‘Dinheiro não substitui justiça’, diz vítima que teve companheiro morto na ditadura
JOTA.Info 2024-07-06
Quase 54 anos depois do assassinato do companheiro Eduardo Collen Leite, o “Bacuri”, militante durante a ditadura brasileira, Denise Peres Crispim relatou lembranças vívidas de violência e tortura sofridas em 1970, ano em que ambos foram presos por militares. Em depoimento emocionado a juízes da Corte Interamericano de Direitos Humanos (Corte IDH), Crispim disse que as indenizações que recebeu do Estado brasileiro não substituem a justiça com que sonha há décadas.
“Não tem dinheiro no mundo que pague um sofrimento desse tipo. Além do mais, isso não é justiça. Dinheiro não substitui justiça. Falta [punir] os que cometeram esse assassinato”, afirmou em audiência pública na sede da Corte IDH, em São José, na Costa Rica.
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Denise Peres Crispim estava grávida de seis meses quando foi detida, em 23 de julho de 1970, e submetida a sucessivos interrogatórios e torturas por agentes militares.
“Fui espancada todo o tempo. Me subiram para uma sala de tortura, onde havia manchas já escuras de sangue nas paredes”, contou. “Me batiam nas partes altas do corpo, nas pernas, levantavam o vestido, me faziam colocar a barriga para fora e diziam para ‘segurar o Bacurizinho’, não deixar ele cair. Era muito palavrão, insultos. Eram duas, três horas diárias de sessão desse tipo de tortura. Por vários dias”, relatou à Corte sobre o período em que ficou detida nas dependências do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) em São Paulo.
Na mesma época, seu irmão foi assassinado por militares. Em 11 de agosto de 1970, Crispim foi transferida ao Hospital e Maternidade Militar Santana, onde seguiu internada sob custódia militar até 1º de outubro, quando a filha nasceu. Em 26 de outubro, foi liberada, com a exigência de se apresentar periodicamente aos militares.
“Não tive dilatação, então eles fizeram o parto. Foi cesárea. Claro que eu tinha medo de parir minha filha naquelas condições. Não sabia que destino ela poderia ter. Eu tinha quase certeza de que eles iam me matar. Eu estava em uma clínica privada que era inteira ocupada pelos militares”, afirmou.
Eduardo Collen Leite foi detido quase um mês depois de Crispim, em 21 de agosto de 1970, e levado a um centro clandestino de tortura. De acordo com a Comissão Nacional da Verdade, ele foi torturado incessantemente por quase quatro meses, e sua morte foi “a mais terrível de toda a ditadura brasileira”.
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Na época, a versão oficial veiculada era que ele teria morrido em meio a um enfrentamento com a polícia, em um suposto tiroteio. Anos depois, a Comissão Nacional da Verdade determinou que na verdade se tratou de uma execução, e que Eduardo tinha sido assassinado por um major do Exército, sob ordens de um coronel. Sua morte teria ocorrido no sítio usado pelo delegado Sergio Paranhos Fleury para “torturar para matar”, disse Crispim.
O corpo de Collen Leite apresentava sinais claros de tortura e foi abandonado em um cemitério, antes de ser entregue à família.
“Fui com meu sogro para o cemitério Areia Branca, em São Paulo. Chegando lá, encontramos um aparato policial enorme e meu sogro foi para reconhecer o corpo. Eu ia entrando junto, e eles me proibiram. Disseram que éramos amasiados, que eu não era a mulher dele. Que só os familiares podiam entrar. Então trouxeram o corpo dele, numa espécie de carrinho. E as condições em que estava eu não consigo nem descrever”, afirmou à Corte.
Por muitos anos, disse, ela só lembrava a imagem do corpo, e não mais de como era o companheiro vivo. Na audiência, ela vestiu uma camisa azul, simbólica, “da cor dos olhos dele”.
“Eduardo era um jovem militante que lutava pela democracia no país. Uma pessoa muito bonita por dentro, límpida. Era meu companheiro. E foi o pai da minha filha”, descreveu.
Crispim e a filha, então sem registro de nascimento, se refugiaram no exterior. No exílio, ela foi condenada a 10 anos de prisão pela Justiça Militar, perdendo seus direitos políticos. Passou pelo Chile e hoje vive na Itália. Sua anistia foi concedida apenas em 2009 pela Comissão da Anistia.
Crispim disse que buscou o Ministério Público Federal em Brasília e em São Paulo, para que o caso fosse investigado e os responsáveis fossem sancionados. Mas a resposta era que não se podia fazer muito, pois o caso já teria prescrito.
