‘Independência entre as instâncias’?

JOTA.Info 2021-04-06

O fenômeno da sobreposição das esferas penal e administrativa vem chamando cada vez mais a atenção da doutrina em razão da disfunção na atuação de múltiplos órgãos estatais na vigilância e aplicação de sanções sobre um mesmo fato histórico[1].

Um exemplo singelo e corriqueiro ilustra o problema. Em atividades reguladas de saneamento básico, uma conduta qualificada como crime de poluição por lançamento de resíduos sólidos (art. 54, § 2º, V, Lei 9.605/1998) pode ser também sancionada como infração administrativa (art. 62, V, do Decreto n.º 6.514/2008) e ensejar a aplicação de penalidades contratuais ao concessionário (art. 29, II, da Lei 8.987/1995). Ou seja, uma única conduta pode acarretar um triplo sancionamento por parte do Estado. Em cada uma dessas esferas sancionatórias, teremos contra o particular um procedimento próprio, com realização de diligências, emissão de pareceres, produção de provas, apresentação de defesas, postulação de recursos, avaliação e decisão por autoridades judiciais ou administrativas, com o constante risco de respostas discrepantes para o mesmo fato histórico.

Esse fenômeno, já descrito como estado de “Hidra de Lerna”[2], impõe a obrigação de revisitar os conceitos e paradigmas que fundamentam a atuação múltipla do Estado face uma possível infração, seja para (re)equilibrar a resposta sancionatória, seja para melhor delimitar e coordenar competências e atribuições de seus agentes.

O argumento da independência das instâncias e uma proposta de reposicionamento da discussão

O teste de validade da hipótese da existência de uma independência entre as diferentes esferas (penal e administrativa) passa pelas seguintes indagações: há alguma disposição constitucional, convencional ou legal expressa que fundamente o argumento da “independência entre as instâncias”? O sistema jurídico (penal, administrativo e cível) valida/chancela a hipótese de que as diferentes instâncias não se comunicam?

Eis, de forma sintética, as respostas dadas no âmbito de dissertação de mestrado sobre o tema: (i) inexiste uma regra expressa que fundamente o argumento da “separação das instâncias” penal e administrativa; (ii) inexiste base convencional para tal proceder, havendo, isto sim, jurisprudência internacional e transnacional vedando o cúmulo de sanções penais e administrativas com base no princípio do ne bis in idem; e (iii) existe uma miríade de normas infralegais no ordenamento brasileiro que demonstram intensa comunicação entre as esferas penal, cível e administrativa, especialmente no que toca à tutela do meio ambiente, ora em questão[3].

A partir destes resultados preliminares, analisamos a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) acerca da celebração de acordos administrativos ambientais e seus efeitos penais. Identificamos como paradigma o acórdão prolatado pela Corte Especial na Ação Penal n.º 888-DF[4], no qual se debateu acerca da acusação de supressão de 0.144 hectares de vegetação nativa ao longo da margem de um rio para instalação de tubulação de água que atenderia à propriedade rural do denunciado.

Dentre outras matérias, o acusado argumentava que teria aderido ao programa de recuperação de áreas degradadas e que as obrigações estariam sendo cumpridas adequadamente, motivo pelo qual não haveria justa causa para continuidade da ação penal.

Os julgadores concluíram que “em razão da independência das instâncias penal e administrativa, a celebração de termo de ajustamento de conduta é incapaz de impedir a persecução penal, repercutindo apenas, em hipótese de condenação, na dosimetria da pena”[5], o que, segundo nossa pesquisa, ilustra posicionamento dominante na Corte sobre o tema[6].

Além de recorrer excessivamente a esse argumento, que apresenta graves inconsistências/fragilidades, como visto, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça trata de maneira indistinta os diferentes tipos de acordos administrativos na esfera ambiental. Nesse sentido, a Corte descuida (a) de suas nuances, deixando de lados possíveis efeitos penais ligados à extinção da punibilidade ex vi lege pelo cumprimento de determinados tipos de acordo; (b) dos efeitos processuais penais da utilização de benefícios despenalizadores, como a transação penal; e (c) dos efeitos penais sobre a eleição e dosimetria da pena.

