Governança de carreiras no setor público

JOTA.Info 2025-02-26

Da perspectiva macroeconômica, não há planejamento possível da força de trabalho dentro da dinâmica capitalista privada. Independente do setor de atividade ou tamanho da firma, as decisões sobre contratações, alocação, composição, treinamento, avaliação, remuneração, demissão etc. são tomadas pelas empresas, individualmente, à luz dos sinais de mercado e suas respectivas estratégias de expansão ou sobrevivência, no curto, médio e longo prazos.

Por esta razão, o resultado agregado dessas decisões microeconômicas conforma mercados de trabalho nacionais, regionais e locais com características necessariamente híbridas, refletindo sempre o padrão e o estágio de desenvolvimento capitalista vigentes em cada uma das escalas territoriais e momentos do tempo vividos em cada país.

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No Brasil, por exemplo, sabe-se que o seu mercado privado de trabalho é composto, essencialmente, por ocupações muito heterogêneas e desiguais do ponto de vista das condições de utilização (vínculos, contratos e jornada de trabalho), remuneração (formas variadas e incertas), proteção (saúde, segurança e seguridade nas fases ativa e pós-laboral), representação (sindicalização) e acesso à Justiça do Trabalho (direitos consagrados pela CLT e OIT).

Já no setor público, sobretudo em âmbito federal e considerando ademais as suas finalidades constitucionais, políticas e sociais, as cinco dimensões acima possuem tratamento legal e substantivo algo mais uniforme ou menos heterogêneo e desigual, fruto de processos de regulação e regulamentação mais estritos e menos cambiantes ao longo dos anos.

Além disso, considerando aqui apenas o Poder Executivo Federal como núcleo da análise, aplicam-se praticamente as mesmas regras (Lei 8.112/1990, por exemplo) a um contingente imenso de trabalhadores, os quais ocupavam em janeiro de 2025 a casa dos 578 mil servidores civis ativos e algo como 640 mil aposentados e pensionistas na União.

Este aspecto alia-se ao fato de que, diferentemente da grande heterogeneidade e precariedade dos vínculos privados de trabalho, no setor público federal a grande maioria dos servidores públicos ingressa por concursos concorridos, adquire estabilidade relativa após estágio probatório de três anos, integra cargos ou carreiras semiestruturadas, percebe remunerações previsíveis e permanentes, percorre trajetórias longevas por uma ou mais áreas e órgãos da administração, associadas a momentos formativos e avaliativos de vários tipos, até a aposentação que lhes garante alguma renda mínima necessária na velhice.

Tudo somado, pode-se falar de um ciclo de vida laboral de servidores e servidoras públicas, ou simplesmente ciclo laboral no setor público federal brasileiro, que gera a oportunidade – e mais do que isso, a necessidade – de o Estado-empregador planejar e gerenciar, preferencialmente bem-informado por evidências, a sua estrutura organizacional e a correspondente composição e evolução ocupacional da sua força de trabalho de forma estratégica, permanente e previsível ao longo do tempo.

Não obstante, apesar disso, o cenário é – com poucas exceções setoriais à parte – de ausência ou baixa eficácia e efetividade do planejamento da força de trabalho a serviço do Poder Executivo federal no Brasil.

Esta lacuna institucional se deve a vários fatores, mas aqui vamos destacar um dos principais: sendo o cargo ou a carreira o elemento estruturante central do conceito de ciclo laboral acima resumido, uma vez que não exista ou seja precário o seu arranjo institucional de governança pública, várias das dimensões responsáveis pela eficácia e efetividade de sua atuação (tais como o dimensionamento quantitativo e de perfil, o tipo de seleção, a alocação e a ambientação, a capacitação e o desenvolvimento  profissional, a remuneração e a progressão/promoção etc.) estarão comprometidas.

No contexto do sistema federal de carreiras, entende-se que a governança pode ser idealmente definida como uma função exercida por um certo número de atores de alto nível gerencial que juntos tomam decisões estratégicas de planejamento e coordenação que na prática se destinam a organizar, direcionar, monitorar e avaliar a inserção e o desempenho de pessoas/servidores inseridos em uma ou mais carreiras públicas.

