Crítica feminista ao PL que regulamenta pesquisa clínica com seres humanos

JOTA.Info 2024-05-07

No último dia 23 de abril, o Senado aprovou o PL 6007/2023, que cria regras para pesquisas com seres humanos e trata do controle das boas práticas clínicas por meio dos comitês de ética em pesquisa (CEPs).[1] Encarado com receio por estudiosos do tema, são muitas as críticas ao texto que agora segue para sanção presidencial.

Dentre elas, e tomando-se a ótica de uma bioética feminista[2], uma das principais falhas do texto aprovado é a não exigência de uma adequada representação de mulheres nos estudos clínicos, em consonância com a prevalência da doença a que se visa combater.[3]

Por décadas, mulheres foram sistematicamente excluídas de pesquisas sobre medicamentos ou tratamentos, graças a uma mentalidade segundo a qual os achados verificados nos homens, por não estarem sujeitos à interferência do ciclo menstrual e da menopausa, seriam mais confiáveis – ideia que ganhou ainda mais força com a tragédia da talidomida.

Como se sabe, no final dos anos 1950, a talidomida foi o grande divisor de águas na regulação de medicamentos e pesquisas clínicas, na medida em que evidenciou a necessidade de métodos sistemáticos para o estudo das reações adversas produzidas por medicamentos e da sua segurança.

Nos Estados Unidos, como resposta, o Congresso editou em 1962 as chamadas Kefauver-Harris Amendments, que fortaleceram a responsabilidade da agência Food and Drug Administration (FDA) de instituir e revisar procedimentos para acompanhamento dos ensaios clínicos sobre a segurança e eficácia de novos medicamentos.

Na sequência, em 1977, a agência editou um documento de boas práticas[4] que basicamente incentivava a exclusão de mulheres em idade fértil dos estudos clínicos de fase I e II, a fim de minimizar riscos para um eventual feto (ou nascituro, na linguagem jurídica). Esse guia é apontado, até hoje, como responsável pela exclusão ou sub-representação de mulheres nos estudos clínicos que se seguiram.

No final da década de 1980, absolutamente insatisfeitas com o cenário das pesquisas clínicas nos EUA, mulheres pesquisadoras passaram a pressionar o Instituto Nacional de Saúde americano (NIH), sustentando a necessidade de serem devidamente representadas nas pesquisas clínicas. Essa insatisfação culminou, em 1993, no NIH Revitalization Act. Desde então, o NIH não pode custear, mesmo que parcialmente, quaisquer pesquisas que não cumpram com estas determinações.

Apesar disso, um relatório do United States General Accounting Office demonstrou que, entre 1997 e 2001, 8 das 10 medicações retiradas do mercado norte-americano pela FDA apresentavam maiores riscos de saúde para mulheres do que para os homens.[5]

E ainda que se considerem as limitações metodológicas do relatório[6], fato é que as conclusões ali apresentadas causaram justificado alarme entre defensores da causa das mulheres.

Além disso, o lançamento do clássico livro Exploring the Biological Contributions to Human Health: Does Sex Matter? trouxe conclusão categórica no sentido de que existem diferenças entre homens e mulheres a nível celular e molecular, que deveriam ser reconhecidas como uma importante variável na pesquisa clínica.[7]

Com isso, inaugurou-se a linha de pesquisa em saúde pública conhecida como sex-based biology, que incorporou no campo da saúde a diferenciação entre “sexo” e “gênero”, sendo o primeiro relativo à origem cromossômica de uma pessoa (também chamada de biológica) e o segundo representativo da identificação sociocultural de um determinado sexo.

Ou seja, por mais óbvio que isso possa parecer para alguns, corpos femininos e corpos masculinos apresentam diferenças para muito além de seus sistemas reprodutivos, que merecem atenção por todos os envolvidos na pesquisa clínica.

As diferenças entre corpos são observadas em uma série de doenças, em todos os seus estágios: desde a prevalência (mulheres são mais acometidas por incontinência urinária, lúpus e esclerose múltipla); o diagnóstico (mulheres e homens apresentam diferentes sintomas de infarto, por exemplo, sendo os sintomas femininos muitas vezes confundidos com sintomas de ansiedade); a severidade (algumas infecções sexualmente transmissíveis podem ter complicações a longo prazo em mulheres); e nos desfechos.

Somente um número adequado de participantes mulheres nos estudos clínicos, que acompanhe os índices de prevalência das doenças, bem como uma adequada referência e descrição das diferenças porventura encontradas ao longo das pesquisas são capazes de garantir a devida segurança dos medicamentos e tratamentos consumidos pelo público feminino.

