Patentes: projeto de lei sobre invenções geradas por IA avança
JOTA.Info 2024-11-15
Em 2024, o Congresso Nacional brasileiro deu início a discussão sobre uma das questões mais polêmicas no direito de propriedade intelectual na atualidade: sistemas de inteligência artificial (IA) podem ser inventores? Apresentado em fevereiro deste ano, o Projeto de Lei nº 303/2024, de autoria do deputado Júnior Mano (PL-CE), propõe alterar a Lei nº 9.279/1996 (Lei da Propriedade Industrial [ LPI] para permitir que invenções geradas de forma autônoma por IA possam ser patenteadas.
Em 7/10/2024, o relator designado na Comissão de Ciência, Tecnologia e Inovação da Câmara, deputado Leonardo Gadelha (PODE-PB), apresentou parecer pela aprovação do projeto, com substitutivo. O parecer do deputado Gadelha observa inicialmente que a proposta “enfrenta críticas substanciais.” Entre os principais argumentos contrários está a ausência de personalidade jurídica dos sistemas de IA, conditio sine qua non para a titularidade de direitos de patentes.
Nesse sentido, o relator destaca que a “atribuição de autoria a uma IA também pode enfraquecer a proteção e a valorização da criatividade humana.” Permitir que sistemas de IA sejam reconhecidos como inventores pode diluir o valor do trabalho intelectual humano e “desencorajar investimentos no desenvolvimento de habilidades criativas e intelectuais humanas, direcionando recursos para o aprimoramento de sistemas de IA.”
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A noção de que apenas pessoas naturais podem ser inventoras também está presente no Inventorship Guidance for AI-Assisted Inventions, publicado pelo United States Patent and Trademark Office (USPTO) em 13 de fevereiro de 2024. A orientação reforça que a análise da autoria do invento deve “focar nas contribuições humanas, já que patentes funcionam para incentivar e recompensar a ingenuidade humana.”
Outro ponto enfatizado no parecer do deputado Gadelha diz respeito à “ambiguidade na titularidade dos direitos.” Afinal, “[s]e um sistema de IA for considerado o inventor, surge a questão de quem detém os direitos de propriedade intelectual: o desenvolver da IA, o operador do sistema, ou a entidade que fornece os dados para o treinamento da IA.”
À luz do art. 6º, §2º, da LPI, quem seria legitimado a requerer a patente em nome do sistema de IA? Ainda, esse legitimado atuaria como mero representante ou figuraria propriamente como depositante do pedido/titular da patente?
Em que pese tais críticas, o deputado Gadelha afirma que o PL 303/2024 “abre um caminho virtuoso e necessário para a discussão sobre a utilização de sistemas de inteligência artificial no campo das invenções,” considerando que essas ferramentas já estão sendo empregadas em diferentes setores. Por isso, propõe um substitutivo, recomendando sua aprovação.
O substitutivo propõe a inclusão de um parágrafo 5º no artigo 6º da LPI com a seguinte redação: “nos casos em que a invenção ou modelo de utilidade for desenvolvido com o auxílio de sistemas de inteligência artificial, a titularidade da patente será conferida, em todos os casos, ao autor, observando-se o disposto no §1º deste artigo.”
Além disso, sugere que o artigo 19 da LPI passe a exigir, para o pedido de patente, um “relatório descritivo sobre a utilização de sistemas de inteligência artificial no desenvolvimento da invenção ou modelo de utilidade, classificando o grau de auxílio prestado pelos sistemas de inteligência artificial nas categorias auxílio ausente, auxílio parcial, auxílio predominante ou integralmente autônoma, na forma do regulamento.”
Já o artigo 35 passaria a prever que o parecer emitido pelo INPI por ocasião do exame técnico poderia também versar sobre a classificação do grau de auxílio da IA.
