Audiências de custódia: entre a liberdade provisória e o risco social?
JOTA.Info 2024-11-15
A Constituição de 1988 estabeleceu a liberdade como regra e a prisão como exceção. No entanto, o Código de Processo Penal brasileiro permite a prisão provisória em casos que exijam proteção à ordem pública. Esse debate entre liberdade provisória e prisão provisória motivou, em 2015, a criação das audiências de custódia pela Resolução 213 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), com o objetivo de garantir um controle judicial mais eficiente sobre prisões provisórias e prevenir abusos no processo de prisão.
Com o Brasil detendo a terceira maior população carcerária do mundo, 25% dela composta por presos provisórios, e com altos índices de letalidade policial, as audiências de custódia surgem como um mecanismo essencial para reavaliar prisões provisórias e equilibrar a justiça e a segurança pública.
Ainda assim, a adoção das audiências enfrentou resistências e dificuldades operacionais, especialmente durante a pandemia de Covid-19, quando o CNJ precisou emitir manuais orientando a adaptação dos tribunais ao modelo remoto. Em 2019, o procedimento tornou-se obrigatório para todas as prisões, consolidando-se como um pilar do processo penal brasileiro.
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As audiências de custódia podem ter três resultados: o relaxamento da prisão, a conversão da prisão para preventiva ou a concessão da liberdade provisória. Para decidir entre essas opções, o magistrado avalia o risco que a liberdade do indivíduo pode representar para a sociedade.
É realizado um exame prognóstico sobre o comportamento futuro do acusado, baseado em eventos passados. No entanto, o conceito de risco não é claramente definido na legislação, sendo moldado por interpretações dos agentes do sistema de justiça criminal, sendo este o elemento que nos parece definidor do desfecho das audiências de custódia.
O passado prevê o futuro?
Os estudos internacionais indicam que a introdução de novas políticas no sistema de justiça criminal deve levar em conta o funcionamento rotineiro dos tribunais, com suas adaptações, interpretações e limitações. Os operadores do direito possuem objetivos e compreensões próprias sobre o crime e seus autores. Além disso, as relações dentro do ambiente dos tribunais determinam a dinâmica dos trabalhos, equilibrando interesses formais e informais. Considerando que as normas são aplicadas por instituições e indivíduos, e que o contexto importa, é pertinente questionar: como o processo decisório acontece na prática das audiências de custódia?
Para responder à pergunta de pesquisa, utilizamos de dados coletados por meio da observação de 1.025 audiências de custódia, em Belo Horizonte (MG), no ano de 2023, por meio de uma metodologia qualiquantitativa. Realizamos observações não participativas para entender as práticas dos operadores do direito. Reconhecendo que as pessoas e instituições envolvidas nas cortes criminais influenciam diretamente a aplicação prática das leis, examinamos as relações e interações entre os diferentes agentes presentes nas audiências.
Com a análise documental, investigamos os argumentos e justificativas mais utilizados pelos operadores. Por fim, aplicamos modelos estatísticos para estimar as chances de decretação da prisão preventiva com base em diversos fenômenos.
Os grupos de trabalho
O grupo A era composto pelo juiz A, promotor 1 e defensores 1 e 2. O juiz A priorizava a celeridade dos atos, com audiências de até 5 minutos, em média, sendo 25% delas realizadas em menos de 3 minutos. Em 21,62% dos casos, ele decretou a prisão preventiva, enquanto o promotor 1 solicitou a manutenção da prisão em 37% das audiências. Ambos destacavam o histórico criminal dos custodiados.
Contudo, era feita uma análise prévia da gravidade abstrata dos delitos, o que ajuda a entender porque todos os casos de roubo (art. 157, CP) resultaram na manutenção da prisão, enquanto os índices de conversão da prisão eram consideravelmente menores em outros crimes comuns nas audiências de custódia, como furto (10,90%) e tráfico de drogas (18,42%).
O grupo B, composto pelo juiz B, promotor 2 e defensor 3, realizava audiências com duração média de 11 minutos. No entanto, contrariando o senso comum de que mais tempo pode reverberar em decisões mais favoráveis para o custodiado, o resultado encontrado foi o oposto: o juiz B converteu a prisão em flagrante em preventiva em 38,28% dos casos. O promotor 2 solicitou a manutenção da prisão em 51,3% das audiências.
