O que o videogame tem a ver com o Cade?

Notícias do TRF3R 2023-02-25

De acordo com estudo da Deloitte Global[1], o número de fusões e aquisições (M&A) de empresas envolvidas na indústria de jogos eletrônicos (games) deve aumentar cerca de 25% em 2023. Ainda de acordo com tal estudo, além de um crescimento superdinâmico baseado em investimentos em inovação, há um movimento de consolidação que engloba não só as empresas que desenvolvem os games, mas também as publishers, ou publicadoras, as distribuidoras e as fornecedoras de serviços para o ecossistema dos games. Tal movimento também deverá envolver empresas de mídia e entretenimento que estão procurando expandir seus portfólios para manter as gerações mais jovens como seus clientes.

Movimentos de consolidação entre empresas concorrentes ou verticalmente relacionadas, principalmente quando afetam consumidores hipossuficientes, geram preocupações das autoridades de defesa da concorrência. Tais autoridades passam a examinar com muito mais cuidado não só as operações de M&A em si, visando a evitar o aumento do poder de mercado que poderia facilitar a implementação de condutas abusivas das empresas resultantes das fusões, mas também outras práticas comerciais potencialmente exclusionárias, como, contratos de exclusividade, cláusulas de paridade[2], recusa de contratar, discriminação, entre outras.

A autoridade brasileira de defesa da concorrência, o Cade, parece estar acompanhando esse movimento. Ainda que não tenha iniciado investigações a respeito de condutas específicas de empresas da indústria dos jogos eletrônicos, o Cade já analisou operações de aquisição no setor e emitiu pareceres que indicam algumas balizas para as suas análises futuras, no contexto das peculiaridades da economia brasileira, permitindo aos players antecipar preocupações.[3]

Essas análises recentes do Cade foram feitas porque os grupos econômicos envolvidos nessas operações faturaram, de um lado, mais do que R$ 750 milhões e, de outro, mais de R$ 75 milhões, no ano anterior à assinatura dos contratos. Por terem envolvido grupos com esses portes econômicos, as operações foram consideradas de notificação obrigatória ao Cade. Mas vale observar que é possível que operações envolvendo desenvolvedoras de menor porte, que não preencham esse critério de notificação obrigatória, sejam analisadas pelo Cade, se a autoridade entender que tem interesse na análise, determinando a sua notificação para exame em até um ano da sua consumação.

Recentemente, sem fixar ainda definições de mercados relevantes precisas, o Cade fez um exame dos cenários de concentração horizontal e integração vertical envolvidos no segmento de comercialização dos jogos eletrônicos em todas as plataformas (PCs, dispositivos móveis e consoles como PlayStation e Xbox)[4]. O quadro abaixo indica os jogos mais populares para uso em computadores pessoais e nos principais consoles disponíveis no mercado brasileiro:

PCPlayStation 5Xbox Series X|SMinecraft (Microsoft)Fornite (Epic)Fornite (Epic)The Sims 4 (EA)Grand Theft Auto V (Take Two)Call of Duty: MW / Warzone (Activision Blizzard)Fortnite (Epic)Call of Duty: MW / Warzone (Activision Blizzard)Grand Theft Auto V (Take Two)Counter-Strike: Global Offensive (Valve)FIFA 22 (EA)Fall Guys (Epic)League of Legends (Riot)Fall Guys (Epic)MultiVersus (Warner)Roblox (Roblox)MultiVersus (Warner)Minecraft (Microsoft)Valorant (Riot)Apex Legends (EA)Apex Legends (EA)Grand Theft Auto V (Take Two)NBA 2K22 (Take-Two)Roblox (Roblox)Fall Guys (Epic)Minecraft (Microsoft)Forza Horizon 5 (Microsoft)Call of Duty: MW / Warzone (Activision Blizzard)Tony Hawk’s Pro Skater 1+2 (Activision Blizzard)Tom Clancy’s Rainbow Six: Siege (Ubisoft)

Fonte: Elaboração própria com base na tabela da SG/Cade nos autos do AC 08700.003361/2022-46

Em seu exame dos mercados relevantes afetados pelas operações que lhes foram submetidas, o Cade não considerou necessário examinar um cenário de definição de um “mercado de atenção”[5] mais amplo (em que seriam reunidas como concorrentes diretas todas as empresas que disputam a atenção dos usuários dos jogos eletrônicos) apesar de existir, em tese, a possibilidade de substituição dos jogos eletrônicos por outros produtos de entretenimento, do ponto de vista dos usuários[6].

