Detenções arbitrárias no Equador violaram garantias, diz Corte IDH

JOTA.Info 2025-02-10

O Equador violou os direitos à liberdade pessoal, à presunção de inocência e à igualdade e não discriminação de três homens detidos de forma ilegal e arbitrária no país, determinou a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH). Em sentença do fim de janeiro (23/01), o Tribunal considerou que eles foram submetidos a maus-tratos, ameaças e coações durante os  processos penais, ficando incomunicáveis e em condições de prisão desumanas.  

O caso reforça a jurisprudência da Corte na supressão dos efeitos de decisão judicial que viole a Convenção Americana e discute a necessidade de o Direito interno dos Estados se adequarem aos comandos do Tribunal, um alerta que também vale para o Brasil.

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Walter Ernesto Reyes Mantilla, José Frank Serrano Barrera e Vicente Hipólito Arce Ronquillo foram detidos e presos de forma preventiva em meio a operações realizadas no Equador para desbaratar redes internacionais de tráfico de drogas que seriam associadas ao cartel de Cali. As prisões aconteceram entre os anos de 1995 e 1999, seguidas de uma sequência de abusos. 

Os dois primeiros foram presos sem ordem judicial prévia e mantidos incomunicáveis, com denúncias de agressões físicas, ameaças de tortura, interrogatório sem advogados, entre outros. Foram privados de liberdade por mais de três anos. 

Já Vicente Arce ficou isolado e sem acesso a advogados durante uma semana depois de ter sido coagido a se declarar culpado. Ele foi condenado em 1998 como cúmplice de um crime ligado ao narcotráfico, e conseguiu redução de pena e liberdade em setembro de 1999. 

Durante os processos, as vítimas denunciaram distintas violações de direitos fundamentais à Justiça. Em 2021, foi aberta uma investigação sobre as torturas a que Arce teria sido submetido enquanto estava preso. 

Para a Corte, a detenção das vítimas foi arbitrária, pois teve amparo em uma norma inconvencional que permitia, no Equador, que a polícia realizasse detenções por “graves presunções de responsabilidade”. Além disso, os acusados não foram informados sobre os motivos das detenções. 

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A Corte constatou que as prisões preventivas não contaram com uma análise de finalidade e necessidade, e foram baseadas em uma lei em vigor à época que era contrária à Convenção Americana de Direitos Humanos. A legislação não admitia liberdade provisória para investigados por delitos relacionados ao tráfico de drogas, o que impedia a aplicação de qualquer medida cautelar ou avaliação judicial de acordo com o contexto. 

Para a Corte IDH, a prisão preventiva foi prolongada de forma injustificada e sem controles periódicos, o que violou os direitos à presunção de inocência, à liberdade pessoal e à igualdade e não discriminação. 

Reyes, Serrano e Arce tampouco tiveram o direito a ser levados perante uma autoridade judicial após a detenção. O Tribunal Interamericano considerou ainda que os  habeas corpus não garantiram meio judicial eficaz para questionar a legalidade das detenções. Não foram respeitados o direito de defesa, o direito à informação, e as vítimas não contaram com defesa técnicas adequada durante os interrogatórios. 

Serrano, de nacionalidade colombiana, não foi informado sobre o direito à assistência consular de seu país.  

Apagamento de antecedentes 

Como forma de reparação, a Corte determinou que o Equador implemente programas de capacitação para policiais e que realize as investigações penais pertinentes para esclarecer o ocorrido, julgar e, se for o caso, punir os responsáveis.

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O Tribunal também decidiu que o Equador tem seis meses para tomar as medidas necessárias para que os dados pessoais de Arce e Serrano sejam retirados dos Registros de Antecedentes Penais e adote todas as ações de Direito interno para suprimir qualquer efeito decorrente dos processos ou condenações penais, o que inclui a remoção de registros judiciais, administrativos, criminais ou policiais. 

Isso porque Reyes e Serrano foram processados por crimes previstos na Lei sobre Substâncias Estupefacientes e Psicotrópicas, acusações pelas quais não chegaram a ser condenados definitivamente e acabaram absolvidos pela Justiça de Guayaquil. 

Apesar disso, o sistema de consulta de antecedentes ainda mantém o registro de “processados” por crimes relacionados ao narcotráfico. Daí a determinação de reparação da Corte IDH de tornar sem efeito as consequências derivadas do processo penal contra eles. 

Voto de Mudrovitsch

O último ponto foi destacado em voto concorrente do juiz brasileiro Rodrigo Mudrovitsch. Ele aponta que a ideia de que, em determinados cenários de violações de direitos humanos, é necessário tornar sem efeito um processo ou decisão doméstica é bastante recorrente na jurisprudência interamericana. E tem se mostrado indispensável para, segundo o vice-presidente da Corte IDH, promover reparação integral em favor das vítimas.

