Corrupção não se presume

JOTA.Info 2024-05-21

Há tempos alertei aqui que corrupção não é bom guia para reformas do Estado. Reitero o aviso, mas receio que ele seja inócuo. No Brasil de hoje, qualquer iniciativa será avaliada sobre o crivo de eventuais impactos no combate à corrupção.

Nesse texto, chamo de corrupção a prática de obter vantagem indevida por meio do exercício de função pública.

Rendo-me ao contexto e retomo o assunto, desta vez para expor algumas simplificações que podem contaminar o debate.

Segue lista com recomendações que, em tempos outros, seriam tomadas como acacianas:

  • Probos são aprovados em concurso e nomeados para cargos ou empregos públicos. Mas também ocupam cargos em comissão. Gente de má índole é nomeada por concurso e pode, igualmente, exercer cargos comissionados. Portanto, virtude ou vício não são presumíveis a partir da natureza do vínculo que une o agente público à entidade estatal.
  • O agente público pode receber vantagem indevida para praticar atos ilícitos, mas também pode se corromper para simplesmente fazer o que deve. É necessário, portanto, separar a punição dos corruptos da análise sobre a validade do ato praticado em troca do benefício indevido.
  • Há quem seja contratado por licitação sem corromper. Há também quem seja contratado sem licitação de maneira ilibada. Empresas com más práticas participam de licitação e as vencem por causa da concessão de benefícios indevidos a agentes públicos, o que de igual modo pode ocorrer em situações de contratação direta. Portanto, não se deve presumir virtude de quem for contratado por licitação, nem supor vício de quem é contratado diretamente.
  • Contratos com sobrepreço podem ou não estar associados à prática de corrupção. Contratos com preços adequados e até com preço muito baixo, do mesmo modo, podem ou não gerar corrupção. É comum que empresas com más práticas vençam licitações com propostas agressivas e usem a corrupção para tornar os contratos viáveis economicamente. Portanto, o preço alto não deve ser supervalorizado na identificação da corrupção.
  • A reputação institucional de entidades estatais não está relacionada ao nível de discricionariedade de suas atribuições. Há corrupção no exercício de competências discricionárias ou vinculadas. O desvio de conduta é facilitado por fatores pessoais, estruturais e procedimentais e não pela natureza da competência exercida. A lavratura de um auto de infração, ato de natureza vinculada, realizada por agente isolado, é mais exposta a desvios do que a negociação de um acordo, com espaço para apreciação discricionária, se realizada em procedimento que envolva vários agentes, com decisões motivadas e transparentes.

Corrupção não se presume.

Ela não é provocada ou evitada por formalidade ou instituto jurídico específico.

Por isso, não se deve pautar reformas ou interpretações na expectativa de, com meras mudanças formais, se criarem barreiras efetivas à corrupção. É preciso dar mais atenção a outras razões que levam agentes públicos e privados a buscar vantagens indevidas nas relações de direito público.