Uso de informações dos contribuintes em programas de conformidade cooperativa
Twitter Search / Tjap_Oficial 2023-12-13
As administrações tributárias possuem diversas funções, entre as quais, talvez as mais importantes, as de monitorar e fiscalizar o cumprimento das obrigações tributárias pelos contribuintes. Para tanto, baseiam-se em informações prestadas pelos próprios contribuintes e terceiros ou obtidas durante procedimentos de fiscalização.
As declarações apresentadas periodicamente pelos contribuintes servem como importantes fontes de informação. Permitem não somente a obtenção de dados de primeira mão, como também o cruzamento com as informações fornecidas por terceiros, para que se possa detectar eventuais inconsistências. Servem ainda como instrumento para a avaliação de riscos. Entretanto, quanto mais informações os contribuintes e terceiros são obrigados a fornecer, maior será o custo de conformidade, isto é, os custos incorridos por eles para prestarem essas informações.
Uma alternativa para que as administrações tributárias obtenham mais informações sem aumentar desproporcionalmente o custo de conformidade dos contribuintes são os denominados programas de conformidade cooperativa. Desenvolvidos ao longo das duas últimas décadas, esses programas ganharam maior notoriedade após a OCDE elaborar uma série de relatórios a respeito.
Um estudo de 2008 da OCDE[1] demonstrou que obter segurança jurídico-tributária antecipada tornara-se tão importante quanto gerenciar custos tributários e propôs que as administrações desenvolvessem um relacionamento aprimorado, especialmente com seus maiores contribuintes, que poderia ser alcançado se elas conhecessem melhor os modelos de negócio e o mercado, aumentando a capacidade de prover rápidas respostas e interpretações. Mas os contribuintes precisariam oferecer transparência e divulgação das informações necessárias para que se pudesse realizar uma avaliação de riscos totalmente informada e mais eficiente.
Em 2013, a OCDE trouxe uma evolução desse relacionamento aprimorado para uma relação cooperativa, com programas de conformidade[2]. Programas de conformidade cooperativa têm por base uma relação de confiança e cooperação mútua entre administração tributária e contribuinte. Programas dessa natureza devem destacar os benefícios do comportamento positivo por parte dos contribuintes, proporcionando àqueles abertos a uma maior transparência um maior nível de certeza ou segurança sobre suas posições fiscais, ou seja, os contribuintes apresentam informações sobre suas transações e questões tributárias relevantes, permitindo às autoridades uma melhor compreensão de seus negócios e dos seus impactos tributários. Por sua vez, as autoridades fiscais auxiliam o contribuinte na aplicação da legislação tributária, o que lhes garante maior segurança acerca do posicionamento do fisco.
A exemplo de outros países, nos últimos anos, a Receita Federal do Brasil vem trabalhando em uma iniciativa de conformidade cooperativa, o programa Confia. Iniciado em 2021 com a criação do Comitê Gestor responsável pelas diretrizes do programa, meses depois formou-se um fórum de diálogo com entidades representativas de setores econômicos e empresas.
O programa ainda se encontra em fase de conformação. Uma vez desenhado, deverá ser testado em um piloto para sua validação e aperfeiçoamento. Finalmente, o programa será gradualmente implementado, podendo ser expandido para um número maior de contribuintes[3]. Em paralelo, vai sendo construído um arcabouço legislativo que lhe dê respaldo[4].
Mas, considerando as características de programas de conformidade cooperativa, é natural que surjam preocupações tanto por parte dos contribuintes como da administração tributária no que tange à utilização e ao sigilo das informações prestadas pelos contribuintes.
Essas informações diferem das denominadas “obrigações acessórias” previstas no art. 113, §2º, do CTN. Isso porque, embora prestadas no interesse da arrecadação ou fiscalização, não decorrem de uma obrigação da legislação tributária, mas da participação voluntária do contribuinte no programa.
Não obstante não se enquadrarem como obrigação acessória, as informações prestadas no âmbito dos programas de conformidade cooperativa que retratem a situação econômico-financeira do contribuinte ou a natureza de seus negócios ou atividades estarão protegidas pelo sigilo fiscal, na medida em que obtidas pelos servidores da administração em razão de seu ofício, a teor do art. 198 do CTN.