Além de prover a administração pública com os melhores quadros de servidores, dotados de conhecimentos profundos acerca da realidade brasileira, capacidade tecnopolítica e visão de futuro sobre o peso e papel da atuação estatal nos processos de transformação e desenvolvimento do país, a governança pública de carreiras se destina a assegurar que a atuação governamental neste campo, por meio das políticas públicas, esteja direcionada não a interesses corporativistas ou autocentrados, mas sim ao cumprimento de objetivos de governo alinhados às necessidades da sociedade.

Certamente, não se trata de tarefa rápida, fácil ou barata, mas indispensável à mudança de patamar na relação entre burocracia pública e desempenho institucional do Estado brasileiro. Como se sabe, o sistema de carreiras da Administração Pública federal é extremamente diverso e fragmentado, composto por 43 planos, 120 carreiras distintas e mais de 2.000 cargos específicos, distribuídos entre os vários órgãos e entidades da União.

Do ponto de vista da coordenação geral, a gestão desses planos, cargos e carreiras pode ser dividida em atividades de supervisão e atividades de administração funcional. A supervisão está definida na Lei 9.620/1998, que estabelece que o órgão supervisor deverá: definir os termos do edital de seleção; o conteúdo do curso de formação; distribuir o quantitativo de cargos ocupados; definir o local de exercício e a habilitação necessária para investidura no cargo; definir programas de desenvolvimento profissional e aplicação das normas e procedimentos de progressão e promoção ao longo da carreira.

Por sua vez, a administração funcional consiste no acompanhamento cotidiano do servidor, disciplinando e autorizando situações tais como: licenças, afastamentos, férias, concessão de benefícios, pagamentos e demais atividades rotineiras da vida funcional do servidor.

A gestão da maior parte dos planos, cargos e carreiras é realizada de forma descentralizada pelos órgãos e entidades nos quais os servidores estão alocados e desempenham suas atividades, como ocorre nas autarquias (por exemplo nas agências reguladoras) e nas fundações – por exemplo na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Mas na atual configuração do sistema existem também aqueles planos, cargos e carreiras que estão lotados e atuam em mais de um órgão e entidade da administração. Por isso, e de acordo com a Portaria MGI 5.127/2024, eles podem ser definidos como planos, cargos e carreiras transversais.

Alguns dos planos, cargos e carreiras transversais são supervisionados de maneira centralizada por determinado órgão ou entidade específica, responsável pela gestão de determinados sistemas estruturadores no Poder Executivo federal,[1] a exemplo das carreiras de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (EPPGG, Analista de Infraestrutura (AIE), Analista Técnico de Políticas Sociais (ATPS), Analista Técnico de Desenvolvimento Socioeconômico (ATDS) e Analista Técnico de Justiça e Defesa (ATDJ), que estão a cargo do atual Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI). Ou como é o caso da Secretaria de Governo Digital (SGD), órgão central do Sistema de Administração dos Recursos de Tecnologia da Informação do Poder Executivo federal (SISP), que supervisiona a Carreira de Analista de Tecnologia da Informação (ATI).

Mas essa gestão também pode ser realizada por órgãos responsáveis pela coordenação de políticas públicas específicas, a exemplo da Funai, que coordena a política indigenista do país e é a entidade que supervisiona as Carreiras de Especialista e de Técnico em Indigenismo. Isso significa que esses órgãos ficam responsáveis pela supervisão e desenvolvimento dos seus respectivos planos e carreiras.

Em todos os casos, ainda que a maturidade na gestão desses planos e carreiras seja questionável, carecendo de uma condução mais estratégica e menos operacional pelos respectivos órgãos e entidades supervisores, há um esforço para identificar a necessidade de concursos, alocação, capacitação, dentre outras práticas de gestão da força de trabalho.

No entanto, fragilidade maior se encontra na fragmentação da gestão de pessoas no caso dos planos e carreiras que, embora atendam ao conceito de transversalidade, ou seja, estejam presentes em mais de um órgão ou entidade, não possuem uma supervisão nem coordenação unificada. Não há supervisão do plano ou carreira, ficando a cargo de cada órgão que detém a lotação e exercício desses servidores decidir sobre os rumos destes grupos dentro da instituição.

É o que acontece, por exemplo, com os cargos do Plano Geral de Cargos do Poder Executivo (PGPE), Carreira da Previdência, da Saúde e do Trabalho (CPST), Plano Especial de Cargos do Ministério da Fazenda (PECFAZ). Ressalte-se que, ainda que seja de um mesmo plano ou carreira, portanto, regido por uma mesma lei de criação, esses grupos podem receber tratamentos muito diferentes durante sua vida funcional, o que ajuda a explicar, por exemplo, as discrepâncias remuneratórias presentes no universo de servidores que, não obstante exercerem atividades iguais ou similares, ainda assim recebem salários diferentes de outros planos ou carreiras que possuem uma gestão por um órgão supervisor.

