Nova Lei de Licitações é mesmo toda composta por normas gerais?
TJES 2021-04-17
A Lei nº 14.133/2021 foi publicada há poucos dias e já está causando polêmicas entre os entes da Federação. As regas da Nova Lei de Licitações valem para União, estados, Distrito Federal e municípios de forma igual? Ou melhor, todas as regras são aplicáveis a todos os entes da Federação?
Alguns operadores do setor de licitações estão entendendo que sim. Para esta corrente doutrinária, o art. 1º da Lei n° 14.133/2021 define que “esta Lei estabelece normas gerais de licitação e contratação”. Por consequência, todos os 194 artigos da lei trariam normas gerais.
Seria essa a interpretação jurídico-constitucional mais adequada? Ou, com esta interpretação, estaríamos delimitando, por lei ordinária, um conceito constitucional? Sabemos que não há consenso doutrinário na definição do que são “normas gerais” e “normas específicas”. Contudo, para entender esta polêmica, nada melhor do que dar uma espiada na nossa história. A história é cíclica, e esse debate já aconteceu, quando da publicação da Lei nº 8.666/93.
A Lei nº 8.666/93, aliás, tinha um art. 1º que iniciava exatamente com a mesma redação do art. 1º da Lei n° 14.133/2021. Mas nem todas as regras da Lei nº 8.666/93 eram normas gerais. E isso por um motivo simples: o conceito de “norma geral” é um conceito constitucional, cujas balizas são definidas no art. 24 e parágrafos da Constituição. É lá nos parágrafos do art. 24, que o legislador constituinte estabelece que “a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais” (§ 1º), que há competência suplementar dos Estados (§ 2º), e que, “inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades” (§ 3º).
No caso específico das compras públicas, o art. 22, XXVII, da Constituição, é expresso ao definir que a União só deve legislar sobre as normas gerais dos procedimentos que serão adotados pelos demais Entes da Federação. Para Jessé Torres Pereira Júnior, essas normas gerais são “toda disposição da Lei nº 8.666/93 que se mostre indispensável para implementar os princípios constitucionais reitores da Administração Pública e os básicos arrolados no art. 3º” (in Comentários à Lei das licitações e contratações da administração pública, p. 70-72). Ou seja, nem tudo que está na Lei Geral de Licitações será uma norma geral.
Evidentemente, a União pode – e deve – estabelecer normas específicas para as suas compras públicas, conforme as suas particularidades de licitação e contrato. Pelo princípio da legalidade, estas normas específicas devem estar previstas em lei. E, devido à sua especificidade, são aplicáveis somente para as compras públicas da União. Se assim desejar o legislador ordinário, pode prever estas normas específicas de licitações e contratos na Lei Geral de Licitações. Contudo, esta inserção não lhes transforma em normas gerais.
Portanto, podemos ter uma Lei Geral de Licitações que mescle normas gerais – aplicáveis a todos os entes da Federação – e normas específicas – aplicáveis somente para a União. Bem como ocorria com a Lei nº 8.666/93. E bem como ocorre com a Lei nº 14.133/2021.
Essa conclusão tem respaldo na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF). Como dito, a história é cíclica, e a Lei nº 8.666/93 sofreu com os memos questionamentos sobre quais seriam suas normas gerais, e quais seriam suas normas específicas.
Na ADI nº 927, que foi ajuizada pelo governador do estado do Rio Grande do Sul, em face da Lei nº 8.666/93, o Pleno do STF decidiu, em sede de medida cautelar, que alguns dos artigos da então Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos mereciam “interpretação conforme” à Constituição, tendo sua aplicação limitada ao âmbito da União Federal.
Nos termos do voto do ministro Carlos Veloso, relator para o acórdão, “’norma geral’, tal como posta na Constituição, tem o sentido de diretriz, de princípio geral. A norma geral federal, melhor será dizer nacional, seria a moldura do quadro a ser pintado pelos Estados e Municípios no âmbito de suas competências”. O Ministro prossegue, citando a lição da professora Alice Gonzalez Borges, afirmando que as normas gerais são aquelas que “determinam parâmetros, com maior nível de generalidade e abstração, estabelecidos para que sejam desenvolvidos pela ação normativa subsequente das ordens federadas’, pelo que ‘não são normas gerais as que se ocupem de detalhamentos, pormenores, minúcias, de modo que nada deixam à criação própria do legislador a quem se destinam, exaurindo o assunto de que tratam’”. Portanto, somente podem ser enquadradas como normas gerais aquelas que tenham um nível de abstração tal, a permitir o exercício de detalhamento pelo legislador ordinário dos outros Entes da Federação.
Ao julgar a Medida Cautelar em ADI, o STF considerou que os artigos que regulamentavam a doação de bem imóvel, e a permuta de bem móvel e imóvel, eram normas específicas (art. 17, I, b e c; II, b, e § 1º), inaplicáveis para os Estados, para o Distrito Federal e para os Municípios.
