A nova fase do patrimonialismo

JOTA.Info 2025-01-14

Certa vez, em uma conversa com um colega promotor de justiça, ele me contou como precisou explicar a um prefeito de uma cidade do interior que este não tinha liberdade para contratar quem bem entendesse, sendo necessário seguir um procedimento licitatório. Irresignado, o prefeito indagou: qual, então, é a vantagem de ser prefeito?

Essa anedota ilustra com clareza uma das grandes chagas do Estado brasileiro: o patrimonialismo. Essa confusão entre o que é público e o que é privado permite que agentes do Estado utilizem bens e funções públicas para avançar seus interesses pessoais. As manifestações desse fenômeno são diversas: o uso de carros oficiais para tarefas privadas; pressão de professores em universidades federais para favorecer ou barrar a admissão de certas pessoas; nepotismo – inclusive cruzado – em tribunais, prefeituras e assembleias. Os exemplos são intermináveis.

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Em Os donos do poder,[1] Faoro explica como esse vírus que contamina o “estamento burocrático” brasileiro é uma herança da colonização portuguesa, servindo às elites político-administrativas em seus projetos de perpetuação no poder e manutenção de privilégios. Um reflexo disso está no sistema tributário e seus benefícios desiguais, assim como nos penduricalhos que formam os supersalários do alto escalão do Estado brasileiro.

Hoje, com o advento da tecnologia e das redes sociais, assistimos à emergência de uma nova face desse comportamento: os funcionários-influenciadores, que utilizam suas posições públicas para fins privados, agravando o histórico problema do patrimonialismo no país.

A monetização direta

Um exemplo disso ocorre na segurança pública. Não são poucos os canais no YouTube em que policiais gravavam vídeos de suas operações e os compartilhavam para milhares de seguidores. A prática nada tem de inofensiva, além de prejudicar a própria corporação, ao expor procedimentos de enfrentamento ao crime, os policiais aumentam sua renda com ganhos em dólar.

O problema vai muito além de uma questão ética. A notoriedade que conquistaram – de forma indevida – não só garantiu que esses agentes experimentassem um acúmulo patrimonial, mas também abriu caminho para que entrassem na política, um campo onde fama muitas vezes supera competência como critério de sucesso eleitoral.

A segurança pública, no entanto, não foi o único ambiente em que a nova face do patrimonialismo se manifestou. No Congresso Nacional, que abriga algumas das posições mais bem remuneradas do país, parlamentares têm utilizado as redes sociais como ferramentas lucrativas para incrementar seus rendimentos de maneira questionável. Nesse ambiente, onde o Poder Legislativo deveria se concentrar na formulação de políticas públicas, surge a figura do “parlamentar-influenciador”.

Como demonstrou reportagem do The Intercept, deputados federais vêm explorando plataformas como o Instagram para vender assinaturas que dão acesso aos bastidores de seus mandatos, respostas a perguntas e destaques em lives. A prática não só cria um canal paralelo de remuneração, mas também mina a já debilitada confiança da população no sistema político, uma vez que se torna possível pagar pelo acesso prioritário ao representante do povo.

Embora a Câmara tenha tentado conter esse abuso ao proibir monetizações relacionadas ao exercício do mandato no YouTube, a regra já nasceu ultrapassada. A brecha deixada pela ausência de regulamentação sobre o Instagram – porque o recurso de monetização não existia na época da norma – permitiu que os deputados continuassem a encher seus bolsos com uma atividade pela qual já são generosamente remunerados.

Monetização indireta

Aqui a situação fica mais nebulosa, porque a remuneração extra é uma consequência indireta do exercício da função pública.

Em um país com níveis pornográficos de desigualdade, concursos públicos são uma das melhores formas de transformação social. Essa transformação, porém, não é apenas financeira, mas também de status. Cargos como o de magistrado ou de membro do Ministério Público carregam uma aura de realeza, alçando os concursados ao patamar de seres superiores – pelo menos aos olhos de boa parte da população.

Esses cargos estão submetidos a vedações constitucionais que impedem seus ocupantes de acumular outras funções, exceto a de professor. Contudo, as redes sociais permitem que juízes e promotores atuem também como influenciadores digitais – o que, por si só, não é um problema.