Por isso, parece necessária uma nova forma de abordagem do problema: em vez de partir da ideia de que o sistema jurídico trabalharia com instâncias estanques, melhor é analisar todos os tipos de acordos administrativos ambientais e suas cláusulas próprias, para, somente então, avaliar seus possíveis efeitos penais.

Para além do nome, o que realmente importa é a substância das obrigações que podem ser assumidas pelos fiscalizados perante o Ministério Público e outros órgãos da administração pública: (i) obrigação de indenização (in natura ou in pecunia) de dano ambiental; (ii) obrigação de cessar a conduta ilegal; (iii) obrigações de adequação de processos ou estruturas, para evitar a ocorrência de novos possíveis danos ambientais; (iv) multas sancionatórias; (v) obrigações de fazer convertidas a partir de multas; (vi) acordos com efeitos ex lege sobre a punibilidade administrativa e penal.

A partir desse quadro, tem-se que a celebração dos acordos administrativos pode gerar as seguintes espécies de efeitos penais: (i) extinção da punibilidade de crimes ambientais ex lege; (ii) atendimento de requisitos legais para celebração de acordos despenalizadores (transação penal, acordo de suspensão condicional do processo e acordo de não persecução penal); (iii) efeitos sobre a eleição e dosimetria da pena.

Em relação ao primeiro dos efeitos, notamos que o Superior Tribunal de Justiça desconsiderou – ou, ao menos, o argumento não foi apresentado pelos jurisdicionados – que a celebração e o cumprimento de compromisso ambiental do Código Florestal, com a previsão de  reparação de danos ambientais em áreas de uso restrito, reserva legal e áreas de preservação permanentes, oriundos de condutas praticadas até 22 de julho de 2008, extingue a punibilidade dos crimes do art. 38, 39 e 48 da Lei 9.605/1998[7]. Esta era, precisamente, a hipótese do caso-paradigma da Ação Penal 888-DF, em que a acusação era de supressão de cobertura vegetal em área de preservação permanente – faixa marginal de curso d´água – protegida pelo Código Florestal[8].

Quanto ao segundo tipo de efeito, por sua vez, a celebração de determinadas espécies de acordos administrativos, nos quais, normalmente há previsão de reparação do dano – em especial os previstos na Lei da Ação Civil Pública[9], na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro[10] e no Código Florestal[11] – pode implicar, per se, no atendimento a requisitos previstos na legislação penal ambiental para a aplicação de institutos despenalizadores, como a transação penal, suspensão condicional do processo e acordo de não persecução penal. Isto porque

o direito penal ambiental trouxe diversos mecanismos legais para vincular a possibilidade de celebração de acordos despenalizadores à reparação do dano ambiental[12]. Os acordos administrativos, por seu turno, preveem com frequência a composição do dano ambiental, com fixação obrigações de fazer para reparação do dano, prazos e valores, que atendem à necessidade de composição do dano ambiental na esfera penal e devem ser nela aproveitados. Estes acordos, ademais, possuem efeito negativo: não pode o órgão de acusação, ao propor o benefício despenalizador, afastar-se, injustificadamente, dos critérios adotados nos acordos administrativos para a quantificação e reparação do dano ambiental.

Por fim, quanto ao terceiro tipo de efeito penal, deve-se considerar que os acordos administrativos ambientais influenciarão a eleição da espécie de pena, o que é muito relevante nos crimes ambientais, muitos deles apenados de forma alternativa com multa: dos crimes da Lei 9.605/1998, a previsão alternativa de multa aparece em nove dos trinta e seis crimes da lei, inclusive em tipos penais frequentes na prática forense, como o do art. 38 (destruição de floresta) e o do art. 60 (construção, reforma, ampliação, instalação ou funcionamento de estabelecimento potencialmente poluidor sem licença)[13].

Exercerão a mesma influência sobre a dosimetria da pena, com possibilidade de incidir, a depender da situação concreta, em qualquer das três fases de fixação da pena (circunstância judicial favorável na fixação da pena-base; atenuante da pena na segunda fase; ou causa de diminuição da pena na terceira fase).