Trata-se, em suma, de um direito fundamental das mulheres à saúde, que merece atenção urgente e que poderia ser garantido em maior amplitude nesse momento histórico legislativo. Infelizmente, no texto aprovado pelo Senado, há previsão tímida no inciso VI, do parágrafo único do art. 3º, segundo o qual se exige a “participação de representantes de ambos os sexos e de segmentos raciais constitutivos da sociedade, quando essencial para a pesquisa e não gerar qualquer tipo de prejuízo para seu andamento”.[8]

A redação é insuficiente e não surpreenderá que o resultado continue sendo o de sub-representação feminina nas pesquisas clínicas. O que se deveria buscar é representatividade adequada, em número compatível com a prevalência da doença em cada um dos sexos, sem exceção.[9]

Ou seja, não basta que mulheres sejam incluídas nos estudos, mas elas precisam ser incluídas em números que guardem proporção com a porcentagem de mulheres afetadas pela doença combatida, sob pena de termos no mercado nacional medicações que não foram suficientemente testadas nesse público.

Além disso, sob uma perspectiva de gênero, a expressão “não gerar qualquer tipo de prejuízo para seu andamento” é ainda mais problemática. Pesquisadores de centros de pesquisa clínica relatam maior dificuldade no convencimento de mulheres para participação nos ensaios porque elas têm dificuldades concernentes ao trabalho de cuidado: elas se perguntam quem cuidará dos afazeres domésticos, do cuidado de crianças e idosos da família e quem vai levá-las e acompanhá-las ao centro de pesquisa, perguntas que não costumam ser feitas por participantes homens. O que deveríamos buscar é mecanismos que permitam a estas mulheres a participação nos estudos e não descartá-las sob a alegação de prejuízo ao andamento da pesquisa.

Esta é, evidentemente, mais uma das discussões que deveria ser perpassada pelos marcadores sociais da diferença de sexo e de gênero, mas infelizmente o debate jurídico sobre o tema ainda parece estar engatinhando.


[1] A respeito da aprovação, vale conferir a matéria da Agência Senado, disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2024/04/23/senado-aprova-regras-para-pesquisas-clinicas-com-seres-humanos. Acesso em 3.mai.2024.

[2] A bioética feminista é uma abordagem que visa combater as generalizações e abstrações que não respeitam diferenças raciais, étnicas, sociais, etárias e de gênero. Cf. DINIZ, Débora. GUILHEM, Dirce. O que é bioética. São Paulo: Brasiliense, 2012, p, 97.

[3] O assunto foi analisado em maior profundidade por esta autora em: FIGUEIREDO, Anna Ascenção Verdadeiro de. Pesquisa clínica, sexo e gênero: a devida inclusão de mulheres como participantes de estudos clínicos. Revista da Escola da Magistratura Regional Federal: Tribunal Regional Federal da 2ª Região, Rio de Janeiro, v. 40, p. 81-97, maio/out. 2024.

[4] Disponível em https://www.fda.gov/media/71495/download. Acesso em 3.mai.2024.

[5] UNITED STATES GENERAL ACCOUNTING OFFICE. Drug Safety: Most Drugs Withdrawn in Recent Years Had Greater Health Risks for Women. Washington, Estados Unidos da América: 2001. Disponível em https://www.gao.gov/assets/gao-01-286r.pdf. Acesso em 3.mai.2024.

[6] A retirada de quaisquer medicações do mercado não pode levar à conclusão imediata de que as drogas são per se inseguras, mas sim menos seguras quando comparados com outras opções disponíveis e igualmente efetivas., além do problema prático de que o uso das medicações pode ter se dado em desacordo com a bula, por período mais extenso do que o permitido ou em combinação com outros medicamentos contraindicados, com ou sem acompanhamento médico.

[7] INSTITUTE OF MEDICINE – US COMMITTEE ON UNDERSTANDING THE BIOLOGY OF SEX AND GENDER DIFFERENCES. Exploring the Biological Contributions to Human Health – does sex matter?, 2001. Disponível em https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK222288/. Acesso em 3.mai.2024.

[8] O texto atualizado pode ser consultado em https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9590926&ts=1714760716981&disposition=inline. Acesso em 3.mai.2024.

[9] Isso significa dizer que, se a prevalência de uma determinada doença é maior no sexo feminino do que no masculino, a representatividade adequada para a respectiva pesquisa é, inclusive, superior a 50% (cinquenta) por cento de participantes mulheres. Por outro lado, para doenças que acometam mais homens do que mulheres, um percentual menor de mulheres no estudo também não seria problemático.