Entenda o julgamento da Suprema Corte dos EUA que afirmou a imunidade de Trump
JOTA.Info 2024-07-03
O ex-presidente Donald Trump estava sendo processado criminalmente na Justiça Federal dos EUA por suposta tentativa de subverter os resultados das eleições presidenciais de 2020. Seus advogados alegaram que ele não poderia ser processado criminalmente por atos praticados durante a presidência, pois a Constituição garantiria certos privilégios institucionais ao chefe do Poder Executivo, dentre os quais a imunidade criminal.
O argumento central é o de que se os presidentes pudessem ser processados e condenados criminalmente por atos praticados no exercício do poder, sua capacidade de governar seria duramente afetada, na medida em que o chefe do Executivo, temendo futuros julgamentos penais, poderia deixar de adotar medidas necessárias onde houvesse o menor risco de potencial enquadramento em tipo penal, enfraquecendo assim, consideravelmente, seu poder constitucional.
A tese apresentava alguns desafios jurídicos e políticos para a Suprema Corte. Primeiro, a absoluta inexistência de precedente na matéria. Nunca antes na história dos EUA um ex-presidente foi processado criminalmente por atos praticados durante a presidência. Segundo, a Constituição não tem uma cláusula expressa sobre os privilégios e imunidades do presidente da República, diferentemente, por exemplo, do que ocorre com o Legislativo. Terceiro, a questão a ser decidida era uma preliminar processual (imunidade de jurisdição), e o caso foi admitido excepcionalmente na Suprema Corte antes mesmo que houvesse uma sentença em primeiro grau.
Quarto, o julgamento se dá em uma corte extremamente dividida ideologicamente, e contaminada pela polarização da sociedade e em momento em que sua avaliação de prestígio pelo público se encontra no ponto mais baixo já registrado por pesquisas de opinião.
Como era de se esperar, a corte proferiu um julgamento em linhas claramente ideológicas. Os seis Justices conservadores votaram por afirmar a imunidade presidencial e os três magistrados liberais por negá-la. O resultado foi extremamente benéfico a Trump, que nomeou três dos juízes que votaram com maioria.
O desfecho não significa, no entanto, que ele está livre de uma condenação criminal, pois o processo “volta à estaca zero” e deverá recomeçar observando-se os parâmetros afirmados pela Suprema Corte, já que ela deixou uma porta aberta para a responsabilização criminal, na hipótese de atos “não oficiais” praticados pelo presidente.
O voto da maioria foi redigido pelo presidente da corte, John Roberts, o que é costumeiro quando o tribunal julga “grandes casos”. O voto da minoria, bastante incisivo, foi redigido pela juíza Sonia Sotomayor, a decana dentre os liberais. Para além do conteúdo, percebe-se nas palavras de ambos, em certos trechos, um tom belicoso e ácido, inusual em decisões da corte, o que demonstra que a polarização política da sociedade americana penetrou naquele tribunal.
Em seu voto, o presidente Roberts reconhece que a Constituição não contém cláusula explícita assecuratória de imunidade presidencial, porém sustenta que ela decorre, implicitamente, do sistema de separação de Poderes. Sustenta que o Executivo, diferentemente do Legislativo e do Judiciário, é um poder uno não colegial, para cujo exercício se requer ampla capacidade de decisão pessoal, livre de constrangimentos quanto à necessidade de se adotar medidas para as atribuições que lhe são determinadas, o que inclui a política externa, a execução das leis e a supervisão de toda a administração federal.
Caso o presidente temesse sofrer processos criminais em razão de decisões graves que precisa adotar (muitas vezes com urgência), sua capacidade de exercer o governo seria diminuída. Para sustentar sua decisão, Roberts cita trechos da obra fundante do Direito Constitucional americano, Os Artigos Federalistas, nos quais as características de “força e determinação” do poder executivo são ressaltadas.
Embora a tese faça sentido, ela é bastante problemática, como apontou a divergência de Sotomayor. Isso porque a Constituição, ao tratar do impeachment, estabelece que o julgamento político do presidente pelo Senado não afasta a possibilidade de que o presidente responda, pelo mesmo ato, criminalmente. E nos mesmos Artigos Federalistas há referência feita por Alexander Hamilton de que o presidente não está acima da lei e pode ser julgado pelos tribunais ordinários caso cometa algum crime.
A solução de Roberts para essa aparente incoerência foi afirmar que o presidente pode sim ser responsabilizado criminalmente, mas apenas por atos “não oficiais”, ou seja, que não estejam relacionados ao exercício do cargo. Bem, essa distinção entre atos oficiais e não oficiais também não está explícita na Constituição, mas aqui também o redator da decisão entendeu se tratar de uma norma implícita, recorrendo à jurisprudência da própria corte.
