Feminicídio político: um enfoque criminológico sob o paradigma do caso Marielle
JOTA.Info 2024-04-20
Este artigo explora o conceito emergente do feminicídio político, buscando lançar luz sobre a intersecção entre gênero, raça e política nas estruturas de poder brasileiras. Através de uma análise criminológica, propõe-se a compreender a dinâmica e as consequências da violência dirigida contra mulheres na política, particularmente as de ascendência africana/povos originários e provenientes de comunidades marginalizadas.
Utilizando o caso emblemático da vereadora Marielle Franco, este estudo visa não apenas reconhecer o feminicídio político como uma categoria distinta de crime, mas também promover um debate jurídico e social acerca das medidas necessárias para sua prevenção e punição.
Caso Marielle Franco
Marielle Franco foi vereadora da cidade do Rio de Janeiro para a legislatura de 2017-2020, tendo sido a 5ª mais votada nas eleições de 2016. Mesmo assim, foi eleita e exercia seu papel momentos antes de seu falecimento. A vereadora era uma mulher preta periférica, defensora dos direitos humanos, feminista, fazia parte da comunidade LGBTQIAP+ e veio de origem pobre.
Após anos de investigação, Ronnie Lessa celebrou acordo de delação premiada e apontou o conselheiro do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro Domingos Brazão e seu irmão, o deputado federal Chiquinho Brazão, como mandantes do crime. A motivação, segundo relatado na delação, possivelmente seria a atuação de Marielle em questões fundiárias do Rio de Janeiro, o que atrapalharia os negócios de milicianos.
A ascensão das mulheres na política brasileira tem sido marcada por uma lenta progressão e desafios significativos, exacerbados por estruturas patriarcais e raciais arraigadas.
Nessa linha de pensamento, vale ressaltar o texto de Renata Souza:
“O patriarcado deixou o legado de invisibilização das mulheres em vida e em morte. E não seria diferente com aquelas que ousaram e ousam estar na linha de frente da política, seja esta institucional ou não. O feminicídio político traz consigo uma das faces mais cruéis da vulnerabilidade da mulher na vida política”.
A execução de Marielle foi levada a cabo no momento em que deixou claras suas intenções políticas. Assim, após esse caso paradigmático que saltou aos olhos do povo brasileiro, destaca-se a urgente necessidade de abordar a violência política de gênero no país.
No texto de coautoria de Ela Wiecko de Castilho, professora da Universidade de Brasília, reforça-se a opinião de que “Marielle poderia ter sido morta por muitas razões, mas morreu porque conquistou uma parcela de poder”.
A morte de Marielle explora a dimensão e os contornos do feminicídio político no Brasil. Sua execução não foi apenas um ato de violência individual, mas um símbolo das tensões e conflitos inerentes ao ingresso de mulheres negras e de comunidades marginalizadas na política. A análise deste caso permite entender como o feminicídio político se manifesta e é perpetuado dentro de contextos sociais e políticos específicos.
O feminicídio no Brasil
Buscando diminuir a quantidade de mulheres que eram mortas e violentadas em contexto familiar, em 2006, foi criada a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), à partir do caso concreto de Maria da Penha Maia Fernandes, brasileira que foi vítima de violência doméstica e se tornou símbolo da luta contra esse tipo de violência após sobreviver a tentativas de homicídio por parte de seu então marido.
Com o advento da Lei 13.104/2015, o feminicídio se tornou um homicídio qualificado, bem como crime hediondo. Com isso, é imperioso alertar que o feminicídio não é um tipo penal autônomo, mas uma qualificadora do crime de homicídio, elevando a pena que seria de 6 a 20 anos para uma pena de 12 a 30 anos.
A qualificadora do feminicídio agravou a reprimenda punitiva àqueles que cometem violência contra a mulher, gerando um senso de reprovabilidade ainda maior na tentativa de frear ou ao menos dissuadir a cotidiana violência de gênero.
O feminicídio político, por sua vez, não está descrito no dispositivo legal. Entretanto, ele surge de um entendimento através da criminologia, como uma forma específica de violência contra a mulher. Ocorre que ainda não há entendimentos jurisprudenciais nesse sentido, muito menos projetos de lei para considerar o feminicídio político como uma das possibilidades de qualificadora.
A Lei Maria da Penha descreveu no seu artigo 7º as formas de violência doméstica e familiar contra a mulher. O artigo traz um rol exemplificativo, o que nos permite uma interpretação analógica para entender o feminicídio político como uma forma de violência contra a mulher.
Importante salientar, ainda, que no caso do homicídio de Marielle foi pautada uma discussão acerca da possibilidade dos envolvidos responderem pelo crime de feminicídio, tendo sido pontuada a hipótese de configuração de feminicídio político. Esse aspecto, entretanto, será pautado em tópico próprio.
