Votos de ministros aposentados na formação de precedentes do STF
JOTA.Info 2024-11-03
A busca pelo aperfeiçoamento da prestação jurisdicional envolve grandes desafios. O volume de processos que se acumulam aguardando um deslinde atinge imensas proporções, e gera um represamento que impede – ou, no mínimo, retarda – a resolução de conflitos e a pacificação social, finalidades últimas da jurisdição.
Nesse passo, recrudesce a relevância de um sistema de precedentes sólido e coeso, forte na segurança dos pronunciamentos diretivos oriundos das Cortes Superiores.
Assine a newsletter Últimas Notícias do JOTA e receba as principais notícias jurídicas e políticas no seu email
Na formação dos precedentes, em especial os vinculantes, a composição dos colegiados é um ponto de grande importância pois, em não raras oportunidades, revela-se como elemento definidor dos posicionamentos adotados pelos Tribunais Superiores – tantas vezes decididos por apertada maioria.
Nesse contexto é que a manutenção dos votos de ministros que se aposentaram no curso de um julgamento merece uma reavaliação cuidadosa. O julgamento da Questão de Ordem na ADI 5.399[1], proposta pelo ministro Alexandre de Moraes, trouxe essa prerrogativa institucional para o âmbito dos julgamentos virtuais nos casos em que há pedidos de destaque.
A discussão só é nova quando diz respeito aos julgamentos destacados em ambiente virtual. De resto, o entendimento no sentido de que os votos já proferidos devem ser mantidos, inobstante o afastamento dos seus prolatores, é tradicional na Suprema Corte a ponto de encontrar envergadura regimental[2], e parece buscar fundamento na reverência às opiniões externadas pelos integrantes do colegiado e no princípio da continuidade dos julgamentos.
Contudo, quando o processo virtual é destacado ao ambiente presencial, essa prerrogativa se revela ainda mais problemática. Isso porque o processo decisório é verdadeiramente reiniciado, renovando-se as sustentações orais e zerando-se todos os votos até então proferidos, exceto os votos ofertados por ministros que já se aposentaram.
A questão é que um julgamento, ao ser finalizado, promove um retrato da orientação do tribunal em um determinado momento histórico, muitas vezes com eficácia vinculante. Essa prerrogativa do alcance erga omnes exige dos julgadores um maior comprometimento com o aprofundamento das discussões e com a higidez e a replicabilidade de tais pronunciamentos, sempre com o objetivo de garantir a segurança jurídica e a estabilidade social.
Nesse sentido, os debates e as divergências são elementos essenciais ao aprimoramento da função judicante, eis que demonstram o cuidado e a atenção dos julgadores em relação às temáticas a eles submetidas para julgamento. Daí a importante função do pedido de destaque nos julgamentos virtuais.
A manutenção do voto dos ministros aposentados obstaculiza o debate, trava a troca de argumentos e dificulta a evolução do pensamento da corte, na medida em que não há possibilidade de retificação ou esclarecimento de um voto de um integrante que não está mais presente.
Por outro lado, o julgado deixa de retratar de forma acurada a posição do tribunal, eis que os votos proferidos em momentos diferentes culminam na formatação de um acórdão pouco flexível e heterogêneo, composto da opinião, por vezes imutável, de julgadores que talvez não tenham sequer convivido, discutido ou interagido no tempo.
Tal engessamento, já perceptível nos julgamentos presenciais, é ainda mais desarrazoado na sistemática de julgamentos virtuais destacados: é possível que um ministro aposentado, sem juntar voto escrito, tenha apenas acompanhando o voto apresentado pelo relator na sessão virtual, o qual, por sua vez, muda seu posicionamento quando o julgamento é levado, tempos depois, ao plenário presencial.
O voto do ministro afastado, por evidente, não poderá ser alterado para acompanhar o novo posicionamento do ministro relator, e tampouco poderá o julgador aposentado ser influenciado pelas razões desenvolvidas ao longo do julgamento, muito menos defender os argumentos que o levaram a acompanhar o posicionamento anteriormente manifestado pelo relator. Nessa hipótese, haverá, inclusive, divergência interna sem a necessária fundamentação, o que se revela disforme e extravagante.
Qual o sentido, então, de se destacar um julgamento do ambiente virtual para propiciar os debates mais aprofundados de forma presencial, mantendo os votos de ministros aposentados que não poderão se manifestar para ratificar ou retificar suas posições? A incongruência se intensifica quando vozes se levantam em defesa do princípio da continuidade do julgamento. Qual continuidade de julgamento se o placar de votação é zerado e as sustentações renovadas?
Ora, não há dúvidas de que não se trata de uma simples suspensão de julgamento cuja retomada sobrevirá oportunamente, como ocorre com o pedido de vista. Trata-se aqui de outro fenômeno. Quando o processo é destacado do plenário virtual, estamos diante de novo julgamento que se iniciará no ambiente presencial, como se o primeiro jamais tivesse existido.
