Ônus da prova da inadimplência de prestadoras de serviços à administração pública
Twitter Search / Tjap_Oficial 2022-11-30
Após a publicação do Tema 246 (“O inadimplemento dos encargos trabalhistas dos empregados do contratado não transfere automaticamente ao Poder Público contratante a responsabilidade pelo seu pagamento, seja em caráter solidário ou subsidiário, nos termos do art. 71, § 1º, da Lei nº 8.666/93” – RE 760931), o Supremo Tribunal Federal, por causa de recurso extraordinário (RE 1.298.647/SP), continua sendo instado a se manifestar sobre a quem compete o ônus de provar a culpa in vigilando da Administração Pública.
Foi reconhecida a Repercussão Social do tema proposto no RE 1.298.647/SP, sob o fundamento do grande número de ações trabalhistas propostas na Justiça do Trabalho, com pedidos de pagamento de verbas trabalhistas não quitadas por prestadoras de serviços e de responsabilização subsidiária da Administração Pública. O Tema 1118, então, teve o seu teor assim delimitado: “Ônus da prova acerca de eventual conduta culposa na fiscalização das obrigações trabalhistas de prestadora de serviços, para fins de responsabilização subsidiária da Administração Pública, em virtude da tese firmada no RE 760.931 (Tema 246)”.
A Procuradoria-Geral da República emitiu parecer realçando que o art. 50 da Lei 14.133/2021 enumera os deveres da Administração Pública de fiscalizar os contratos que firmar[1] e, portanto, à luz do princípio da legalidade, outra não pode ser a conclusão senão a de que há um direito-dever da Administração de realizar a eficaz fiscalização dos contratos.
É lógico que a matéria processual de distribuição do ônus da prova deve acompanhar os deveres impostos na relação material existente entre as partes. A Lei 14.133/2021 impõe os deveres de governança responsável nas contratações (art. 11, parágrafo único), a participação do controle social (art. 169) e o uso de novos institutos, como a conta vinculada e o pagamento após o fato gerador das obrigações trabalhistas (art. 121, §3º e art. 142). As previsões legais indicam o caminho que deve ser seguido pelos fiscais do contrato, e até os documentos que deve solicitar à contratada (art. 50), de modo que, se bem executar o seu mister, a Administração Pública terá meios probatórios para afastar a culpa in vigilando e os trabalhadores receberão as verbas trabalhistas de forma correta e no tempo contratual.
A Administração Pública detém prerrogativas, derivadas do princípio da autoexecutoriedade, e, portanto, não pode se escusar de demonstrar que fiscalizou o contrato, alegando o grande número de empregados. Há, inclusive, possibilidade de uso de meios da tecnologia da informação e solicitação de informações a entes públicos e privados sobre a capacidade financeira da contratada, evitando riscos para a execução contratual (arts. 69 § 3º da Lei 14.133/2022).
Como leciona Marçal Justen Filho, “o dever de promover os direitos fundamentais não se coaduna com uma atuação passiva· da Administração”. E prossegue: “Se o particular não executar corretamente a prestação contratada, a Administração deverá atentar para isso de imediato. A atividade permanente de fiscalização permite à Administração detectar, de antemão, práticas irregulares ou defeituosas”[2]. Logo, se não as detecta está patente a sua falha de fiscalização. As fiscalizações realizadas devem estar registradas e organizadas em procedimento administrativo (art. 117, § 1º, da Lei 14.133/2021), e, portanto, a análise desse procedimento permitirá que se infira se houve regular e eficaz fiscalização, com imposição de sanções às contratadas.
A atribuição do ônus da prova à Administração Pública funda-se, ainda, no art. 3º, II a IV, da Constituição Federal, que enuncia os objetivos da República Federativa do Brasil de garantir o desenvolvimento nacional, reduzir desigualdades sociais e promover o bem de todos, e, por isso, o intérprete deve considerar que o espírito da Constituição é o de facilitação dos meios para o atingimento desses objetivos, ampliando o acesso à Justiça, não apenas formalmente, mas materialmente, de forma a “Proteger os direitos trabalhistas e promover ambientes de trabalho seguros e protegidos para todos os trabalhadores” (Objetivo do Desenvolvimento Sustentável (ODS) 8, 8.8, da ONU) e os princípios citados no art. 5º da Lei 14.133/2021, entre eles os da segurança jurídica, razoabilidade, proporcionalidade, economicidade, eficiência e desenvolvimento nacional sustentável.
A atribuição do ônus probatório à Administração Pública estimula a adoção da análise de riscos e controle interno nas contratações públicas. Ao contrário, a constatação da impossibilidade probatória do trabalhador e a falta de responsabilização subsidiária conduz a uma piora das fiscalizações contratuais, em linha oposta ao compromisso de integridade pública assumido pelo Brasil com a comunidade internacional, em especial com a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e a ONU, no cumprimento do ODS 16, de promover Instituições eficazes. A médio prazo, a tendência é as contratações violarem o princípio da economicidade e da eficiência.
A posição da SDI1 do Tribunal Superior do Trabalho, de que “é do Poder Público, tomador dos serviços, o ônus de demonstrar que fiscalizou de forma adequada o contrato de prestação de serviços” (TST-E-RR-925-07.2016.5.05.0281, relator ministro Cláudio Brandão, j. 12/11/2019), está portanto alinhada aos princípios mencionados e contribui para uma política nacional de integridade pública e de promoção do trabalho decente.
O STF tem incentivado a implementação dos ODS e se comprometido a considerá-los em suas decisões. Por conseguinte, espera-se que, no julgamento do Tema 1118, defina que é da Administração Pública o ônus de provar a fiscalização tempestiva e eficaz dos contratos de prestação de serviços terceirizados.
[1] Na vigência da lei anterior, decisões do Tribunal de Contas da União já impunham à Administração Pública o dever de fiscalização, por força do art. 67, §1º da Lei nº8.213/91.
[2] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 11 ed. São Paulo: Dialética, 2005.