O feminicídio político
O reconhecimento e a compreensão do feminicídio político são passos essenciais para desmantelar as estruturas de poder que perpetuam a violência contra mulheres na política. É preciso estimular a reflexão e o debate sobre a urgência de reconhecer e abordar o feminicídio político no Brasil, considerando suas raízes profundas em estruturas de gênero e raça e buscando caminhos para a justiça e a equidade no espaço público.
O feminicídio político é entendido como o assassinato de mulheres em razão de suas funções, posições ou aspirações políticas, frequentemente interligado a questões de gênero e raça. Este conceito transcende a definição legal de feminicídio, introduzida na legislação brasileira pela Lei 13.104, de 2015. Isso pois entende-se que incorpora elementos específicos da violência política e simbólica contra mulheres no espaço público.
Do ponto de vista criminológico, o feminicídio político pode ser visto como um fenômeno multidimensional, no qual fatores sociopolíticos, culturais e econômicos convergem para criar um ambiente hostil às mulheres na política. A violência dirigida a essas mulheres não se limita ao ato físico do assassinato, mas inclui também uma violência simbólica e discursiva, que visa silenciar e marginalizar suas vozes.
A falta de reconhecimento legal específico do feminicídio político no Brasil implica na necessidade de reformas legislativas que possam abordar adequadamente essa forma de violência. Isso inclui não apenas a tipificação do feminicídio político como qualificadora do crime de homicídio, mas também a implementação de medidas de proteção para mulheres na política e o fortalecimento das instituições responsáveis pela investigação e punição desses crimes. Salienta-se que ainda encontramo-nos distantes desta atualização legislativa, tendo em vista o caráter neonato da expressão.
Trazendo ainda o caso paradigmático, há um claro componente de gênero na morte de Marielle, na análise de Janaína Penalva:
“Como Marielle estava em um confronto direto com o Estado e o poder paralelo (milícias), como suas pautas pela justiça social e igualdade eram incômodas a muitos setores da política e do crime organizado, e como ela se propunha claramente a denunciar ilegalidades, sustentar a tese do feminicídio poderia parecer impreciso” (Homicídio ou feminicídio? Uma análise do caso Marielle Franco, a partir da dicotomia entre as esferas pública e doméstica In: 1988-2018: o que constituímos?: homenagem a Menelick de Carvalho Netto nos 30 anos da Constituição de 1988. Belo Horizonte: Editora Conhecimentos Livraria e Distribuidora, 2019. p. 221–232)
Durante a investigação do caso da morte de Marielle, surgiu o Incidente de Deslocamento de Competência nº 24 – DF (2019/0280084-4). Nele, como já mencionado, foi levantada a tese, de forma paralela, de que os réus respondessem por feminicídio, na forma do feminicídio político. Essa hipótese foi trazida pelo ministro Rogerio Schietti, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em trecho que destaca-se:
“Daí por que parece mais apropriado afirmar que se tratou, em verdade, de um verdadeiro feminicídio político, o assassinato de uma mulher que, nesta condição e como vereadora, lutava contra as desigualdades de gênero, de raça e classe. […] No caso de Marielle, tudo parece indicar uma situação ainda de maior repulsa discriminatória, por sua origem, cor de pele, classe social e orientação sexual, algo que poderia refletir uma discriminação interseccional”.
Assim, o feminicídio político não está apenas no campo sociológico ou criminológico, mas tem sido questionado por importantes autoridades jurídicas, que ressaltam que situações como a de Marielle trazem a necessidade de refletir sobre a punição dos réus de forma categórica, ao entender que a motivação não foi apenas de caráter pessoal, mas a intenção de matar toda uma ideologia política.
Uma mulher em cargo de poder ousou enfrentar homens que enxergam distorcidamente seu papel de subserviência. Marielle lutou bravamente com seus ideais que enfrentam estruturas de poder machista e essa foi a causa do seu assassinato. Mesmo assim, a compreensão de que ela foi vítima de feminicídio político ainda não pode ser trazida de maneira pacífica pela jurisprudência, assim, os mandantes e assassinos não responderão pelo crime que realmente foi cometido: feminicídio político.
Marielle não foi a primeira, relembrando o caso da irmã Dorothy Stang, que desafiou coronéis latifundiários no Pará. E, infelizmente, Marielle não será a última. Enquanto mulheres não ocuparem espaços de poder com normalidade, situações como essas estarão sujeitas a acontecer. Para enfrentá-las de forma justa, é preciso difundir o conceito de feminicídio político, para futuramente, quem sabe se tornar norma legal e penalizar adequadamente futuros agressores.
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