Exatamente estas regras sobre doação e permuta estão previstas no art. 76, I, b e c; II, b, e § 2º, da Lei nº 14.133/2021. Seria possível sustentar que, com o advento da nova lei, estas regras passaram a ser “normas gerais”, ainda que o STF já tenha reconhecido seu caráter de normas especiais? A resposta a esta indagação deve ser negativa. Logo, de pronto sabemos que as regras do art. 76, indicadas acima, são normas especiais, de aplicação estrita à União.
Contudo a Medida Cautelar em ADI nº 927 foi julgada em 1993, e o mundo mudou muito desde então. Especialmente no que toca às compras públicas, uma maior integração sistêmica entre os entes da Federação, estimulada pelo uso intenso de tecnologia da informação, levou naturalmente a uma maior uniformidade de procedimentos.
Talvez por isso, em decisões mais recentes o Supremo Tribunal Federal demonstrou tendência à ampliação da competência da União. Por duas vezes, o STF julgou inconstitucionais leis estaduais que estabeleciam regras que, a depender do enfoque do intérprete, poderiam tanto ser classificadas como normas gerais, quanto como normas especiais. Em ambos os casos, a Suprema Corte considerou que se tratava de normas gerais, e que, por consequência, os Estados haviam usurpado a competência da União.
Na ADI nº 3.670/DF, o STF declarou inconstitucional lei do Distrito Federal que proibia a celebração de contratos administrativos com empresas que comprovadamente discriminassem na contratação de mão-de-obra pessoas com nome incluído em cadastros de devedores. Segundo a Suprema Corte, haveria ofensa à competência privativa da União para legislar sobre normas gerais de licitação e contratação administrativa. Do voto do ministro Sepúlveda Pertence se extrai que “o dispositivo atacado estabelece um critério a ser observado de modo geral nos contratos administrativos do Governo do Distrito Federal, vale dizer, que não especifica tampouco destaca tema capaz de retirar-lhe a abstração, a generalidade e a impessoalidade: também não se trata de norma especial, atinente a particularidades de orientação local – mas, sim, de norma geral de incapacitação para licitar”. Percebe-se, do trecho transcrito, que o Ministro Relator relaciona norma específica a norma de efeitos concretos (não abstrata), bem como à necessidade de orientação local/regional. Um corte bem restritivo, que colocaria praticamente todas as regras da Nova Lei de Licitações como normas especiais.
No mesmo sentido, a ADI 3.735/MS declarou inconstitucional lei do Mato Grosso do Sul que exigia, dentre os documentos de habilitação, certidão negativa de violação a direitos do consumidor. No seu voto, o ministro Teori Zavascki, Relator, decidiu que “somente a lei federal poderá, em âmbito geral, estabelecer desequiparações entre os concorrentes e assim restringir o direito de participar de licitações em condições de igualdade”. Nos termos da decisão, a competência de Estados e Municípios, nesta matéria, estaria restrita a uma classe de objetos a serem contratados ou a peculiares circunstâncias de interesse local.
Nota-se, dos julgados citados acima, que a posição do STF tende à proteção da igualdade de condições de competitividade entre licitantes.
Quando um Ente da Federação tentou criar requisitos de habilitação distintos daqueles previstos na Lei Geral de Licitações, estes requisitos foram rechaçados, por invasão da competência da União para estabelecer regras gerais. Dessa forma, a Suprema Corte assegurou que todos os licitantes fossem submetidos aos mesmos parâmetros mínimos de habilitação, independentemente do Ente que promovesse a licitação. Em um mundo digital, esta uniformidade evidentemente aumenta a competitividade dos certames, pois torna mais fácil a participação de empresas em licitações ocorridas em qualquer parte do território nacional. Contudo, essa visão ampliativa das normas gerais não pode suprimir a competência dos Entes da Federação.
Mas quais são as normas específicas de licitações e contratos administrativos que sobram para Estados, Distrito Federal e Municípios? Sobra muito pouco. Mas sobra.
Sobra para estados, Distrito Federal e municípios legislar sobre parâmetros internos ao funcionamento da Administração Pública (tais como a forma de seleção do agente de contratação de que trata o art. 8º da nova lei; ou os requisitos das atividades de fiscais de contrato do art. 117), sobre adaptações das normas gerais às especificidades e necessidades locais (como estabelecer a dosimetria das sanções do art. 156), e sobre obrigações contratuais específicas, que atendam às especificidades das políticas públicas dos Entes da Federação (programas de conformidade e metas de performance), por exemplo.
Como se sabe, a Nova Lei de Licitações traz regras detalhadas sobre as compras públicas nacionais. Contudo, apesar da abrangência e uniformidade destas regras, não dá para afirmar que toda a Lei nº 14.133/2021 é constituída de normas gerais, sob pena de alteração do pacto federativo constitucionalmente posto.
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