Nova Lei de Licitações: punição ficou mais racional e previsível

TJES 2022-01-15

A nova Lei de Licitações, Lei 14.133/2021, pode ser considerada, com razoável tranquilidade, muito melhor do que a Lei 8.666/1993 em uma enorme variedade de aspectos. O Brasil deu, assim, um importante passo em matéria de licitações e contratos. E andou para a frente.

É inegável, nesse contexto, que o país avançou ao incorporar, em um único texto, o que havia de melhor na legislação extravagante preexistente, bem como progrediu ao veicular novidades como o diálogo competitivo, o comitê de resolução de disputas e o portal nacional de contratações públicas. Apostou-se, em um exitoso exemplo de experimentalismo no Direito Administrativo, naquilo que já havia dado certo no Brasil com algumas novidades do direito estrangeiro.

No campo do Direito Administrativo Sancionador (DAS), a nova Lei de Licitações também proporcionou uma significativa melhoria no arcabouço normativo brasileiro.

Neste texto, pretendemos destacar quatro avanços importantes do DAS que surgem com a nova lei. O primeiro se refere ao melhor e mais amplo detalhamento das condutas que ensejam a aplicação de uma sanção. O segundo diz respeito às circunstâncias específicas a serem consideradas no momento da dosimetria das penas (artigo 156, §1º). O terceiro avanço decorre da menção legal ao alcance das sanções de impedimento de licitar e contratar e da declaração de inidoneidade para licitar ou contratar. A quarta evolução resulta de uma maior vinculação legal entre cada conduta praticada e a sanção prevista na lei.

Em relação ao melhor e mais amplo detalhamento das infrações, a nova lei lista em 12 incisos do seu artigo 155 quais condutas podem ensejar uma punição. É bem verdade que muitas das condutas já estavam previstas na Lei 8.666, tal como a de inexecução total ou parcial do contrato (artigo 87), e que algumas delas ainda são muito vagas, mas a novidade é bem-vinda. A sistematização em capítulo próprio de quais atos específicos justificam uma sanção reduz a incerteza e facilita o trabalho do administrador público. O tema da vagueza das sanções administrativas como um fator impeditivo ou dificultador do amplo direito de defesa ainda gera muitos litígios e, por isso, qualquer avanço nesta matéria deve ser enaltecido.

Quanto à segunda evolução, a nova lei, seguindo a lógica da Lei 13.655/2018, procurou estabelecer parâmetros mais específicos para a dosimetria das sanções. A redução do largo espaço de discricionariedade do administrador decorre, por exemplo, do teor do artigo 156, §1º, da Lei 14.133, que assim dispõe:

“1º Na aplicação das sanções serão considerados: I — a natureza e a gravidade da infração cometida; II — as peculiaridades do caso concreto; III — as circunstâncias agravantes ou atenuantes; IV — os danos que dela provierem para a Administração Pública; V — a implantação ou o aperfeiçoamento de programa de integridade, conforme normas e orientações dos órgãos de controle”.

Sem retirar do administrador público a prerrogativa de adequar a sanção ao caso concreto, ele agora deverá fundamentar a escolha nos parâmetros acima, o que reduz surpresas, notadamente as desagradáveis, e as ocasionais arbitrariedades associadas a uma falta de proporcionalidade.

Uma terceira característica que confere maior previsibilidade na aplicação das sanções se refere à demarcação legal do alcance das sanções de impedimento de licitar e contratar e da declaração de inidoneidade para licitar ou contratar. A Lei 8.666 previu, entre outras, as sanções de suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a Administração (artigo 87, inciso III, da Lei 8.666) e a de declaração de inidoneidade para licitar ou contratar (artigo 87, inciso III, da Lei 8.666).

Contudo, ela não esclareceu qual o alcance de cada uma delas, vale dizer, se estariam restritas ao âmbito do ente da federação que as aplicou ou se, por produzirem efeitos em relação a todos, impediriam a pessoa punida de ser contratada pela Administração Pública brasileira.

Sobre este tema, surgiram na literatura ao menos três correntes: 1) as sanções produziriam efeitos em relação a todos os entes da federação, tendo em vista que seria inadmissível uma pessoa ser inidônea perante um ente e não ser diante de outro; 2) à luz da autonomia dos entes da federação, as sanções só produziriam efeitos em relação ao ente que as aplicou, e 3) em virtude de uma interpretação literal das expressões “administração” e “administração pública”, a pena estampada no artigo 87, inciso III, da Lei 8.666 só repercutiria no escopo do ente que a aplicou e a de declaração de inidoneidade alcançaria todos os entes.

Muito embora a segunda corrente pareça ser a mais apropriada, especialmente diante dos efeitos concretos danosos que as duas outras poderiam provocar, os argumentos apresentados pelos três grupos de pensamento são plenamente defensáveis, e foi isso o que acabou por acarretar um ambiente de profunda insegurança jurídica quanto à matéria. Por mais que a nova lei possa ser impugnada judicialmente quanto à sua constitucionalidade em relação a este tema específico, fez bem a Lei 14.133 ao fazer uma escolha muito clara no seu artigo 156, §§4º e §5º. De acordo com o referido receito legal, a pena de impedimento de licitar e contratar só vale no âmbito de quem a aplicou, enquanto a declaração de inidoneidade para licitar ou contratar produz efeitos em relação a todos os entes da federação. Entendimento em contrário dependerá, agora, de uma declaração de inconstitucionalidade, o que incrementa a segurança jurídica.

Por fim, um quarto aspecto a ser destacado se refere à vinculação que a Lei 14.133 faz entre a conduta praticada e a sanção a ser aplicada. Tal preocupação aparece nos parágrafos do artigo 156 da nova lei. A advertência, por exemplo, passa a apenas poder ser aplicada diante de uma inexecução parcial do contrato, salvo se a aplicação de uma pena mais grave se justificar. Ainda há muito campo para o administrador fazer escolhas quanto à adequação da sanção, mas a nítida redução desse espaço decisório é salutar, na medida em que evita, a depender do caso concreto, situações de impunidade ou de exageros.

Nesse cenário, a leitura atenta da Lei 14.133 nos permite concluir que o Direito Administrativo Sancionador está progredindo na busca de um sistema punitivo estatal mais confiável, previsível, estável, proporcional e justo. Cada vez mais a calibragem das sanções é feita no plano abstrato, o que dificulta a prática de arbitrariedades. O caminho, contudo, é longo e ainda há muito a ser percorrido até que tenhamos um efetivo e coerente sistema punitivo estatal.