O argumento da separação entre as instâncias penal e administrativa deve ser visto com cautela e, ao menos na esfera penal ambiental, existem importantes efeitos penais decorrentes da celebração de acordos administrativos, como possibilidade de extinção da punibilidade de condutas; atendimento de requisitos para celebração de acordos despenalizadores; e, por fim, influência na eleição da pea e em todas as fases de sua dosimetria.


O episódio 55 do podcast Sem Precedentes discute o silêncio do STF diante da crise militar do governo Bolsonaro. Ouça:


[1]             Apenas para ficarmos com alguns exemplos no Brasil, vide: COSTA, Helena Regina Lobo da. Direito Penal Econômico e Direito Administrativo Sancionador: ne bis in idem como medida de política sancionadora integrada. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013; COSTA, Helena Regina Lobo da. Ne bis in idem entre direito penal e direito administrativo sancionador. Boletim IBCCRIM, Ano 29, nº 340, Março de 2021, pp. 6-7; SABOYA, Keity. Ne bis in idem em tempos de multiplicidade de sanções e de agências de controle punitivo. JCC, v.1, n.1, 2018; CALDEIRA, Felipe Machado. A conformação constitucional do direito penal econômico e a impossibilidade de sobreposição de sanções administrativa e penal. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 20, nº 95, 2012; e KASSADA, Daiane Ayumi; CARVALHO, Erika Mendes de. Responsabilidade das pessoas jurídicas em infrações ambientais em face do princípio do ne bis in idem: uma abordagem político criminal, Revista de Criminologias e Políticas Criminais, vol. 3, n. 2, 2017; MENDES, Gilmar, BUONICORE, Bruno Tadeu. A vedação do bis in idem na relação entre o direito penal e o direito administrativo sancionador e o princípio da independência mitigada. Boletim IBCCRIM, Ano 29, nº 340, Março de 2021, pp. 4-5.

[2]             Na mitologia grega, monstro com corpo de dragão e cabeças de serpente, que atacava seus oponentes com suas várias cabeças. A analogia é utilizada por Adriano Teixeira, Heloisa Estellita e Marcelo Cavali ao expor a urgência e necessidade de se discutir o ne bis in idem entre sanções penais e administrativas (“Ne bis in idem e o cúmulo de sanções penais e administrativas”, in Jota, 1º de agosto de 2018, acessível em: www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/ne-bis-in-idem-e-o-cumulo-de-sancoes-penais-e-administrativas-01082018#:~:text=Ao%20princípio%20do%20ne%20bis,e%20as%20do%20Direito%20Penal).

[3]          FERREIRA, André. Direito penal ambiental: efeitos materiais e processuais na esfera penal das clásulas de reparação de dano dos acordos administrativos ambientais. Dissertação (Mestrado em Direito Penal). Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas. São Paulo, 2020, pp. 39 e 40). O trabalho está disponível na íntegra na Biblioteca Digital da Fundação Getúlio Vargas, no link a seguir: http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/29964.

[4]          Superior Tribunal de Justiça, Ação Penal 888-DF, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Corte Especial, j. 2.5.2018, DJe 10.5.2018. O acórdão está disponível no link: <https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1705925&num_registro=201502382413&data=20180510&formato=PDF> (acesso em 8.2.2021).

[5]             Trecho constante na página 17 do acórdão.