Mas o próprio art. 198 do CTN traz algumas ressalvas, entre as quais, a possibilidade de troca de informações entre as administrações tributárias dos diversos entes federativos, na forma estabelecida na lei ou convênio. Essa possibilidade foi erigida a status constitucional com a introdução do inciso XXII ao art. 37 da Constituição pela EC 42/2003.
Também estaria ressalvada da proteção do sigilo fiscal de que trata o art. 198 do CTN a troca de informações tributárias com os demais países no interesse da arrecadação ou fiscalização de tributos, na forma estabelecida em tratados, acordos ou convênios. É o que dispõe expressamente o art. 199, parágrafo único, do CTN.
Registre-se a esse propósito que a troca de informações fiscais com outros países pode ocorrer com base em previsão contida nos tratados bilaterais para evitar a dupla tributação[5], em tratados de troca de informações tributárias[6] ou mesmo com base na Convenção Multilateral sobre Assistência Mútua Administrativa em Matéria Tributária[7].
A Convenção Multilateral, segundo a OCDE, “é o instrumento mais abrangente disponível para todas as formas de cooperação fiscal para combater a elisão e a evasão“[8]. A Convenção foi alterada para responder ao apelo do G20 para alinhá-la ao padrão internacional sobre a troca de informações a pedido e ampliar sua utilização. O seu artigo 22 diz que quaisquer informações obtidas por um país signatário serão consideradas sigilosas e protegidas do mesmo modo que as informações obtidas com base na legislação interna. Em qualquer caso, as referidas informações só poderão ser comunicadas às autoridades (incluindo tribunais e órgãos de administração ou supervisão) encarregadas do lançamento, arrecadação ou cobrança de tributos.
Desta forma, as informações prestadas no âmbito dos programas de conformidade cooperativa se enquadrariam como informações fiscais. Como tal, a despeito de estarem protegidas pelo sigilo, em princípio, podem ser utilizadas para outros fins que não só os do programa, inclusive com o seu compartilhamento com as administrações fiscais dos demais entes federativos e países.
No entanto, dada a peculiaridade de que essas informações são prestadas pelos contribuintes participantes de um programa de conformidade cooperativa, de adesão voluntária, e visando incentivar a participação, é possível cogitar que essas informações fiquem restritas à utilização exclusiva no âmbito do programa.
Assim, uma das questões que se levantam é sobre o uso das informações obtidas no bojo de programas de conformidade cooperativa e como seria possível garantir, em face de acordos internacionais de troca de informações e da possibilidade de fornecimento a outros entes federativos, que essas informações não sejam compartilhadas.
Seja como for, é importante que se deixe bem claro desde o início qual será o escopo da utilização das informações prestadas no âmbito dos programas de conformidade. Afinal, um dos objetivos da conformidade cooperativa é justamente desenvolver uma relação de confiança entre fisco e contribuintes.
[1] OECD (2008). Study into the role of Tax Intermediaries (“2008 Study”), Paris: Publicação da OECD, 2008.
[2] OECD (2013). Co-operative Compliance: A Framework. From Enhanced Relationship to Co-Operative Compliance. (“2013 Report”). Paris: Publicação da OCDE, 2013.
[3] RECEITA FEDERAL. Programa de Conformidade Cooperativa Fiscal CONFIA. Disponível em: https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/confia.
[4] Sobre a construção do arcabouço legislativo, conferir: Conformidade cooperativa: o programa Confia e o PL n° 2.384/2023 (jota.info).
[5] OCDE (2017). Model Tax Convention on Income and on Capital: Condensed Version 2017. Publicação da OCDE, 2017. Nos comentários mais recentes sobre o artigo 26 da convenção modelo, a OCDE afirma que: “(…) tendo em vista a crescente internacionalização das relações econômicas, os Estados Contratantes têm um interesse crescente na oferta recíproca de informações com base na qual as leis de tributação interna devem ser administradas, mesmo que não haja qualquer questão da aplicação de qualquer artigo específico da Convenção”.
[6] Esses tratados são comumente conhecidos como “Tax Information Exchange Agreements” ou simplesmente pela sigla “TIEA”.
[7] Incorporado no ordenamento brasileiro pelo Decreto n. 8.842/2016. Disponível em: D8842 (planalto.gov.br).
[8] OCDE e CONSELHO DA EUROPA (2011). A Convenção Multilateral sobre Assistência Administrativa Mútua em Matéria Tributária: alterada pelo protocolo de 2010. Paris: Publicação da OCDE, 2011.