Torna-se um problema, no entanto, quando o desempenho da atividade privada prejudica o desempenho da função pública. Não são raros os casos de pessoas que abandonaram a magistratura após utilizarem a estrutura do cargo para construir novas carreiras.

Afinal, por que começar do zero se é possível se beneficiar do Estado enquanto se monta algo mais lucrativo? Entre os concurseiros, essa prática já virou piada: ser juiz tornou-se um “cargo meio” para a vida de influenciador.

A questão se complica ainda mais quando analisamos o conteúdo produzido por alguns desses “jus-influenciadores”. Alguns agentes públicos utilizam gravações de audiências que conduzem para gerar engajamento em redes sociais.

Essa prática é profundamente problemática por pelo menos três razões: (1) o fato de a audiência ser pública não implica permissão aberta para o uso do material para fins privados, especialmente por parte daqueles responsáveis pela gravação; (2) houve consentimento das partes envolvidas para a divulgação de suas imagens?; e (3) até que ponto alguém, submetido à jurisdição, está realmente livre para negar um pedido do juiz?

Veja, não estou alegando que existe, nessa situação, uma ilegalidade. Não falo de um vício de consentimento no sentido civilista. Minhas observações são direcionadas a um comportamento anticonstitucional, por violar elementos fundantes do nosso documento fundador.

Esse tipo de expediente, praticado pelos “jus-influenciadores”, não só garante que eles consigam construir uma carreira paralela àquela que já desempenham, mas também abrem portas para novas possibilidades de ganhos. “Jus-influenciadores” conseguem projeção para lançar projetos pessoais, notoriedade para participar de congressos e, por vezes, até espaço no campo político – tudo isso construído sobre a estrutura do Estado.

Um compromisso republicano

Há tentativas – ainda que tímidas – para conter essa nova face do patrimonialismo. No Congresso, por exemplo, foi apresentado um projeto de lei que proíbe qualquer tipo de monetização “pela divulgação de conteúdos, como publicações em redes sociais, incluindo áudio e vídeo, relacionados ao exercício do mandato ou produzidos com recursos públicos”.[2]

Mas isso não é suficiente. É imprescindível que instituições como o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e outros órgãos de controle assumam um papel mais ativo na supervisão e responsabilização dos agentes públicos.

Esses órgãos precisam agir com celeridade e rigor para impedir que o Estado continue sendo instrumentalizado como uma ferramenta de enriquecimento privado, agravando as desigualdades que já caracterizam nossa sociedade.

A República, enquanto princípio fundamental, exige um compromisso ético e prático com a separação entre o público e o privado. Não levar esse princípio a sério não pode ser a sina de nossa nação. Afinal, as consequências de ignorar essas práticas vão muito além do simbólico: afetam diretamente a coesão social e a legitimidade democrática.

Em uma sociedade profundamente desigual como a brasileira, o poder de influência dos menos favorecidos já é dramaticamente reduzido. Quando agentes públicos utilizam suas posições para maximizar ganhos pessoais, isso aprofunda a percepção de que o sistema está estruturalmente distorcido a favor de uma casta privilegiada. Esse sentimento não apenas mina a confiança nas instituições, mas também alimenta discursos populistas e anti-elite – tendências que, em tempos recentes, se tornaram perigosamente frequentes no mundo.

Enfrentar essa nova face do patrimonialismo não é apenas uma questão moral; é um passo para fortalecer nossa República e reforçar os pilares da democracia. Permitir que agentes públicos continuem dançando sobre a linha que separa o público do privado, utilizando o Estado como instrumento de enriquecimento pessoal, não apenas perpetua desigualdades, mas também corrói a confiança da sociedade nas instituições. Proteger a República significa reafirmar que os recursos públicos existem para o benefício coletivo, e não como trampolins para ambições pessoais.


[1] Raymundo Faoro, Os donos do poder

[2] https://www.camara.leg.br/noticias/1047951-projeto-proibe-politicos-de-serem-remunerados-por-conteudo-relacionado-ao-mandato