À falta de julgamentos anteriores específicos sobre a matéria, Roberts recorreu a um precedente pouco conhecido que envolveu o ex-presidente Richard Nixon e não está relacionado ao seu processo de impeachment, o caso Fitzgerald v. Nixon (1982).
Durante seu governo, o então presidente aprovou um decreto de reorganização da Força Aérea e em razão deste ato Arthur Ernest Fitzgerald, um oficial daquela arma, foi aposentado compulsoriamente. Ele entendeu que o ato tinha natureza persecutória e discriminatória, e processou a pessoa de Nixon quando este já não estava mais no governo, pedindo indenização de natureza civil.
A Suprema Corte, na ocasião, entendeu que o presidente não poderia ser responsabilizado civilmente por atos praticados no exercício do seu mandato, decorrentes de funções inerentes ao cargo, ou seja, atos de ofício. Se o presidente pudesse ser responsabilizado pessoal e civilmente por qualquer cidadão pelos atos administrativos praticados no cargo, isso implicaria em relevante diminuição de sua capacidade de governar, já que muitos atos necessários à administração deixariam de ser praticados por um Executivo atemorizado.
A analogia, entretanto, é questionável, pois a imunidade por ato administrativo (inerente à rotina do Poder Executivo) não tem a mesma racionalidade de uma responsabilização criminal decorrente de um ato de ofício.
Seja como for, a partir deste princípio, Roberts afirma a imunidade presidencial criminal para atos de ofício, porém não determina peremptoriamente o que deve ser entendido como ato oficial e ato não oficial. Sustenta que a corte não estaria em condições de estabelecer esta definição a priori, já que a questão ainda não foi debatida e julgada na instância inferior, sob essa perspectiva, na hipótese concreta.
Ou seja, o juízo de primeiro grau não definiu quais atos de Trump, ao negar o resultado das eleições, seriam “oficiais” ou “não oficiais”, questão complexa porque o indiciado estava na condição de presidente e candidato ao mesmo tempo.
A decisão cataloga três tipos de atos que deverão ser examinados pela instância inferior para se determinar se os mesmos eram oficiais ou não oficiais: a) atos relativos a autoridades administrativas que estavam subordinadas a Trump, especialmente o advogado-geral; b) atos relativos a interações entre o presidente e o vice-presidente; e c) atos relativos a autoridades estranhas à administração federal (ligadas, por exemplo, a governos estaduais) ou a particulares (como os manifestantes que se reuniram em Washington em 6 de janeiro de 2021).
No que diz respeito a ordens e orientações do presidente ao advogado-geral e demais membros da administração, a corte desde logo estabeleceu que os mesmos gozam de imunidade absoluta, não podendo ser questionados. Este é o ponto talvez mais sensível e perturbador da decisão, pois permite, em tese, que o presidente dê ordens ilegais aos seus subordinados, pelas quais não poderá ser processado, sendo controlado apenas pelo impeachment.
Quanto às interações do presidente com o vice-presidente, a decisão é mais nebulosa. Isso porque, no sistema americano (diferentemente do nosso), o vice-presidente preside o Senado, e nesta condição é responsável por apurar os votos do Colégio Eleitoral.
No dia 6 de janeiro de 2021, Trump tentou convencer seu vice, Mike Pence, a não aceitar os votos de delegados de cinco estados cujos resultados sua campanha tinha impugnado, substituindo-os por votos de delegados do Partido Republicano. A Suprema Corte, no voto da maioria, entendeu que quando o vice exerce a presidência do Senado, dispõe de certo grau de autonomia e não está subordinado ao presidente em todas as suas funções. Assim, as interações entre Trump e Pence poderiam ou não ter caráter de ato oficial, dependendo da circunstância. Por isso, estabeleceu que neste caso a imunidade é presumida, mas pode ser afastada, cabendo ao juízo de origem estabelecer a natureza dos atos suscitados como ilegais pela acusação, que envolvam o vice-presidente.
Por fim, entendeu que em princípio os atos do presidente destinados ao público em geral (como discursos), a particulares (como o advogado de campanha) ou a servidores estaduais podem ou não ser oficiais dependendo da forma, do contexto ou do conteúdo, o que também precisa ser avaliado pelo primeiro grau, já que demanda dilação probatória específica.
A seguir, a corte se deparou com outro problema decorrente da distinção entre atos oficiais e não oficiais: a utilização de provas resultantes de atos oficiais para demonstrar o cometimento de crime em atos não oficiais.
