Corte IDH condena Venezuela por violar direitos de adversário de Maduro em eleições de 2013

JOTA.Info 2024-12-06

A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) proferiu sentença contra a Venezuela no caso Capriles vs. Venezuela. A decisão responsabiliza o Estado venezuelano por graves violações aos direitos políticos, à liberdade de expressão e ao princípio da igualdade nas eleições presidenciais de 2013, nas quais Henrique Capriles enfrentou Nicolás Maduro, atual líder autocrático do país. 

Segundo a sentença, durante a campanha eleitoral, Nicolás Maduro usou recursos do Estado venezuelano para promover sua candidatura. Isso incluiu o uso de veículos oficiais, infraestrutura pública e uso de meios de comunicação estatais, nas quais Maduro aparecia em eventos de campanha disfarçados de cerimônias oficiais. 

Um exemplo foi a transmissão televisiva do cortejo fúnebre de Hugo Chávez, líder da revolução bolivariana que morreu um mês antes das eleições, o qual Maduro, então vice-presidente e candidato, utilizou para reforçar sua imagem como “herdeiro” do ex-presidente. Ele também se beneficiou de uma decisão da Sala Constitucional, que permitiu que ele concorresse à presidência, mesmo que seu então cargo não possibilitasse isso anteriormente. 

Enquanto o autocrata teve acesso praticamente exclusivo aos meios de comunicação estatais, Capriles foi sistematicamente silenciado, segundo a Corte IDH. Durante a campanha de 2013, Maduro teve mais de 60 transmissões obrigatórias em rede nacional (as chamadas “cadenas”), totalizando horas de propaganda eleitoral, enquanto Capriles teve seu acesso aos canais estatais negado.

“O uso massivo de recursos públicos e meios de comunicação estatais a favor de Nicolás Maduro, assim como a participação de funcionários públicos civis e militares em atos de campanha, criaram uma vantagem desproporcional para o candidato oficialista”, afirmou o juiz brasileiro Rodrigo Mudrovitsch, vice-presidente da Corte, em seu voto. 

Além disso, segundo a decisão da Corte, Nicolás Maduro cooptou instituições de Justiça de forma a controlar as eleições. O Conselho Nacional Eleitoral (CNE), por exemplo, favoreceu amplamente Maduro, permitindo a realização de eventos de campanha nos centros de votação e ignorando as denúncias de irregularidades feitas pela oposição, de acordo com a sentença. 

Um exemplo disso foi a participação da presidente do Conselho Nacional Eleitora (CNE), Tibisay Lucena, em eventos públicos alinhados ao chavismo, incluindo o uso de um braçadeira com as cores da bandeira venezuelana, associada ao PSUV (Partido Socialista Unido de Venezuela), durante a cerimônia fúnebre de Hugo Chávez. Essa conduta foi considerada, pela Corte, uma violação dos princípios de independência e imparcialidade previstos na Constituição da Venezuela (artigos 293 e 294) e na Lei Orgânica de Processos Eleitorais (LOPE)​. No final, o CNE declarou a vitória de Maduro com 50,61% dos votos, contra 49,12% de Capriles.

O sistema judiciário também falhou ao não responder às denúncias de Capriles sobre a situação, segundo a Corte IDH. O adversário de Maduro apresentou várias reclamações ao Tribunal Supremo de Justiça (TSJ), incluindo pedidos de auditoria completa dos votos, mas todos foram rejeitados sem justificativas legais detalhadas.

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Essa cooptação das instituições do país, que erodiram pouco a pouco o estado democrático da Venezuela mesmo antes das eleições, serviu como um estágio preparatório para as infrações que culminaram durante o pleito, segundo o voto de Mudrovitsch. Para ele, com isso, “a situação venezuelana é um exemplo inequívoco de violação do artigo 23.1.b da Convenção, já que o controle das instituições por uma das facções na disputa pelo poder eliminou a imprevisibilidade do resultado eleitoral e, consequentemente, a própria autenticidade das eleições”. 

“A democracia representativa depende da alternância real no poder, materializada por meio de eleições cujo resultado seja incerto até o último momento, uma vez que a previsibilidade dos resultados eleitorais compromete a autenticidade democrática”, completou. 

