto jurídico-político em que editada a Lei 13.256/2016 revela que, dentre outras questões, a norma efetivamente visou ao fim da reclamação dirigida ao STJ e ao STF para o controle da aplicação dos acórdãos sobre questões repetitivas, tratando-se de opção de política judiciária para desafogar os trabalhos nas cortes de superposição.

  • Outrossim, a admissão da reclamação na hipótese em comento atenta contra a finalidade da instituição do regime dos recursos especiais repetitivos, que surgiu como mecanismo de racionalização da prestação jurisdicional do STJ, perante o fenômeno social da massificação dos litígios.”

[2] Desde que a Emenda Constitucional 125/22 foi promulgada (14/07/2022), muitas críticas e preocupações já foram expostas pela doutrina, especialmente quanto à restrição de acesso dos jurisdicionados ao STJ e à pertinência e adequação dos critérios de relevância presumida apresentados no § 3º inserido no art. 105 da CF/88. (WELSCH, Gisele Mazzoni. A relevância no recurso especial: controvérsias e perspectivas para a regulamentação e aplicação do filtro recursal previsto na EC125/22. Relevância da questão federal no Recurso Especial/Coordenadores: Mauro Luiz Campbell Marques, et. al. Londrina, PR: Thoth, 2023. p. 277-283).

[3] PEIXOTO, Ravi. A relevância da questão de direito federal no recurso especial e o dia depois de amanhã (ou o que fazer na lei regulamentadora). Relevância da questão federal no Recurso Especial/Coordenadores: Mauro Luiz Campbell Marques, et. al. Londrina, PR: Thoth, 2023. p. 435-447.

[4] ARRUDA ALVIM, Teresa; UZEDA, Carolina; MEYER, Ernani. Mais um filtro, agora para o STJ. Revista de Processo. São Paulo, v. 330, 2022, p. 8.

[5] VEIGA, Daniel Brajal. O caráter pedagógico da reclamação constitucional e a valorização do precedente. Revista de Processo, v. 220, p. 49-67, 2013.

[6] FUGA, Bruno Augusto Sampaio; WELSCH, Gisele Mazzoni; ANTUNES DA CUNHA, Guilherme. Comentários Sistemáticos ao Código de Processo Civil. Londrina: Thoth, 2022. p. 375.

[7] FUGA, Bruno Augusto Sampaio; WELSCH, Gisele Mazzoni; ANTUNES DA CUNHA, Guilherme. Comentários Sistemáticos ao Código de Processo Civil. Londrina: Thoth, 2022. p. 388.

[8] ANTUNES DA CUNHA, Guilherme; SCALABRIN, Felipe. Relevância da questão federal no recurso especial: um novo desenho decisório no Superior Tribunal de Justiça? Relevância da questão federal no Recurso Especial/Coordenadores: Mauro Luiz Campbell Marques, et. al. Londrina, PR: Thoth, 2023. p. 219-234.

[9] FUGA, Bruno Augusto Sampaio; WELSCH, Gisele Mazzoni; ANTUNES DA CUNHA, Guilherme. Comentários Sistemáticos ao Código de Processo Civil. Londrina: Thoth, 2022. p. 379.