Então, além da diversidade de planos e carreiras, há também diferenças na forma como a gestão dos planos e carreiras é realizada. Essa diferenciação gera distorções de diversas ordens, impactando a situação dos servidores pertencentes a esses planos e carreiras, a gestão da força de trabalho e o adequado aproveitamento dos servidores pelo Poder Executivo federal.

Ademais, os planos e carreiras transversais sem supervisão centralizada têm legislações diferentes daquelas supervisionadas no que tange à mobilidade, sendo mais restrita a movimentação dos servidores cujos planos e carreiras não possuem supervisão própria, o que dificulta uma melhor alocação de pessoal pelo governo federal.

Entretanto, algumas ações recentes do governo federal deixam claro que está em curso um esforço para racionalizar o sistema de carreiras existente e aprimorar as práticas de planejamento e gestão da força de trabalho.

Exemplo disso é a estratégia de realização de concursos de modo unificado, a definição de diretrizes de carreiras (deixando clara a prioridade por planos e carreiras transversais), a centralização e a definição de supervisão, a exemplo das já citadas carreiras sob planejamento, coordenação e gestão do MGI (EPPGG, ATI, AIE, ATPS, ATDS e ATDJ).

Essas medidas demonstram uma tendência na direção da transversalização, definição de órgãos ou entidades supervisores (quando das reestruturações ou criações de planos e carreiras), com o objetivo de conferir maior dinamicidade e coordenação aos processos de seleção, alocação e mobilidade, desenvolvimento, progressão e promoção etc., visando adequar de modo mais consistente as necessidades de condução das políticas públicas.

Ainda que todos esses esforços sejam reconhecidos como importantes, a atual fragmentação do sistema de carreiras, marcada pela falta de isonomia entre os planos e carreiras, a tomada de decisões no varejo, centralizada em um ou dois atores autointeressados, e a pressão corporativa de categorias sindicais mais bem posicionadas politicamente, requer mais do que a pulverização de iniciativas na área de gestão de pessoas no Poder Executivo federal.

Para se garantir a coerência, continuidade e esforços alinhados na direção do interesse público, é necessário construir um arranjo de governança de alto nível, com capacidade de planejamento, coordenação e tomada de decisão compartilhada, ainda que isso contrarie interesses específicos de alguns grupos.

Assim, para integrar e otimizar os esforços, é imperativo estabelecer uma estrutura de governança clara e coesa que possibilite a integração e a coordenação efetiva entre os diversos órgãos e entidades, assegurando que as políticas e práticas, atinentes ao sistema de carreiras, estejam alinhadas com os objetivos governamentais de longo prazo do próprio Poder Executivo federal.

A governança pública de carreiras, cuja premissa imprescindível é a tomada de decisão compartilhada de modo a incrementar as capacidades de planejamento e coordenação pelos atores relevantes em cada caso, tem como missão, portanto, superar o anacronismo ainda vigente nesse campo do conhecimento e da prática administrativa, de modo a garantir o alinhamento entre os vários mecanismos de supervisão e gestão profissional das carreiras, de um lado, e os instrumentos de administração funcional da força de trabalho, de outro, na direção dos objetivos e metas a serem alcançados pelas políticas públicas do governo federal.

Portanto, fica evidente que o governo federal está envidando esforços para aprimorar as políticas e práticas de gestão de pessoas, como talvez isso nunca tenha sido feito antes no Brasil. Resta, talvez, a criação e empoderamento de uma instância com atores de alto nível (envolvendo MGI, MPO, Casa Civil, entre outros possíveis atores estratégicos) para tomar decisões compartilhadas sobre os rumos do sistema de carreiras.

Essa instância seria fundamental para planejar e coordenar as diversas iniciativas em torno de uma visão unificada e estratégica para esse sistema, com foco em garantir a força de trabalho necessária para a implementação exitosa das políticas públicas e o alcance dos objetivos do país.


[1] Os sistemas estruturadores são aqueles instituídos com base no art. 30 do Decreto-Lei 200, de 25 de fevereiro de 1967. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del0200.htm