A questão é relevante porque Trump promoveu diversas reuniões com subordinados na Casa Branca, para os quais sua intenção de subverter o resultado eleitoral teria ficado clara. E esses subordinados prestaram depoimentos testemunhais perante a promotoria afirmando os fatos. Então, ainda que Trump não possa ser processado e condenado pelos fatos em si decorrentes de ordens aos subordinados, poderiam esses mesmos fatos serem usados como prova para demonstrar o cometimento de crime nos atos não oficiais (por exemplo, uma incitação aos manifestantes)?
De forma bastante controversa, a maioria entendeu pela impossibilidade de uso desse tipo de prova, e aqui houve uma dissidência bastante relevante. A juíza conservadora Amy Coney Barrett divergiu quanto a esse aspecto e juntou-se, no particular, ao voto da divergência. De fato, analisado retrospectivamente, o entendimento teria dificultado a responsabilização de Nixon durante o Watergate, pois a própria Suprema Corte determinou no caso United States v. Nixon (1974) que o então presidente entregasse gravações sonoras de suas reuniões aos investigadores. Um antigo conselheiro jurídico de Nixon, comentando o voto de Roberts, declarou que se esse entendimento estivesse em vigor na época, “ele teria se safado”.
Ao final da decisão, a maioria deixou clara, de forma subjetiva, a preocupação de que o julgamento não seja visto como partidário. Ressalta que a corte não está acolhendo integralmente a tese de Trump, que buscava a imunidade absoluta para todo e qualquer ato presidencial, oficial ou não. Citando trechos de discurso de George Wshington contra o facciosismo como um risco à sobrevivência da República, Roberts lembrou que a decisão, embora trate de questão política em curso, era voltada para o futuro, na medida em que evitava que os que deixam o poder possam ser perseguidos e processados pelos incumbentes, o que terminaria por erodir a confiança do público nas instituições e derruiria a própria democracia. “A imunidade se aplica igualmente a todos os ocupantes da Casa Branca, independentemente de sua linha política, administração ou partido político”.
O voto divergente de Sotomayor foi lido da bancada no dia de divulgação da decisão, o que só ocorre quando a minoria quer demonstrar publicamente o seu profundo desagrado quanto ao acerto do julgamento da maioria. Ele está redigido em um tom extremamente duro, em que se afirma que a decisão transforma o sistema de que ninguém está acima da lei em “mockery” (deboche ou zombaria).
Sotomayor, com boa dose de razão, afirma que os juízes conservadores só recorrem à interpretação histórica “quando isso convém”, numa crítica à conhecida defesa do originalismo que esses magistrados costumam fazer. Ela acrescentou ainda que o julgamento é uma ameaça para a democracia com consequências desastrosas e que a maioria inventou um princípio “pela força bruta”. Conclui seu voto dizendo que a corte afastou o princípio de que todos são iguais perante a lei e coloca o presidente acima dela, como um rei.
Diante desta retórica inflamada da minoria, Roberts dedicou um longo trecho do seu voto a rebater os argumentos da divergência, o que é bastante inusual na Suprema Corte. E usou de verborragia pouco recomendável em decisões judiciais, com pitadas de ironia e sarcasmo.
Começou por dizer que a divergência pecava pelo seu tom alarmista e condenatório desproporcional ao que fora decidido, pois o processo prosseguiria em primeira instância, na qual seria definida a extensão da imunidade. Em seguida, critica as fontes históricas usadas por Sotomayor e chega a fazer troça de uma citação da juíza a um senador que exerceu o mandato em 1800, Charles Pickney, que, segundo Roberts, “não era uma fonte confiável em matéria de separação de poderes, pois criticava a decisão de dar ao presidente a escolha dos membros da Suprema Corte”.
Roberts acusa ainda os divergentes de usarem exemplos extremos que dificilmente ocorrerão na realidade e termina por rebater a alegação de que a corte deixou muito imprecisa o que vem a ser ato não oficial passível de persecução penal. O presidente da corte diz que a maioria não estava em condições de descer a esses detalhes devido à situação prematura do processo em primeiro grau e que a minoria demonstra “impressionante infalibilidade”, que embora possa ser “inspiradora”, deve ser deixada de lado em favor de uma atitude de precaução e modéstia judiciais.
Como se pode perceber, a relação entre conservadores e liberais na Suprema Corte dos EUA parece ter azedado de vez. A política contaminou definitivamente a mais importante corte constitucional do mundo, e seu prestígio declina a cada dia.