O juiz brasileiro mostra como o caso “Reyes Mantilla e outros Vs Equador” é oportunidade para reconstruir de modo sistemático os contornos da ideia de “tornar sem efeito” um processo ou decisão doméstica, como já vem fazendo a Corte. 

No voto, ele examina casos em que essa medida de reparação foi determinada pelo Tribunal, de modo a tornar sem efeitos uma sentença, para que todo o processo ocorresse novamente, ou para que se permitisse um direito a recurso, exemplos dos casos “Fornerón e filha Vs Argentina” e “Raxcacó Reyes Vs Guatemala” (2006). 

“A exigência de ‘deixar sem efeito’ processo ou decisão doméstica no âmbito das reparações pode ser identificada em uma quantidade considerável de casos da Corte IDH. A presença assídua dessa medida de reparação na jurisprudência interamericana é sintoma direto de sua importância para reparar e restituir o que é devido às vítimas de violações de direitos humanos”, afirma o juiz. “Sem a adoção dessa medida, o reconhecimento da inconvencionalidade de práticas judiciais e administrativas seria esvaziado, com a permanência de efeitos e repercussões negativas da prática inconvencional”, diz Mudrovitsch no voto.

O juiz ressalta que no caso “Reyes Mantilla Vs Equador” foram constatadas violações pré-processuais às garantias judiciais que afetam a validade do processo e ensejam a supressão de seus efeitos. As garantias declaradas violadas, como o direito à defesa, o direito à assistência consular, o direito à presunção de inocência e a não declarar contra si mesmo, diz, foram produto de atos e omissões estatais, verificados antes mesmo de as vítimas serem formalmente acusadas. 

“Ao ordenar ao Estado que deixe sem efeito as consequências do processo penal instaurado contra as vítimas, a Corte IDH reconhece que um processo que nasceu de procedimentos investigativos marcados por violações de direitos humanos também pode ter sua validade comprometida e, se for o caso, igualmente não pode produzir consequências sobre o patrimônio jurídico dos acusados, mesmo que não resulte em decisão condenatória”, afirmou. 

“No caso concreto, tais consequências estavam materializadas na presença do nome das vítimas no Registro de Antecedentes Penais como processados por narcotráfico, o que traz grave estigma à sua reputação e tem o condão de afetar seus respectivos projetos de vida”, acrescentou.

Alerta para o Brasil

Para analistas ouvidos pelo JOTA, a sentença reforça a jurisprudência da Corte IDH em uma série de violações, com destaque para a construção jurisprudencial do juiz Mudrovitsch, em um caso que também traz alertas para o Brasil. 

“A Corte firma a importância do respeito ao direito de liberdade e sobretudo ao devido processo penal, em uma região com um histórico negativo nesse quesito. A Corte tem ressaltado bem os pontos que dizem respeito à fundamentação das decisões, às causas para privação de liberdade antes do julgamento, ao prazo dessa restrição e principalmente à necessidade de controle judicial, o que seriam nossas audiências de custódia no Brasil, como forma importante de controle de prisões que podem se tornar ilegais mesmo quando decretadas legalmente”, diz o procurador regional da República Vladimir Aras, professor da Universidade Federal da Bahia e membro fundador do Instituto de Direito e Inovação (ID-i). 

A sentença, afirma, se insere em um contexto de decisões da Corte de obrigações positivas para os Estados que contribuem para a reparação e constroem uma base de precedentes para o futuro.

“Este é um caso estruturante no qual há uma preocupação, detalhada no voto do juiz Rodrigo Mudrovitsch, em apresentar os conceitos que aparecem rotineiramente nos julgados interamericanos, como por exemplo o “deixar sem efeito”, suprimir a eficácia das medidas que causam a violação, seja na atividade da polícia, do Ministério Público ou do Poder Judiciário, no caso do Equador”, afirma. 

“Ele faz uma compilação muito rica na qual identifica as formas pelas quais se pode suprimir os impactos negativos de uma violação nos direitos fundamentais da vítima e descreve com clareza os caminhos para se chegar a isso”. 

Para a advogada criminalista Paula Ritzmann Torres, doutora em Direito Internacional pela USP e sócia do Badaró Falk Maximo Advogados, o caso mostra uma evolução da Corte nas medidas de reparação das violações sofridas pelas vítimas, no sentido de permitir às vítimas retornarem a uma situação a mais próxima possível de antes de as violações ocorrerem.  

