Da soberania digital à soberania em IA

JOTA.Info 2025-02-26

Ao longo dos últimos anos, o assunto da soberania digital emergiu como um dos temas mais debatidos nos círculos das políticas digitais. Desde 2020, o projeto CyberBRICS do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV Direito Rio vem analisando as estratégias, regulações e iniciativas sobre soberania digital dos países do bloco Brics ao longo de três fases dedicadas à cibersegurança, transformação digital e governança de IA no Brics.

Este ensaio apresenta alguns dos principais achados do projeto, para estimular um debate informado sobre o assunto. Todos os trabalhos citados neste ensaio estão publicados em acesso livre e disponíveis no site do projeto CyberBRICS.

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Da soberania digital à soberania em IA

A soberania em IA é uma espécie do genus soberania digital. Como destacamos em nosso estudo sobre “Digital Sovereignty in the Brics Countries : How the Global South and Emerging Power Alliances Are Reshaping Digital Governance”, embora a soberania digital tenha atraído uma atenção crescente tanto dos decisores políticos como dos acadêmicos, este conceito continua a ser fluido, polissêmico e multifacetado, não tendo ainda encontrado uma definição universalmente aceita.

A noção westfaliana de soberania é entendida como a prerrogativa dos Estados-Nação do pleno gozo da integridade territorial, igualdade legal e não interferência em assuntos internacionais junto com o monopólio do uso legítimo da força e autoridade suprema sobre seu território.

Porém tal noção implica uma centralidade estadual desafiada pelo papel essencial que tecnologias digitais com alcance transnacional – especialmente sistemas de IA – acabaram desempenhando no que diz respeito ao funcionamento de nossas sociedades, economias e democracias.

Neste contexto, nossa definição de trabalho de soberania digital tem sido “a capacidade de entender o funcionamento das tecnologias digitais, conseguir desenvolvê-las e regulá-las efetivamente, exercendo, portanto, autodeterminação, poder e controle sobre ativos digitais tais como dados, softwares, hardwares e redes eletrônicas”. Com base nesta definição, a soberania em IA pode ser definida como “a capacidade de entender, desenvolver e regular sistemas de IA, mantendo assim a autodeterminação, agência e controle sobre tais sistemas”.

Ela implica a aptidão não somente dos Estados, mas também de outras entidades de natureza diferente, tais como grupos de indivíduos, corporações, organizações supranacionais etc., para entender os efeitos positivos e negativos que dadas tecnologias podem ocasionar. Concerne, ainda, a capacidade destes atores de desenvolver tais tecnologias de maneira autônoma e consciente e as regular conforme os próprios valores.

Os vários tons da soberania digital

O discurso sobre soberania digital começa oficialmente em 2011, com a proposição da Organização de Cooperação de Xangai, uma organização intergovernamental liderada por China e Rússia que, em 2011, elaborou um Código Internacional de Conduta para Segurança da Informação, atualizado em 2015, mencionando explicitamente o tema da “soberania na Internet” e associando a tal tema uma conotação autoritária.

É claro que existem manifestações autoritárias da soberania (não somente digital) mas associar soberania digital inevitavelmente ao autoritarismo significa ignorar não somente a evolução do conceito, mas uma amplíssima gama de exemplos de “boa soberania digital”.

Um de tais exemplos é parte de nosso cotidiano: o Pix. Antes do Pix, a única opção disponível para processar pagamentos eletrônicos instantâneos em tempo integral no Brasil era utilizar as redes das gigantes estadunidenses Visa e Mastercard, que cobram uma taxa de 3% a 5% em cada transação, além de centralizar a coleta de dados de todos os seus usuários.

O papel chave das duas empresas antes do Pix significava que a soberania brasileira sobre pagamentos digitais era de fato delegada a dois atores estrangeiros que monopolizavam renda, a o controle sobre os dados coletados e, com base neles, a capacidade de desenvolver e competir em IA. Esses pontos são a principal razão pela qual o desenvolvimento de infraestruturas públicas digitais como o Pix é enormemente relevante do ponto de vista de uma boa soberania digital.