Apesar de terem recebido algumas indenizações e medidas de satisfação do Estado brasileiro, Crispim e a filha não receberam reparação integral, e os fatos permanecem impunes quase 54 anos depois.
“Vim aqui para ter justiça”, disse à Corte IDH. “Não sei se é possível. Processos, condenação. Já se passaram 54 anos. Não sei como se pode construir um processo. Eu tinha sonhado muitas vezes em estar em um processo em que eles [os assassinos] estavam na minha frente e eu perguntava: ‘Por que fizeram isso? Por que tanta crueldade?’”, relatou aos juízes.
Perguntada sobre o que a Corte poderia fazer, Crispim respondeu: “Primeiro fazendo justiça e depois fazendo com que o Estado brasileiro possa garantir que as pessoas em condições de prisão sejam tuteladas à vida, à integridade física e ao respeito ao ser humano. Não condenar o ser humano à condição de não humano. Principalmente as mulheres, que sofrem as piores degradações”.
Lei de anistia
O caso Collen Leite foi submetido à Corte pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) em maio de 2022. Para a CIDH, a prisão de Eduardo Collen Leite foi arbitrária, uma vez que não havia indícios de ordem de prisão ou flagrante contra ele. Ele desconhecia os motivos de sua detenção, nem teve acesso a um juiz.
Seu assassinato, acrescenta a CIDH, foi uma execução extrajudicial, já que ele estava sob custódia do Estado, que por sua vez não contestou a conclusão de que Collen Leite foi executado por ordens de um coronel.
Para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Denise Peres Crispim também foi vítima de detenção arbitrária e tortura. Além disso, por estar grávida e em situação de vulnerabilidade, sofreu de modo desproporcional. Da mesma forma, foi violado o direito à integridade da filha do casal.
Ainda de acordo com a CIDH, o Estado brasileiro não investigou os fatos com a devida diligência, já que a Justiça arquivou a denúncia de tortura e execução de Collen Leite ao aplicar a figura de prescrição e uma interpretação da lei de anistia que são incompatíveis com as obrigações estatais no tema e que se refletiram na impunidade do caso.
Para a Comissão, o Estado brasileiro é responsável pela violação dos direitos à integridade pessoal, garantia e proteção judicial, assim como por não agir com o devido zelo para prevenir, investigar e punir a violência contra a mulher.
A CIDH reconheceu as reparações administrativas por parte do Estado brasileiro, mas afirmou que elas não abrangem as violações aos direitos humanos dispostas no relatório da comissão e, no caso de Crispim, tampouco consideraram as perspectivas de gênero. Para a Comissão, se trata de “um caso emblemático das graves violações ocorridas na ditadura no Brasil”.
Prescrição e justiça
A audiência na Corte IDH aconteceu em meio ao recente anúncio do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva sobre a recriação, no Brasil, da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos na ditadura. A comissão havia sido extinta no fim do governo de Jair Bolsonaro, em 2022. O decreto sobre a retomada do grupo foi publicado na última quinta-feira (4/7) no Diário Oficial da União.
Em relatório sobre o caso analisado pela Corte Interamericana, a CIDH recomendou ao Estado brasileiro reparar as vítimas de maneira material e imaterial e providenciar medidas de assistência em saúde física e mental para a reabilitação dos familiares das vítimas.
Recomendou, ainda, investigar de maneira séria, diligente, efetiva e em prazo razoável os fatos ocorridos com Denise Peres Crispim e Eduardo Collen Leite, a fim de identificar e punir as pessoas responsáveis.
Pediu, ainda, que o Estado brasileiro assegure que a Lei de Anistia, a figura da prescrição e a aplicação da justiça penal militar não continuem representando um obstáculo para a persecução penal de graves violações de direitos humanos, como as do caso de Crispim e Leite.
Caso o Estado brasileiro seja condenado pela Corte IDH, esta seria a terceira condenação do país pela violação de direitos humanos durante a ditadura. A primeira foi no caso da tortura e execução de militantes na Guerrilha do Araguaia e, a segunda, na prisão e execução do jornalista Vladmir Herzog.
Participam da audiência e análise do caso os juízes Nancy Hernández López (presidente, Costa Rica), Ricardo César Pérez Manrique (Uruguai), Humberto Antonio Sierra Porto (Colômbia), Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot (México), Verónica Gómez (Argentina) e Patricia Pérez Goldberg (Chile).
O juiz Rodrigo Mudrovitsch (vice-presidente, Brasil) não participa do julgamento, já que segundo o regimento interno da Corte magistrando não podem julgar os casos envolvendo seu próprio país de origem.