[6]             Os critérios e procedimentos para a seleção dos conjunto de julgados representativos da questão foram os seguintes: “(i) o mecanismo de pesquisa utilizado foi o sistema de busca avançada de jurisprudência do STJ; (ii) foram aplicados filtros que limitaram a pesquisa para a Corte Especial, Terceira Seção (que reúne as quinta e sexta Turmas) e para as próprias quinta e sexta Turmas; (iii) foram pesquisadas as expressões “termo de ajustamento”, “termo de compromisso”, “independência” e “instâncias”, “crime ambiental”, isolada e conjuntamente, com exceção do termo “crime ambiental”, que sempre foi inserido como indexador; (iv) a partir dos acórdãos iniciais, buscou-se aqueles mais citados pela própria Corte, seja no corpo dos votos, seja no sistema de referência cruzada disponibilizado pelo site do STJ na ficha de cada julgado; (v) a pesquisa de acórdãos somente foi encerrada quando havia completa circularidade nas referências entre os julgados, não se encontrando novos casos; (vi) não foram incluídas decisões monocráticas no escopo da pesquisa”. FERREIRA, André. Direito penal ambiental: efeitos materiais e processuais na esfera penal das cláusulas de reparação de dano dos acordos administrativos ambientais. op. cit., p. 15.

[7]          “Art. 60. A assinatura de termo de compromisso para regularização de imóvel ou posse rural perante o órgão ambiental competente, mencionado no art. 59, suspenderá a punibilidade dos crimes previstos nos arts. 38, e 48 da Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, enquanto o termo estiver sendo cumprido. § 1º A prescrição ficará interrompida durante o período de suspensão da pretensão punitiva. § 2º Extingue-se a punibilidade com a efetiva regularização prevista nesta Lei.”

[8]          “Art. 4º Considera-se Área de Preservação Permanente, em zonas rurais ou urbanas, para os efeitos desta Lei: I – as faixas marginais de qualquer curso d’água natural perene e intermitente, excluídos os efêmeros, desde a borda da calha do leito regular, em largura mínima de:”

[9]          “Art. 5º […] § 6° Os órgãos públicos legitimados poderão tomar dos interessados compromisso de ajustamento de sua conduta às exigências legais, mediante cominações, que terá eficácia de título executivo extrajudicial”.

[10]          “Art. 26. Para eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito público, inclusive no caso de expedição de licença, a autoridade administrativa poderá, após oitiva do órgão jurídico e, quando for o caso, após realização de consulta pública, e presentes razões de relevante interesse geral, celebrar compromisso com os interessados, observada a legislação aplicável, o qual só produzirá efeitos a partir de sua publicação oficial”.

[11]        “Art. 59. A União, os Estados e o Distrito Federal deverão implantar Programas de Regularização Ambiental (PRAs) de posses e propriedades rurais, com o objetivo de adequá-las aos termos deste Capítulo. § 1º Na regulamentação dos PRAs, a União estabelecerá normas de caráter geral, e os Estados e o Distrito Federal ficarão incumbidos do seu detalhamento por meio da edição de normas de caráter específico, em razão de suas peculiaridades territoriais, climáticas, históricas, culturais, econômicas e sociais, conforme preceitua o art. 24 da Constituição Federal. § 2º A inscrição do imóvel rural no CAR é condição obrigatória para a adesão ao PRA, que deve ser requerida em até 2 (dois) anos, observado o disposto no § 4º do art. 29 desta Lei. § 3º Com base no requerimento de adesão ao PRA, o órgão competente integrante do Sisnama convocará o proprietário ou possuidor para assinar o termo de compromisso, que constituirá título executivo extrajudicial”.

[12]        É o caso dos arts. 27 e 28 da Lei 9.605/1998: “Art. 27. Nos crimes ambientais de menor potencial ofensivo, a proposta de aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multa, prevista no art. 76 da Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, somente poderá ser formulada desde que tenha havido a prévia composição do dano ambiental, de que trata o art. 74 da mesma lei, salvo em caso de comprovada impossibilidade”; “Art. 28. As disposições do art. 89 da Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, aplicam-se aos crimes de menor potencial ofensivo definidos nesta Lei, com as seguintes modificações: I – a declaração de extinção de punibilidade, de que trata o § 5° do artigo referido no caput, dependerá de laudo de constatação de reparação do dano ambiental, ressalvada a impossibilidade prevista no inciso I do § 1° do mesmo artigo; […]” (destaque nosso).

[13]        Os crimes da Lei 9.605/1998 que admitem fixação alternativa de multa são os dos arts. 33, 34, 38, 38-A, 42, 49 e seu parágrafo único e 60.