Ademais, o Cade não fez distinção entre jogos eletrônicos “AAA” e “indie”[7]. Sobre o tema, cabe mencionar que os jogos “indie” normalmente demandam, para sua produção, um orçamento significativamente menor do que os jogos “AAA”, que são famosos por suas produções gráficas sofisticadas, dependentes de investimentos elevados em questões técnicas e em marketing.

Assim, vale acompanhar a atuação futura do Cade em relação a definições de mercados relevantes afetados por eventuais novas operações envolvendo desenvolvedoras e distribuidoras de jogos eletrônicos, principalmente levando em consideração as diferenças entre serviços de jogos em nuvem e consoles.

Quanto a preocupações a respeito de fechamento de mercado, no caso de operações com integrações verticais, como aquelas envolvendo, por exemplo, desenvolvedoras, publishers e distribuidoras, o Cade tem se mostrado cauteloso, avaliando, corretamente, a nosso ver, vários cenários de mercados relevantes.

Seguindo os parâmetros da Resolução Cade 33/2022 (artigos 6º e 8º, inciso IV) e do Guia de Análise de Atos de Concentração, o Conselho tem decidido que as concentrações envolvendo partes verticalmente relacionadas que não detenham participações nos mercados relevantes de sua atuação superiores a 30% não suscitam preocupações concorrenciais, decidindo pela aprovação de tais concentrações.

Daí a importância de o Cade se dedicar ainda mais a entender as peculiaridades do setor de jogos eletrônicos e se debruçar sobre as definições de mercados relevantes a serem usadas em suas análises, dado que as condições de concorrência podem mudar muito rapidamente, sobretudo em decorrência dos níveis crescentes de investimentos para a atração de usuários dos jogos eletrônicos para suas plataformas de distribuição e os rendimentos gerados nessas relações de distribuição.

Em outra análise recente, o Cade manifestou-se no sentido de que as características da indústria de jogos eletrônicos no Brasil dificultam que uma desenvolvedora tenha incentivos econômicos para disponibilizar seus jogos a apenas uma distribuidora, mitigando os riscos de exclusividade.[8] O Cade considerou um contexto em que os usuários estão cada vez mais interessados em conteúdos digitais e menos interessados nas mídias físicas dos jogos eletrônicos.

Dada essa constatação, a autarquia não reconheceu como plausível a ideia de que haveria a adoção de exclusividade na distribuição de determinados jogos eletrônicos, a partir da operação de aquisição da distribuidora pela desenvolvedora. Muito relevante, portanto, foi a capacidade das empresas de demonstrar as características da indústria de jogos eletrônicos no Brasil e os incentivos econômicos relacionados à manutenção, ou não, de cláusulas de exclusividade.

Nesse diapasão, vale observar que operações de M&A envolvendo produção e distribuição de jogos eletrônicos também trazem discussões importantes e sofisticadas sobre o incentivo à inovação, não só nos enredos e artes visuais aplicadas no desenvolvimento dos produtos, mas também no uso de novas tecnologias.

Se por um lado, a aquisição de uma desenvolvedora por uma empresa (seja desenvolvedora, seja distribuidora) que não tenha o compromisso em manter os incentivos adequados para a produção de novos títulos pode afetar a variedade dos jogos eletrônicos à disposição dos usuários, prejudicando tais consumidores, por outro, aquisições de desenvolvedoras de jogos podem gerar apropriação de investimentos relevantes e efeitos positivos no que tange à garantia de produção de novos e melhores jogos, ainda mais diferenciados e apreciados pelos consumidores. Há estudos, inclusive, que indicam que a qualidade dos jogos tende a aumentar após a aquisição das desenvolvedoras, impactando a performance de vendas.[9]

Faz sentido, assim, que as empresas da indústria dos jogos eletrônicos se preocupem em se aproximar das autoridades de defesa da concorrência com o objetivo de explicar, com detalhes, as características do setor, para que tais autoridades tenham os elementos necessários para cumprir o papel de proteger a livre concorrência, de modo a gerar ainda mais escolhas para os consumidores, sem, no entanto, interferir demasiadamente nos incentivos à inovação.