Por fim, o substitutivo introduz uma modificação nos prazos de vigência das patentes, ajustados conforme o grau de participação da IA. Patentes de invenção desenvolvidas “com o auxílio predominante de sistema de inteligência artificial” teriam um prazo de cinco anos contados da data do depósito. Patentes de invenção geradas “de forma integralmente autônoma” vigorariam por três anos. Para modelos de utilidade, os prazos seriam, respectivamente, de três anos e um ano.
A proposta do deputado Gadelha, conquanto se proponha a realizar os “ajustes necessários para [a] plena eficácia” do PL, não soluciona plenamente os problemas identificados no parecer.
O substitutivo dispõe que a titularidade da patente desenvolvida com auxílio de IA será conferida “ao autor” humano. No caso de auxílio parcial (ou mesmo predominante) de IA, não haveria problema; porém, quem seria o “autor humano” quando a invenção ou o modelo de utilidade fosse desenvolvido de forma integralmente autônoma pelo sistema de IA? Isso não fica claro.
Ademais, embora o parecer reconheça que será necessário definir “novos critérios para avaliar a inventividade, novidade e aplicação industrial” dessas invenções, o substitutivo em si não endereça esse ponto.
Consoante o artigo 13 da LPI, a invenção é dotada de atividade inventiva sempre que, para um técnico no assunto, não decorra de maneira evidente ou óbvia do estado da técnica. O técnico no assunto, por sua vez, é definido como “aquele com conhecimento mediano na técnica em questão à época do depósito do pedido, com nível técnico-científico, e/ou aquele com conhecimento prático operacional do objeto” (item 5.4 da Resolução nº 169/2016 do INPI). Fica evidente que essa definição se aplica a uma pessoa natural.
No caso de invenções desenvolvidas com auxílio meramente parcial de IA, a avaliação da inventividade se dará sobre a contribuição do autor humano. Porém, no caso de invenções geradas predominantemente ou autonomamente por IA, qual seria o parâmetro para avaliar a atividade inventiva? Qual seria, ainda, a definição de técnico no assunto a ser empregada? A par das discussões (relevantes) sobre a personalidade jurídica dos sistemas de IA, uma questão fundamental que se coloca é se tais sistemas seriam sequer capazes de desenvolver algo dotado de inventividade.
A modificação no prazo de vigência das patentes também pode ser uma fonte de contenda. Em primeiro lugar porque é questionável se o Brasil poderia conferir um prazo reduzido para patentes, considerando que o Acordo TRIPS estabelece que o prazo de proteção disponível não será menor do que vinte anos contados da data do depósito.
Em segundo lugar, a proposta emprega conceitos abertos que podem gerar insegurança. Considerando que o substitutivo, no artigo 40, apenas fala em auxílio predominante e integralmente autônoma, infere-se que as invenções desenvolvidas com auxílio parcial terão direito à proteção patentária pelo prazo de 20 anos da data do depósito. Como distinguir, contudo, entre auxílio parcial e predominante? Ficaria a cargo do INPI estabelecer essa distinção?
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Há alguns anos a questão acerca da autoria e titularidade de invenções geradas ou assistidas por IA vem desafiando tribunais e escritórios de patente ao redor do mundo. Porém, o entendimento que vem prevalecendo, ao menos nas principais jurisdições, é que invenções geradas autonomamente por IA não podem ser patenteadas, dado que sistemas de IA não podem ser nomeados como inventores.
Embora seja comum afirmar-se que o processo legislativo é demasiado lento e não consegue acompanhar os avanços tecnológicos, há situações em que o melhor é, de fato, aguardar o amadurecimento do tema. Assim, diante desse cenário, soa prematura a iniciativa do Brasil de “sair na frente” na regulamentação dessa matéria.
O próprio parecer do deputado Gadelha reconhece que a “falta de uniformidade internacional poderia dificultar o reconhecimento recíproco de patentes entre países, criando incertezas jurídicas para empresas que operam globalmente.” Não seria melhor, portanto, aguardar o avanço das discussões, inclusive no âmbito da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI)?