Bring Kids Back – As crianças ucranianas deportadas para a Rússia
JOTA.Info 2024-11-03
Existem monstros, mas são poucos em número para serem realmente perigosos. Mais perigosos são os homens comuns, os funcionários prontos para acreditar e agir sem fazer perguntas. (Primo Levi)
1.Contexto
É sabido que as crianças e adolescentes constituem um dos principais grupos vitimados no âmbito dos conflitos armados, sejam internacionais ou intrafronteiras, como numa guerra civil, por exemplo. No caso dos meninos, normalmente são submetidos a treinamentos impostos para que se tornem soldados, ainda em tenra idade, no que é considerado crime de guerra; no caso das meninas, tomadas como escravas sexuais, como no caso das meninas Yazidis, vitimadas pelo ISIS. Meninas e meninos são treinados para o combate e, ambos, submetidos à violência sexual.
Segundo o UNICEF, entre 2005 e 2022, mais de 105.000 crianças foram raptadas e treinadas como combatentes em conflitos armados, embora se acredite que o número real de casos seja muito maior.
A quantidade de crianças também raptadas e deportadas em guerras demonstra que a humanidade arrisca o próprio futuro e flerta com o abismo.
Na Nigéria, o sequestro de 276 meninas pelo grupo fundamentalista Boko Haram, em 14 de abril de 2014 ficou conhecido em todo o mundo restando ainda 112 garotas desaparecidas.
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Segundo a organização Save The Children, atualmente mais de 1.680 crianças em idade escolar foram sequestradas desde 2014.
E foi por conta deste rapto de meninas em Chibok (Nigeria), pelo Boko Haram e que mobilizou famosos e líderes mundiais, que surgiu o movimento #BringBackOurGirls (tragam de volta nossas garotas) a partir da iniciativa do advogado empresarial Ibrahim Abdullahi e que demonstrou o poder de uma hashtag na defesa dos direitos humanos, inclusive compartilhada por personalidades famosas, como a atriz de Hollywood Angelina Jolie e a ex-primeira-dama dos Estados Unidos, Michelle Obama.
Christina Lamb, em sua clássica obra “Nosso Corpo, Seu Campo de Batalha – A Guerra e as Mulheres” (Cia. das Letras, 2023, p.78), narra esta passagem:
[…] Abdullahi era usuário frequente do Twitter. Ele publicou as palavras de Oby (ex-Ministra da Educação da Nigéria que exigia, numa entrevista numa entrevista, o retorno das meninas sequestradas pelo Boko Haram), acrescentando duas hashtags: ‘BringBackOurDaughters [tragam nossas meninas de volta]…De outro lado do mundo, em Los Angeles, alguém da indústria cinematográfica retuitou a mensagem dele. Em três semanas, a hashtag BBOG tinha sido usada mais de 1 milhão de vezes no mundo todo […]
O drama das crianças e adolescentes, contudo, no contexto das conflagrações armadas, não cessa, como se pode perceber quando analisado o rapto de cerca de vinte mil crianças ucranianas deportadas para a Rússia ou regiões sob sua influência, em violação do Direito Internacional.
Não sem razão, recentemente, por ocasião da realização da 9ª Conferências de Estorial, no âmbito da União c Europeia, a Primeira-Dama da Ucrânia, Olena Zelenska, criticou a inação da comunidade internacional diante da deportação de milhares de crianças ucranianas, cometida pelos russos.
2. Deportação de Crianças Ucranianas: crime internacional e o Tribunal Penal Internacional
Nos termos do artigo 7º, 1, “d” e “i” do referido Estatuto de Roma do TPI, a deportação e transferência forçada das crianças ucranianas pode ainda configurar o Crime Contra a Humanidade e Crimes de Guerra (Estatuto de Roma, artigo 8º, item 2, alínea “a”, inciso VII).
Em 17 de março de 2023, a Câmara de Pré-Julgamento II do Tribunal Penal Internacional (TPI) emitiu dois mandados para a prisão de Vladimir Putin e de Maria Alekseyevna Lvova-Belova, Comissária para os Direitos da Criança no Gabinete do Presidente da Federação Russa, sob o entendimento de que há motivos razoáveis para acreditar que tanto Putin, quanto Lvova-Belova, têm responsabilidade por prática de crimes de guerra por conta da deportação ilegal de população e de transferência ilegal de população de áreas ocupadas, da Ucrânia para a Rússia, em prejuízo das crianças ucranianas.
O requerimento da Procuradoria do Tribunal Penal Internacional, após ser analisada pela II Câmara de Pré-Julgamento, conduziu ao entendimento de que, no caso de Putin, a deportação das crianças ucranianas que tiveram início, ao menos desde 24 de fevereiro de 2022 (data da invasão russa à Ucrânia) constitui fato que permite a caracterização de crime de guerra de deportação e transferência ilegais de crianças de áreas ocupadas da Ucrânia para a Federação Russa, com fundamento nos artigos 8(2)(a)(vii) e 8(2)(b)(viii), ambos do Estatuto de Roma.
Dois cenários parecem configurar responsabilidade criminal no caso das acusações contra Vlamidir Putin: responsabilidade criminal individual pelos crimes acima mencionados por ter cometido os atos diretamente, em conjunto com outros e/ou por meio de outros (artigo 25(3)(a) do Estatuto de Roma); e imputabilidade de Putin por sua falha em exercer controle adequado sobre comandados civis e militares que executaram os atos, ou permitiram sua comissão, que estavam sob sua autoridade e controle, de acordo com a responsabilidade superior (artigo 28(b) do Estatuto de Roma). Na hipótese de Maria Alekseyevna Lvova-Belova, a possibilidade é de cometimento de crime de guerra de deportação ilegal de população (crianças) e de transferência ilegal de população (crianças) de áreas ocupadas da Ucrânia para a Federação Russa.
3. A Campanha Bring Kids Back
Por iniciativa do Presidente da Ucrânia, Wolodymyr Zelensky, foi criada a iniciativa Bring Kids Back, projeto no plano internacional que tem por escopo o retorno das crianças ucranianas ao seu país e suas famílias.
Atualmente as estatísticas apontam para 19546 casos de deportação ainda pendentes, 555 casos de crianças mortas; 1429 crianças feridas e 15 casos de abusos sexuais.
O Brasil vem sendo palco de ações nos planos político, jurídico, além de intervenções artísticas, visando visibilizar a situação.
Ao menos duas reuniões foram organizadas pelo escritório da Presidência da Ucrânia, com especialistas, além de eventos e seminários programados.
São focos selecionados pelo projeto Bring Kids Back localizar e repatriar as crianças deportadas ilegalmente; construir um sistema abrangente de apoio psicológico; desenvolver infraestrutura para promoção da educação baseada na família; aumentar a conscientização internacional para pressionar a Rússia a devolver crianças às suas famílias e documentar os crimes de guerra.
O conjunto de objetivos acima envolve, pois, a tentativa de concretização de uma justiça de transição em todas as suas fases: verdade, memória, justiça, reparação e adoção de políticas de não-repetição.
A força-tarefa Bring Kids Back também apresentou as seguintes metas:
a) Aprofundar a coordenação entre o governo, a sociedade civil e os atores internacionais; b) Aumentar a conscientização pública; c) Manter um banco de dados central para gerenciamento e coordenação de casos; d) Melhorar a capacidade investigativa e os recursos humanos; e) Expandir os serviços de saúde mental e suporte psicológico.
As crianças e os adolescente projetam o futuro da humanidade. Uma pauta de todos os países.