Repercussões na incidência concomitante do ITCMD e IR em adiantamento de legítima

JOTA.Info 2024-12-06

O tema deste artigo se insere nos impactos tributários planejamento sucessório e foca nas doações realizadas em vida por ascendentes ou descendentes aos seus herdeiros prevista no artigo 544 do Código Civil (CC).

Essas transmissões são consideradas como adiantamento da legítima, que é a parcela obrigatória destinada aos herdeiros necessários (descendentes, ascendentes e cônjuge), conforme o artigo 1.845 do CC, devendo corresponder a 50% dos bens que compõem a herança, conforme assegurado no artigo 1.846 do CC.

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Esse cenário envolve dois impostos distintos: o Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD), aplicável em caso de transferência de bens por herança ou doação em adiantamento de legítima, com alíquotas de até 8% sobre o valor venal dos bens, geralmente equivalente ao de mercado; e o Imposto de Renda (IR), que incide sobre o ganho de capital obtido na alienação de bens ou direitos, com alíquotas progressivas de 15% e 22,5%.

Nessa toada, surge a discussão sobre a viabilidade legal e constitucional de uma potencial incidência cumulativa sobre um mesmo fato gerador do ITCMD e do IR. A questão foi analisada recentemente pela 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) no Recurso Extraordinário 1.425.609 e trouxe um embate sobre a constitucionalidade do §1º, do artigo 23, da Lei 9.532/1997, que prevê a cobrança de Imposto de Renda sobre a diferença positiva entre o valor de mercado de um bem doado em adiantamento de legítima e o valor declarado pelo doador, com alíquota de 15%.

No caso em questão, a autora doou bens a valor de mercado a uma de suas filhas, em adiantamento de legítima, após o inventário do espólio do marido falecido. A autora contestou a constitucionalidade da cobrança do IR sobre ganhos de capital na doação, alegando bitributação, justificando que o ITCMD já incide sobre o valor de mercado dos bens no momento da doação. Assim, a tributação do ganho de capital pelo IR resultaria em sobreposição tributária sobre o mesmo fato gerador.

O Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) assentou pela inexigibilidade do Imposto de Renda sobre o ganho de capital na transmissão hereditária ou doação de bens, pois a jurisprudência de sua Corte Especial considera que o artigo 23, §1º, da Lei 9.532/1997 é inconstitucional.

A União recorreu ao STF, alegando contrariedade aos artigos 153, III; e 155, inciso I, da CF/88. Afirmou que o IR deve incidir mesmo com a cobrança do ITCMD, pois o IR se aplica à aquisição de disponibilidade econômica, enquanto o ITCMD trata da transmissão da propriedade. Além disso, defendeu a constitucionalidade do § 1º do artigo 23 da Lei 9.532/97, sustentando que esse dispositivo tributa a valorização patrimonial do doador, não a herança ou doação.

O relator do caso (RE 1.425.609/GO), ministro Gilmar Mendes, reconheceu a incidência do IR sobre o ganho de capital em transmissão hereditária ou doação de bens. O ministro argumentou que o artigo apenas define o momento da apuração do acréscimo patrimonial, sem alterar o fato gerador do IR. Desse modo, para Mendes, a cobrança do imposto de renda não se configura como tributação sobre a herança ou doação, mas apenas estabelece o momento da tributação do ganho de capital, afastando a bitributação.

O Ministério Público Federal recorreu da decisão, mas a 2ª Turma do STF validou, por maioria, o entendimento do relator. Assim, o entendimento predominante foi pela incidência do IR, por considerar que o ganho de capital nas transferências de bens provenientes de falecidos ou doadores configura um acréscimo patrimonial.

A posição adotada pela 2ª Turma do STF alinhou-se com o entendimento de Schoueri1, o qual argumenta que, se um imóvel tiver valorizado em relação ao seu custo de aquisição, isso configura um acréscimo patrimonial e, portanto, deve incidir o Imposto de Renda.