Assim, a Corte IDH  determinou que Henrique Capriles deve receber indenizações financeiras e simbólicas para reparar os danos. Ele deve ser compensado pelas despesas com advogados, campanhas e outras ações realizadas para tentar garantir a legalidade do processo eleitoral. Além disso, o Estado venezuelano deve pagar compensação pelo impacto em sua reputação política e os danos à sua imagem pública.

O governo venezuelano também deve emitir um pedido formal de desculpas a Capriles, reconhecendo as irregularidades cometidas. Esse pedido deve ser publicado em jornais de grande circulação e divulgado em transmissões televisivas nacionais. A Corte IDH determinou ainda que a Venezuela revise sua legislação eleitoral para evitar abusos futuros, como mudanças na regulamentação do uso de recursos públicos durante campanhas e a reestruturação do CNE para garantir sua independência.

Se a Venezuela não cumprir as determinações da Corte IDH, pode enfrentar consequências no âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA), incluindo sanções diplomáticas e econômicas. A OEA já classificou diversos pleitos na Venezuela na última década como fraudulentos, e não reconhece a legitimidade de Maduro como líder do país. Além disso, o não cumprimento reforça o isolamento internacional do país, afetando sua capacidade de negociar acordos internacionais e acessar financiamento externo.

Leia a íntegra da sentença aqui.

Crise venezuelana

Após as controversas eleições de 2013, a Venezuela mergulhou em uma crise política e humanitária. Nicolás Maduro consolidou seu poder através da repressão à oposição e da criação da Assembleia Nacional Constituinte, em 2017, composta exclusivamente por aliados do governo. A crise econômica, marcada por hiperinflação e escassez de recursos básicos, levou milhões de venezuelanos a migrarem para países vizinhos, agravando a instabilidade na região

A controvérsia se repetiu durante o pleito presidencial de 2018, quando a oposição, liderada pela Mesa de Unidade Democrática (MUD), decidiu boicotar a eleição, alegando falta de condições justas e livres. Como resultado, a participação eleitoral foi a mais baixa da história recente da Venezuela, com uma abstenção de aproximadamente 54%, e Maduro foi declarado vencedor com 67,84% dos votos. 

Observadores denunciaram a falta de competitividade no pleito, uso massivo de recursos estatais em favor de Maduro e a manipulação de eleitores por meio de programas sociais, como o chamado “Carnet de la Patria”, que condicionava o acesso a benefícios sociais ao voto no governo.

A tensão se renovou também em 2020, quando a Venezuela realizou eleições parlamentares, com o pleito novamente amplamente boicotado pelos principais partidos de oposição. O governo utilizou o TSJ, controlado pelo chavismo, para destituir lideranças opositoras de seus partidos e nomear juntas interventoras favoráveis ao governo.

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A abstenção às urnas foi altíssima, com menos de 30% da população votando, reflexo da falta de confiança no sistema eleitoral. Como resultado, a coalizão governista obteve a maioria dos assentos na Assembleia Nacional, reconquistando o controle que havia perdido em 2015, quando a oposição venceu.

Neste ano, em novas eleições presidenciais, o CNE declarou a vitória do presidente Nicolás Maduro com 51,2% dos votos, enquanto o principal candidato da oposição, Edmundo González, teria obtido 44%. A oposição contestou esses resultados, alegando que González alcançou 70% dos votos, conforme suas próprias contagens paralelas.

Observadores internacionais e diversos países expressaram preocupações sobre a transparência e a legitimidade do processo eleitoral. Os Estados Unidos, por exemplo, impuseram sanções a 21 altos funcionários venezuelanos, acusando-os de tentar “roubar as eleições” e de reprimir manifestações pacíficas. À época, líderes da oposição, como María Corina Machado, convocaram manifestações para contestar os resultados e pressionar por uma transição democrática.

“Além de um chamado ao mundo para fortalecer nossas democracias, foi um julgamento muito expansivo dos parâmetros de integridade democrática”, diz Flávia Piovesan, professora doutora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e ex-membro da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). “Desde a questão da transparência, da imparcialidade das instituições, da condição equânime entre candidatos, são standards para toda a região.”