O foco deste grupo estava nos aspectos concretos dos casos, com destaque aos relatos dos policiais responsáveis pelas prisões. O juiz B expressava especial preocupação com o crime de tráfico de drogas, considerando-o um catalisador de outros crimes. Como resultado, ele convertia uma proporção significativamente maior de prisões decorrentes de tráfico de drogas, em comparação com o juiz A, atingindo 46,98%.
Quadro comparativo entre os resultados dos grupos de trabalho
Grupo de trabalho A
Grupo de trabalho B
Tempo médio das audiências
5 minutos
11 minutos
Conversão para prisão preventiva
21,62%
38,28%
Promotor manifestando pela prisão preventiva
37%
51,3%
Prisão preventiva – crime de roubo
100%
73,33%
Prisão preventiva – crime de furto
10,90%
22,22%
Prisão preventiva – crime de tráfico
18,42%
46,98%
Para avaliar a contribuição de diferentes fenômenos na decisão de conversão da prisão em flagrante para preventiva, utilizamos modelos de regressão logística binomial. Trata-se de uma técnica estatística que permite verificar o quanto determinados fatores estão associados a um evento — neste caso, a decretação da prisão.
Os resultados indicam que o pedido de prisão provisória pelo Ministério Público é um forte preditor para a decretação da prisão preventiva pelo juiz, com alta significância estatística (p < 0,001), aumentando as chances em 58,603 vezes no grupo A e em 51,326 vezes no grupo B. Além disso, crimes com pena máxima superior a 4 anos aumentam em 5,223 vezes a probabilidade de prisão preventiva no grupo A e em 5,368 vezes no grupo B.
Curiosamente, a imputação de tráfico de drogas está associada a menores chances de decretação da prisão preventiva, com significância maior para o juiz A (p = 0,003) do que para o juiz B (p = 0,054). Para o juiz A, ter um histórico na justiça juvenil aumenta em cerca de seis vezes a chance da prisão preventiva, enquanto essa variável não é significativa para o juiz B. Da mesma forma, o gênero mostrou-se significativo para o juiz A, onde homens têm 12 vezes mais chances de receber prisão preventivas, mas não apresentou impacto relevante para o juiz B.
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Conclusão
As audiências de custódia representam uma complexa balança entre a liberdade provisória e o suposto “risco” que o custodiado apresenta para a ordem pública. Nosso estudo revela que a decisão de converter a prisão em flagrante para preventiva nas audiências de custódia depende não só das normas legais, mas também das interações e das subjetividades dos operadores do direito.
Em ambos os grupos observados, o pedido do Ministério Público é um forte preditor da prisão preventiva, mostrando a influência da familiaridade e da similaridade dos atores. Do mesmo modo, a gravidade abstrata dos delitos tem grande relevância para a tomada de decisões, evidenciando como a análise prévia ao rito ainda ocupa lugar de destaque nas audiências de custódia. Contudo, cada juiz confere diferentes pesos a alguns aspectos, como o registro de histórico na justiça juvenil e o gênero do jurisdicionado.
Observamos que os participantes das organizações tendem a produzir regras constitutivas que reduzem a incerteza e formam categorias e classificações para os casos, refletindo as dinâmicas internas dos tribunais. Nessas interações, especialmente entre promotores e juízes, formam-se interpretações e decisões que, muitas vezes, se sobrepõem às prescrições legais do Código de Processo Penal, revelando uma distinção na realidade da “vida como ela é”.
Portanto, as audiências de custódia representam uma balança delicada entre a busca pela liberdade provisória e a necessidade de mitigar riscos à sociedade. O estudo evidencia, assim, a importância de se considerar não apenas as normas formais, mas também o funcionamento das cortes e os vínculos estabelecidos entre promotores, juízes e outros atores.
Este artigo sintetiza os resultados da Dissertação de Mestrado defendida em 2024 no Programa de Pós-Graduação de Sociologia da UFMG, intitulada “Liberdade Provisória Vigilância Permanente: um estudo sobre o efeito dos antecedentes criminais nas audiências de custódia em Belo Horizonte”.