“É um ponto abordado em detalhes no voto do juiz brasileiro, que analisa de forma completa como ao longo de mais de 20 anos a Corte tem crescido no conceito de tornar sem efeito ou suprimir os efeitos de uma decisão judicial ou processo que violem direitos previstos na Convenção”, afirma. 

“Esse papel de revelar uma jurisprudência construída é importante porque essa sistematização torna o tema mais claro, a Corte fortalece sua jurisprudência e os Estados compreendem de que forma têm que cumprir as decisões, seja num caso em que forem condenados e haja obrigação específica de cumprimento, ou em casos em que o Estado não foi condenado, mas precisa olhar para seu direito interno e analisá-lo, que é a situação do Brasil”, diz ela. 

O voto de Mudrovitsch tem o mérito também de chamar a atenção para isso, explica. 

“A sentença e o voto do juiz Mudrovitsch trazem esse debate de volta para o Brasil. Desde 1998, quando o país passou a se submeter efetivamente à jurisdição obrigatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos, foi um longo caminho e chegou-se a discutir no Congresso a elaboração de uma lei de implementação, lato sensu, para sentenças da Corte, que poderia abarcar diferentes tipos e criar obrigações para os Poderes Judiciário, Legislativo e Executivo. Mas os projetos não avançaram. Não temos uma lei geral de implementação e seria um bom momento de retomar esse debate”, afirma Paula.  

A decisão traz ao Brasil uma oportunidade de olhar para dentro e entender onde os mecanismos reparatórios citados pela Corte se encaixariam na ótica do Direito interno, completa Vladimir Aras. 

“O que colocaríamos como ferramenta que realmente propiciasse a eliminação de registros de antecedentes, como no caso do Equador? Quais seriam os outros mecanismos reparatórios usados no caso de um indivíduo preso em consequência de violação ou que houvesse confiscos patrimoniais realizados pelo Estado a partir de uma condenação considerada inconvencional pela Corte? Não temos isso no Brasil e precisamos de uma lei de implementação, de uma lei brasileira que dialogue com o sistema interamericano”, afirma ele. 

“No caso das mães de Acari, por exemplo, o MPF acabou de instalar um procedimento para acompanhar o cumprimento da sentença. Mas quais são essas ferramentas concretas?”, questiona. “Não podemos resolver as coisas casuisticamente, sem ter uma lei geral brasileira que permita a interlocução dos órgãos do Judiciário, do Ministério Público, com as consequências imediatas das sentenças interamericanas”, completa Aras. 

O caso do Equador é importante nesse contexto porque aparece como mais um exemplo de decisão internacional em que se registra a indispensabilidade de respeito material e formal à normas convencionais, como condição de existência da decisão, mais do que de validade dela, diz o advogado criminal Roberto Soares Garcia, presidente do Conselho Deliberativo do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD). 

“Sem observância real e efetiva das normas convencionais, da fase de investigação a até mesmo depois do exaurimento da pena, toda a reação estatal deve ser tornada sem efeito, o que é mais do que tornada nula, cabendo ao Estado autor do maltrato o reconhecimento e reparação da situação inconvencional, além de dotar as esferas estatais dos mecanismos necessários para essa realização”, reforça ele. 

A reunião dos precedentes no voto de Mudrovitsch traz um efeito prático relevante, avalia Soares. “A importância central reside na circunstância de que, compilada, a doutrina do ‘tornar sem efeito’ fica pronta para ser apresentada às academias locais e aos operadores do Direito dos diversos Estados, com vistas a ser introduzida e produzir efeitos nos diversos direitos internos”, diz Soares Garcia. 

O Brasil, concorda, ainda engatinha nesse aspecto. 

“No que se refere aos registros criminais, permanecem disponíveis para juízes, promotores e delegados todos os apontamentos, não importando se houve absolvição, nulidade reconhecida ou se houve cumprimento de pena”, diz ele. 

“Sobre os instrumentos para revisar condenações injustas, o Judiciário brasileiro dá prevalência para a revisão criminal, cujo processo é lento e cheio de restrições, afastando a atuação de habeas corpus, instituto mais célere e eficaz. Reparações para malfeitos institucionais são quase inexistentes”. 

Participaram da emissão da sentença os juízes Nancy Hernández López (Costa Rica, presidente da Corte IDH); Rodrigo Mudrovitsch (Brasil, vice-presidente da Corte IDH); Humberto Antonio Sierra Porto (Colômbia); Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot (México); Ricardo C. Pérez Manrique (Uruguai); Verónica Gómez (Argentina) e Patricia Pérez Goldberg (Chile).