Rumo à construção da cidadania digital
Notícias TRF 5ª Região (completas) 2022-03-02
A crescente transformação digital vem exigindo a ressignificação e a adaptação de princípios e direitos fundamentais, a fim de que estes possam ser efetivos instrumentos de proteção dos cidadãos.
No final de janeiro de 2022, o Parlamento Europeu, o Conselho da Europa e a Comissão Europeia deram um importante passo nesse sentido, ao proclamarem a chamada Declaração Conjunta Europeia sobre os direitos e princípios digitais para a década digital [1], que consubstancia importantes reflexões sobre o tema.
Dividida em seis capítulos, a declaração procura sintetizar os eixos principais a partir dos quais a ideia de cidadania digital deve ser construída, indicando desde já vários dos compromissos que serão necessários para tal objetivo.
Em seu capítulo 1, a declaração exige a priorização das pessoas no processo de transformação digital. A ideia é a de que a tecnologia deve sempre beneficiar os cidadãos, capacitando-os para seguirem com suas vidas e perseguirem suas aspirações em um contexto de segurança e respeito aos direitos fundamentais.
Tais objetivos certamente exigem o necessário reforço tanto da democracia, a fim de que a transformação digital melhore a vida de todas as pessoas, como também da responsabilidade e diligência de todos os atores digitais, sejam públicos e privados, dos quais dependem a vida digital dos cidadãos.
Em seu capítulo 2, a declaração trata da solidariedade e da inclusão, a partir do pressuposto de que a tecnologia deve unir – e não dividir – as pessoas, contribuindo para uma sociedade e uma economia mais justas. Consequentemente, ninguém pode ser deixado para trás, o que justifica especial cuidado com os mais vulneráveis, os idosos, as pessoas com deficiência e todos aqueles que são marginalizados.
Para que tais objetivos sejam atingidos, a declaração enfatiza a importância dos seguintes aspectos: 1) a responsabilidade social de todos os agentes econômicos que atuam nos mercados digitais, 2) a conectividade, a fim de que todos possam ter acesso aos meios digitais e a uma internet neutra e aberta, com alta velocidade e preços acessíveis; 3) a educação e o desenvolvimento das competências digitais; 4) condições de trabalho justas, saudáveis e seguras, assim como proteção adequada no ambiente digital, incluindo o direito dos trabalhadores de se “desligarem” e de se beneficiarem de salvaguardas para a conciliação entre a vida profissional e a vida familiar num ambiente digital e 5) acesso a serviços públicos digitais essenciais.
O capítulo 3 trata da liberdade de escolha e dos direitos dos cidadãos nas interações com algoritmos e com sistemas de inteligência artificial. A ideia fundamental é a de que a tecnologia não pode predeterminar a escolha das pessoas; pelo contrário, há de assegurar escolhas próprias e informadas no ambiente digital, assim como a proteção dos cidadãos contra os riscos e os danos para a sua saúde, a sua segurança e os seus direitos fundamentais.
Para isso, a declaração exige compromissos com 1) a transparência de algoritmos e sistemas de inteligência artificial, 2) a capacitação e a informação das pessoas quanto interagem com tais sistemas, 3) a qualidade dos dados utilizados pelos sistemas algorítmicos, a fim de se evitar a discriminação ilegal, 4) a supervisão humana dos resultados algorítmicos que afetam as pessoas, 5) a utilização de tecnologias que não determinam previamente as escolhas das pessoas, 6) o respeito à saúde, à educação, ao emprego e à vida privada, 7) a existência de salvaguardas para garantir que a inteligência artificial e os sistemas digitais sejam seguros e utilizados com pleno respeito aos direitos fundamentais das pessoas, 8) a existência de ambientes digitais protegidos e justos, atentos aos direitos dos usuários e 9) o maior delineamento do regime de responsabilidade das plataformas e dos grandes intervenientes e dos controladores de acesso.
O capítulo IV diz respeito à participação no espaço público digital, a fim de que todas as pessoas tenham acesso a um ambiente confiável, diversificado e multilíngue, partindo da premissa de que o acesso a conteúdos diversificados contribui para um debate público pluralista e inclusivo.
Sob essa perspectiva, uma das grandes preocupações da declaração é proteger a liberdade de expressão e a vedação de censura e intimidação, assim como assegurar maior transparência e divulgação de informações sobre quem possui ou controla os serviços de comunicação social.
Outra das preocupações da declaração é com as plataformas, diante do seu papel na formação da opinião pública e do discurso. Logo, delas se espera que possam apoiar o debate democrático, proteger a liberdade de expressão e atenuar os riscos decorrentes do mau funcionamento e da utilização inadequada dos seus serviços, nomeadamente para campanhas de desinformação.
Daí a necessidade de que plataformas tomem medidas para combater todas as formas de conteúdos ilegais proporcionalmente aos danos que podem causar, ainda que a declaração deixe claro que isso não estabelece quaisquer obrigações gerais de vigilância. Entretanto, ressalta a importância da crianção de ambiente no qual as pessoas estejam protegidas contra a desinformação e outras formas de conteúdos nocivos.
Já o capítulo V diz respeito à segurança, à proteção e à capacitação das pessoas, enfatizando o acesso a tecnologias, produtos e serviços digitais que sejam seguros, que protejam a privacidade desde a sua concepção e que incorporem medidas para a proteção da cibersegurança e da identidade digital, sobretudo contra tentativas de usurpação ou manipulação da identidade.
Um dos pilares do referido capítulo é a tutela da privacidade e o controle individual de dados, o que se estende ao direito à confidencialidade das comunicações. A declaração também menciona a portabilidade de dados, a especial proteção que deve ser conferida a crianças e jovens e o fato de que todas as pessoas devem poder decidir com autonomia sobre o seu legado digital e também sobre as informações publicamente disponíveis que lhes dizem respeito após a sua morte.
Por fim, o capítulo VI diz respeito à sustentabilidade, a fim de que os produtos e serviços digitais sejam concebidos, produzidos, utilizados, eliminados e reciclados de forma a minimizar o seu impacto ambiental e social negativo.
Mais do que isso, a preocupação com sustentabilidade requer 1) o reconhecimento do direito das pessoas a terem acesso a informações precisas e de fácil compreensão sobre o impacto ambiental e o consumo de energia dos produtos e serviços digitais, permitindo-lhes fazer escolhas responsáveis, 2) apoio, desenvolvimento e utilização de tecnologias digitais sustentáveis, com impacto ambiental e social mínimo; e 3) desenvolvimento e implantação de soluções digitais com um impacto positivo no ambiente e no clima.
Como se pode observar, os princípios da declaração Europeia endereçam várias das principais preocupações que existem no meio digital, buscando uma regulação da internet que seja transversal e que possa ser um fio condutor principiológico para regulações específicas, tais como a de proteção de dados, a de inteligência artificial, a das relações de trabalho, a ambiental e a de plataformas ou gatekeepers, dentre outras.
Ainda que voltada para os cidadãos europeus, é inequívoca a pretensão universal da declaração, de modo que os seus princípios e direitos passam a ser importantes referências nas importantes discussões que outros países, como é o caso do Brasil, hoje travam em torno das referidas matérias.
Sob essa perspectiva, a mera existência da declaração já cumpre um importante papel: alertar o mundo para a necessidade e a urgência de se pensar nos contornos da cidadania digital, bem como de se empreender esforços consistentes para realizar essa mais importante dimensão dos direitos fundamentais.
[1] https://digital-strategy.ec.europa.eu/en/library/declaration-european-digital-rights-and-principles#Declaration