Vejam que, nesse ínterim, a composição do tribunal pode vir a ser alterada, com novos julgadores assumindo posições deixadas pelos aposentados. Contudo, embora reiniciado o julgamento, os novos integrantes não poderão sobrepor suas opiniões aos votos dos aposentados, os quais manterão sua influência sobre um colegiado distinto, distorcendo, potencialmente, o posicionamento da corte.
Se de novo julgamento se trata – como tudo está a indicar– a manutenção dos votos dos ministros que se aposentaram não encontra fundamento razoável. Repita-se, não se trata de mera suspensão em razão de pedido de vista, onde o julgamento retoma do ponto em que parou, mas de verdadeira renovação de julgamento.
Assim, não temos dúvidas de que o cômputo dos votos dos ministros que não participaram desse diálogo presencial pode vir a acarretar deficiência no processo deliberativo de construção da decisão colegiada. Trata-se de claro déficit deliberativo e perda de oportunidade de se alcançar a manifestação do colegiado atual da corte, e não de um colegiado que não mais existe.
Tudo isso se mostra ainda mais grave quando há transcurso de tempo significativo entre a interrupção do julgamento e seu reinício, pois, nesse caso, há maiores chances de mudança de contexto jurídico, político, social ou econômico, o que agrava a possibilidade de permanência de votos desconectados com o cenário atual.
A discussão ganha relevância em razão da alteração regimental efetivada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), por meio da Emenda Regimental 45, de 28 de agosto de 2024 que, ao tentar se aproximar do sistema de julgamento virtual do Supremo Tribunal Federal (STF), passou também a prever, em seu regimento interno, que no caso de pedido de destaque feito por qualquer ministro, na continuidade do julgamento em ambiente presencial serão computados os votos proferidos pelos ministros que não componham mais o tribunal ou o órgão colegiado[3], o que culminará nos mesmos problemas que hoje enfrentamos na Suprema Corte.
O STJ, contudo, trouxe um aperfeiçoamento ao prever que, nessas hipóteses, “por decisão da maioria do colegiado, em questão de ordem, o ministro sucessor proferirá voto substitutivo nos casos em que surja fato novo não apreciado pelo ministro sucedido”[4].
O fato é que, ainda que se queira prestigiar o voto proferido pelo ministro aposentado antes da conclusão do julgamento, é imperativo que essa manutenção dos votos, ao menos nos julgamentos virtuais destacados para o plenário presencial, seja repensada[5].
Diante desse cenário, possíveis soluções poderiam amenizar as distorções apresentadas, caso adotadas, regimentalmente, algumas providências, como por exemplo: a) a previsão de critérios, ainda que mínimos, para o próprio pedido de destaque, o qual, atualmente, prescinde de qualquer justificação ou anuência; b) a adoção de um prazo limite para a realização do julgamento, após o pedido de destaque, nos mesmos moldes da recente previsão regimental no tocante à devolução do pedido de vista; e, c) a possibilidade de substituição do voto proferido por ministro aposentado, quer nos julgamentos virtuais, quer nos presenciais, diante de mudanças no cenário fático, jurídico ou econômico, que possam impactar o resultado da questão controvertida, permitindo maior flexibilidade e adaptabilidade, impedindo decisões desatualizadas ou inadequadas para o novo cenário.
Assim, embora o respeito aos votos proferidos por ministros aposentados seja louvável, ele não pode ser mantido a qualquer custo. O julgamento colegiado deve ser fruto de uma deliberação ativa e de um diálogo aberto entre os ministros que compõem a corte no momento da decisão. Manter votos de ministros que não mais podem participar das discussões obstrui o processo deliberativo e compromete a qualidade das decisões judiciais, afetando tanto a segurança jurídica quanto a legitimidade das decisões do tribunal.
[1] Decisão: Preliminarmente, o Tribunal, por maioria, acolheu questão de ordem suscitada pelo Ministro Alexandre de Moraes no sentido de o Plenário fixar o entendimento da validade de voto proferido por Ministro posteriormente aposentado, ou cujo exercício do cargo tenha cessado por outro motivo, mesmo em caso de destaque em julgamento virtual, entendendo, no caso concreto, que a retomada deste julgamento preserve o voto proferido pelo Ministro Marco Aurélio na sessão virtual de 20 a 27/11/2020, garantindo, ainda, que tal posicionamento passe a ser adotado a partir do presente julgamento, não se aplicando aos processos já julgados, vencido o Ministro André Mendonça. (…) Presidência do Ministro Luiz Fux. Plenário, 9.6.2022.
[2] Art. 134, § 1º do RISTF.
[3] Art. 184 – A, § 4º, do RISTJ.
[4] Art. 184-A, § 5º, do RISTJ.
[5] Na sessão Plenária do dia 24/10/24, os Ministros chegaram a discorrer sobre a necessidade de revisão da manutenção dos votos dos aposentados, sem, todavia, apresentação de proposta concreta.