‘Vai virar uma Venezuela’

“A decisão é um marco na história da região”, diz Ademar Borges, professor de direito constitucional do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP). “Ela vai além da visão mais tradicional de tutela da paridade de armas ou igualdade de chances. essa visão mais tradicional de abuso de poder econômico, político, tudo isso que já conhecemos. Ela alerta para um problema mais estrutural do que essa quebra pontual e não sistêmica das igualdades de chances, para a liberdade da justiça e das eleições em relação à indefinição prévia do resultado, e para o fato da cooptação intensa e generalizada das instituições”, avalia.

A condenação do estado Venezuelano não é apenas uma reparação pelo passado, mas um alerta em relação ao futuro, à medida que muitos líderes autoritários têm usado algumas das estratégias de Maduro para se perpetuar no poder, afirma. Ao fazer uma análise mais contextual do caso Capriles, incluindo o estágio anterior às eleições em relação ao estado das instituições e à imprevisibilidade do resultado, Borges avalia que a jurisprudência da Corte se sofistica para além dos casos clássicos de golpes, para abarcar também mecanismos contemporâneos de erosão democrática. 

“Aqui no Brasil, foi que tivemos um líder abertamente e drasticamente autoritário no poder, que conseguiu cooptar algumas instituições, como a Abin (Agência Brasileira de Inteligência) e a Polícia Rodoviária Federal”, diz Borges, sobre a atuação golpista do ex-presidente Jair Bolsonaro, apontada neste mês pela Polícia Federal. “Mas ele não conseguiu cooptar o judiciário, que permaneceu absolutamente independente, e deram resposta às suas arbitrariedades. Nas eleições de Maduro, o Judiciário já havia sido cooptado.”

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Outro exemplo de como a situação de esgarçamento democrático ocorreu de forma diferente no Brasil foi a reação à PEC do Calote, que, aprovada no Congresso durante 2021, permitiu que o governo não pagasse precatórios até 2026, dando mais fôlego ao orçamento da União durante o ano seguinte, eleitoral. Em 2023, a proposta de emenda à Constituição foi declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF). “Aquela PEC poderia ter sido fundamental para a erosão definitiva do regime democrático, ao ameaçar a igualdade de condições entre os candidatos. Mas houve uma resposta”, diz Borges. 

Desacato e liberdade de expressão

Mas a discussão do caso Capriles vs Venezuela também deixa “problemas para amanhã”, diz André de Carvalho Ramos, professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Os juízes da Corte IDH se dividiram quando o assunto foi o uso do direito penal em casos de desacato. “Dissensos em cortes muitos pequenas geram a necessidade de leitura muito atenta dos próximos indicados”, afirma Ramos.

No caso, a discussão foi ensejada pela aplicação de sanções contra Henrique Capriles, que, conforme concluiu a Corte, apenas exerceu sua liberdade de expressão ao criticar a parcialidade do Tribunal Supremo de Justiça do país durante o processo eleitoral. Em resposta, a Sala Constitucional da Venezuela considerou que essas declarações configuraram “desacato” e “falta de respeito à majestade do Poder Judicial”, e Capriles foi multado por suas declarações.

A Corte IDH concluiu que, em casos relacionados a expressões de interesse público, o uso do direito penal para proteger a honra de funcionários públicos é desproporcional e contrário à Convenção Americana. Mas não sem discussão. Enquanto a juíza Nancy Hernández López apoiou a exclusão do uso do direito penal para proteger o honor de funcionários públicos, e defendeu o uso de mecanismos civis para lidar com as situações, seguindo a posição majoritária da Corte, a juíza Patricia Pérez Goldberg discordou da maioria. Ele argumentou que, em uma sociedade democrática, pode haver situações em que a tutela penal é legítima para resguardar a dignidade de funcionários contra abusos, e considera que o padrão estabelecido pela Corte é excessivamente restritivo. 

“Isso interessa ao Brasil, pois, em algum momento, a Corte vai deliberar sobre petições brasileiras relacionadas a desacatos”, diz André Carvalho Ramos. “Mesmo que os precedentes deste caso não sejam perfeitos para as petições, isso provoca uma discussão, um diálogo sobre o crime de desacato”. 

Em 2020, o STF decidiu, por maioria, que o crime de desacato a funcionários públicos foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988, mas sua aplicação deve ser restritiva. “Temos que avançar nesse controle de convencionalidade”, diz Piovesan, da PUC-SP. “Do contrário, é como se você deixasse aquela autoridade embalada em uma torre de marfim, sem accountability”, conclui.