[1] Disponível em <https://www2.deloitte.com/content/dam/Deloitte/br/Documents/technology-media-telecommunications/deloitte-tendencias-midias-digitais-2022-16-ed.pd>

[2] ATHAYDE, Amanda. Novos rumos para as Cláusulas de Paridade-MFN no Brasil? Disponível em: <https://www.amandaathayde.com.br/single-post/2018/04/06/novos-rumos-para-as-cl%C3%A1usulas-de-paridade-mfn-clauses-no-brasil>

[3] Atos de Concentração nº 08700.003361/2022-46 (Requerentes: Microsoft Corporation e Activision Blizzard, Inc.), nº 08700.006064/2020-91 (Requerentes: Microsoft Corporation e Zenimax Media Inc.) e nº 08700.005843/2016-92 (Requerentes: Ubisoft Entertainment S.A. e Vivendi S.A.).

[4] “De todo modo, esta SG/Cade entende que a análise da Operação em tela prescinde de uma definição exata do mercado relevante, uma vez que as informações apresentadas pelas Requerentes e coletadas ao longo da instrução permitem o exame tanto de um cenário mais amplo – considerando a publicação de jogos para todos os dispositivos, sem segmentação – quanto de recortes mais específicos – publicação de jogos para (i) PCs, (ii) consoles e (iii) dispositivos móveis. Além disso, como se verá adiante, as conclusões da análise concorrencial seriam as mesmas independentemente do cenário adotado.” Ato de Concentração nº 08700.003361/2022-46 (Requerentes: Microsoft Corporation e Activision Blizzard, Inc.).

[5] NEWMAN, John M. Antitrust in Attention Markets: Definition, Power, Harm. University of Miami Legal Studies Research Paper No. 3745839. Disponível em: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3745839

[6] “As Requerentes sustentam que, no mercado de licenciamento, os publicadores de jogos competem não apenas com outros players da indústria de videogames, mas “com quaisquer detentores de direitos de conteúdo de entretenimento licenciável – como, filmes, programas de TV, desenhos animados, direitos de imagem de celebridades, times esportivos, etc. – que poderiam ser usados para produzir produtos licenciados, como, roupas, acessórios, livros, itens para casa, etc.”. Nessa senda, defendem que o licenciamento de direitos para produtos de consumo constituiria um mercado relevante único, independentemente do tipo de produto ou de conteúdo licenciado. […] O que se observa, portanto, é que a definição de mercado produto sugerida pelas Requerentes – e não contestada por nenhum dos agentes oficiados ao longo da instrução processual – vai ao encontro daquela considerada pelo Cade nos precedentes Disney/Fox e Microsoft/Zenimax, não havendo, por ora, qualquer razão apta a justificar a adoção de posicionamento distinto. Dessa forma, define-se o mercado de licenciamento para produtos de consumo sob a dimensão produto.” Ato de Concentração nº 08700.003361/2022-46 (Requerentes: Microsoft Corporation e Activision Blizzard, Inc.).

[7] A classificação “AAA” “é utilizada pela indústria de videogames para designar os jogos com maiores orçamentos e valores de produção e promoção.” (AC 08700.003361/2022-46). Os jogos “indie” são aqueles produzidos por desenvolvedores/estúdios independentes, normalmente sem o subsídio financeiro elevado.

[8] “Com efeito, os resultados da investigação de mercado conduzida pela SG/Cade sugerem que o catálogo de jogos disponíveis para cada plataforma, considerado em termos de qualidade e quantidade, é um dos fatores que exercem maior influência sobre a escolha do consumidor por um determinado hardware de jogos”. Ato de Concentração nº 08700.003361/2022-46 (Requerentes: Microsoft Corporation e Activision Blizzard, Inc.).

[9] “We further find that publishers fail to leverage developers’ capabilities for ongoing innovation as product innovativeness decreased post-acquisition. Lastly, acquisitions create value through enhanced inter-firm coordination resulting in higher quality products and increased sales performance.” Ishihara, Masakazu and Rietveld, Joost, The Effect of Acquisitions on Product Innovativeness, Quality, and Sales Performance: Evidence from the Console Video Game Industry (2002-2010) (January 10, 2017). Disponível em: https://ssrn.com/abstract=2897264 ou http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.2897264