Em que pese o referido posicionamento, a 1ª Turma do STF, na apreciação do ARE 1.387.761/ES-AgR, não admitiu a incidência do IR por compreender que resultaria em indevida bitributação à vista do ITCMD. Esclareceu que, no caso de antecipação de legítima, não haveria acréscimo patrimonial disponível para o doador, o que afasta a incidência do IR. Adiro com o entendimento pronunciado pela referida turma pelos motivos a seguir expostos.

O imposto de renda, conforme o artigo 43 do Código Tributário Nacional, está ligado ao acréscimo patrimonial disponível. No entanto, na doação de bens, mesmo que os imóveis doados possam se valorizar, não resulta em tal acréscimo para o doador ou para o espólio. Isso ocorre porque os bens são retirados do patrimônio do doador sem qualquer compensação financeira, resultando em uma redução do patrimônio.

Além disso, a doação não se alinha nos conceitos de renda, lucro ou ganho de capital, uma vez que ocorre de forma gratuita, sem incremento do patrimônio do doador, o que a exclui da incidência do Imposto de Renda.

Impor o IR sobre doações compromete a capacidade contributiva prevista na Constituição (artigo 145, § 1º), pois a doação representa uma mitigação patrimonial e não um sinal de riqueza. É desarrazoado requerer que o doador, após transferir o bem e reduzir seu patrimônio, pague imposto de renda sobre a valorização que o bem doado teria tido antes da transferência.

Nesse contexto, o ministro Dias Toffoli destaca em seu voto no julgamento do RE 1.425.609, que a doação gera acréscimo patrimonial apenas para o donatário, responsável pelo pagamento do ITCMD, não do Imposto de Renda, conforme a distribuição constitucional de competências e o ITCMD abrange o próprio valor de mercado do bem doado, incluindo evidentemente o ganho de capital.

Diante disso tudo, parece claro que a aplicação do IR sobre esse ganho, conforme o artigo 23, § 1º, da Lei 9.532/97, resultaria em bitributação, pois o ITCMD já cobre a mesma base de cálculo. Essa duplicidade tributária violaria a CF/88, que considera o ITCMD o único imposto aplicável às transmissões e em doações, sendo competência dos estados instituí-lo. Dessa maneira, a incidência do IR na situação é inconstitucional.

Nessa toada, Torres2 afirma que, ao receber herança ou doação, o contribuinte deve pagar apenas o ITCMD e não o IR, pois o ITCMD é de competência exclusiva do Estado, o que impede a cobrança por outros entes, evitando a bitributação.

O IR deve incidir apenas na venda do bem, sobre a diferença entre o valor de aquisição e o de venda, refletindo o acréscimo patrimonial. Por fim, argumenta que a exigência de IR sobre ganhos de capital do falecido, do doador ou do cônjuge configura um imposto disfarçado sobre transmissões causa mortis ou doações.

À luz da relevância da questão, é essencial que o STF uniformize sua orientação, mantendo o entendimento da 1ª Turma. Isso pois, a cobrança do IR sobre o ganho de capital em doações ou transmissões causa mortis configura bitributação vedada pela Constituição, uma vez que o ITCMD já incide sobre o valor dos bens transmitidos. O IR deve incidir apenas sobre acréscimos patrimoniais, o que não ocorre nessas transferências, pois o doador ou espólio sofrem redução patrimonial.


1 SCHOUERI, Luís Eduardo. A cobrança de Imposto de Renda em transferências de bens e heranças e seus desdobramentos. Jornal da USP, São Paulo, 19 jun. 2024. Disponível em: < https://jornal.usp.br/radio- usp/a-cobranca-de-imposto-de-renda-em-transferencias-de-bens-e-herancas-e-seus-desdobramentos/>. Acesso em: 4 out. 2024.

2 TORRES, Ricardo Lobo. A incidência do Imposto de Renda na Transferência do Direito de Propriedade. Revista Dialética de Direito Tributário no 32, p.78/83.