Dispensa de licitação por pequeno valor: o que significa administrar?
JOTA.Info 2025-02-23
A Constituição de 1988 inovou ao prever um dever geral de licitar, no art. 37, XXI para a Administração Pública Direta e no art. 173, §1º, III para as empresas estatais. Assim, um procedimento até então menor se tornou uma regra fundamental a ser observada por gestores públicos, em nome da impessoalidade, da economia de recursos públicos, dentre outros valores.
Apesar disso, parte da doutrina lembra que não se trata de um princípio universal, ou da única forma de realizar tais valores[1]. As próprias leis de licitações elegeram diversos casos em que ele é afastado, seja como dispensa, inexigibilidade – ou até uma inaplicabilidade no caso das estatais[2].
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Um desses casos em que a licitação é afastada, bastante popular, é o da dispensa por pequeno valor, de compras e serviços de até R$ 50 mil, e de contratação de serviços de engenharia até R$ 100 mil – nos valores originais da Lei 13.303/2016 e da Lei 14.133/2021. Numa espécie de cálculo custo-benefício de quanto custa fazer uma licitação, nesses casos mais singelos, essa não precisaria ocorrer.
Na doutrina especializada, Edgar Guimarães e José Anacleto Abduch Santos[3] trazem lições esclarecedoras acerca do tema dispondo que, nessas hipóteses, o certame licitatório seria por demais dispendioso, não podendo ser superado pelos benefícios auferidos de sua realização. Significa dizer que a dispensa se justifica em razão do atendimento ao interesse público sob o prisma da economia administrativa.
A menção a valores precisos encobre, no entanto, o fato de que sua apuração não é evidente.
As próprias leis preveem que o valor não pode se prestar ao fracionamento. Isto é, não cabe a divisão de uma contratação maior em várias pequenas simplesmente para não ter que licitar. Para adquirir um veículo, é óbvio que não cabe comprar os pneus, o motor, os bancos, os vidros e demais componentes e depois pretender montá-lo, justamente para fugir do dever de licitar.
A jurisprudência, por sua vez, geralmente alcança casos extremos, como do Prefeito que gasta R$ 1 milhão em várias pequenas compras ao longo do ano[4].
Contudo, a própria legislação infralegal demonstra a ambiguidade que é administrar.
Em âmbito federal, a Instrução Normativa Seges/ME 67, de 8 de julho de 2021, em sua redação original, previa que para apuração desse limite de valor da dispensa deveria ser considerado o mesmo ramo de atividade, traduzido no “CNAE da empresa”:
“Art. 4º (…) § 1º Para fins de aferição dos valores que atendam aos limites referidos nos incisos I e II do caput, deverão ser observados:
I – o somatório despendido no exercício financeiro pela respectiva unidade gestora; e
II – o somatório da despesa realizada com objetos de mesma natureza, entendidos como tais aqueles relativos a contratações no mesmo ramo de atividade.
§ 2º Considera-se ramo de atividade a partição econômica do mercado, identificada pelo nível de subclasse da Classificação Nacional de Atividades Econômicas – CNAE”.
Ocorre que uma empresa pode ter vários CNAEs, e um mesmo serviço pode ser enquadrados em mais de uma classificação, revelando a imprecisão do critério.
Por isso, tal Instrução acabou alterada pela IN 08/2023-SEGES/MGI, com uma nova definição de como considerar o “mesmo ramo de atividade”:
“Art. 4º (…) § 2º Considera-se ramo de atividade a linha de fornecimento registrada pelo fornecedor quando do seu cadastramento no Sistema de Cadastramento Unificado de Fornecedores (Sicaf), vinculada:
I – à classe de materiais, utilizando o Padrão Descritivo de Materiais (PDM) do Sistema de Catalogação de Material do Governo federal; ou
II – à descrição dos serviços ou das obras, constante do Sistema de Catalogação de Serviços ou de Obras do Governo federal”.
Como se vê, o que parecia claro na legislação (R$ 50 mil e/ou R$ 100 mil) revela na verdade um conceito abstrato (“mesmo ramo de atividade”), que pode ser apurado de várias formas.
A alteração do critério em tão poucos anos, apesar de a legislação estar em vigor há mais de 30 anos (considerando a promulgação da antecessora Lei 8.666/1993), também faz lembrar a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB – Decreto-Lei 4.657/1942). Seja por essa lei prever que não é possível decidir a partir de valores jurídicos abstratos, ignorando as consequências (art. 20), seja por definir que ao julgar, devem ser consideradas as orientações gerais da época (art. 24).
Tudo isso para mostrar como administrar envolve escolher um critério e saber justificá-lo, demonstrando as peculiaridades do caso concreto, ainda que isso envolva riscos. A legislação, por mais perfeita e ampla que pretenda ser, nunca será capaz de abarcar toda a realidade. Administrar não é, e nunca foi, chegar à decisão perfeita e absoluta, uma vez que ela não existe.
[1] SUNDFELD, Carlos Ari; ROSILHO, André. Onde está o princípio universal da licitação? In: SUNDFELD, Carlos Ari; JURKSAITIS, Guilherme. Contratos públicos e direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 2015, pp. 19-38.
[2] JUSTEN FILHO, Marçal. A contratação sem licitação nas empresas estatais. In: JUSTEN FILHO, Marçal (org.). Estatuto jurídico das empresas estatais: Lei 13.303/2016. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, pp. 298 e ss.
[3] GUIMARÃES, Edgar; SANTOS, José Anacleto Abduch. Lei das estatais: comentários ao regime jurídico licitatório e contratual da Lei nº 13.303/2016. Belo Horizonte: Fórum, 2017, pp. 44-45.
[4] Tribunal de Contas do Estado de São Paulo. TC-003988.989.22-4, 1ª Câmara, rel. Cons. Marco Aurélio Bertaiolli, data da sessão 17/09/2024.