Poucos sabem que o Pix é diretamente inspirado do UPI, análogo sistema introduzido pelo Reserve Bank of India em 2016 como uma rede de pagamento instantâneo baseada em uma API aberta operada pela National Payments Corporation of India. Ainda menos sabem que o UPI é inspirado pelo sistema russo Mir, desenvolvido logo depois da invasão da Crimeia, em 2014, que resultou na primeira rodada de sanções – entre as quais a proibição do uso das redes Visa e Mastercard.

É interessante também frisar que o conceito de soberania digital ganhou uma conotação menos negativa somente quando, em 2020, se tornou uma pauta europeia, apresentada pelo presidente francês, Emmanuel Macron, e pela líder da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, como a legítima aspiração à autonomia estratégica e controle sobre ativos digitais.

Na época, o debate se tornou necessário diante da postura imprevisível e potencialmente danosa da primeira administração Trump no que diz respeito a sanções sobre tecnologia digital – postura que, em retrospectiva, parece tímida comparada às primeiras semanas do segundo mandato Trump.

Quando o presidente estadunidense começou a adotar ordens executivas como armas econômicas, proibindo o uso de software estadunidense pela chinesa Huawei e tentando bloquear o TikTok, a maioria dos países europeus começaram a perceber os riscos da dependência tecnológica. Pela primeira vez nos últimos 30 anos as lideranças europeias se deram conta de sua extrema vulnerabilidade por falta de autonomia tecnológica.

Porém, é assustador constatar que nos últimos cinco anos eles não foram capazes sequer de elaborar um esboço de plano para criar autonomia tecnológica, sendo hoje totalmente desamparados face a sua situação de colônia digital.

As bases constitucionais da soberania em IA

A evolução do debate sobre soberania digital na direção da garantia da autonomia tecnológica é particularmente relevante, não somente porque tal aspiração é mais que legítima, mas particularmente porque, diferentemente da Europa, no Brasil a autonomia tecnológica é um objetivo constitucionalmente protegido.

Pouquíssimas pessoas na própria vida chegam a ler até o artigo 219 da Constituição Federal. Quem fizer parte desse seleto grupo pode entender que, no Brasil, a soberania digital e soberania em IA encontram amparo constitucional diretamente na autonomia tecnológica. Assim, nos termos da Constituição:

Art. 219. O mercado interno integra o patrimônio nacional e será incentivado de modo a viabilizar o desenvolvimento cultural e socioeconômico, o bem-estar da população e a autonomia tecnológica do País, nos termos de lei federal.

Parágrafo único. O Estado estimulará a formação e o fortalecimento da inovação nas empresas, bem como nos demais entes, públicos ou privados, a constituição e a manutenção de parques e polos tecnológicos e de demais ambientes promotores da inovação, a atuação dos inventores independentes e a criação, absorção, difusão e transferência de tecnologia.

Para se alcançar tal autonomia no que diz respeito à IA é necessário se adotar estratégias, políticas e mecanismos de governança e regulação aptos a entender e gerenciar as (inter)dependências e as potenciais vulnerabilidades existentes entre os diferentes elementos que dão suporte ao funcionamento dos sistemas de IA.

Tais elementos podem ser considerados como Facilitadores Essenciais da Soberania em IA e são: dados, algoritmos, capacidade computacional, conectividade significativa, energia elétrica, recursos humanos capacitados, cibersegurança e um marco legislativo capaz de regular os riscos da IA de maneira efetiva.

Como demonstra nossa pesquisa, estes facilitadores estão interligados e é essencial entender esta conexão para regular de maneira eficiente e efetiva. É suficiente pensar que os enormes investimentos em capacidade algorítmica e computacional propostos pelo Plano Brasileiro de IA serão relativamente inúteis se a maioria da população brasileira – 78% segundo os dados do Cetic.br – continuar sem conectividade significativa e tendo acesso somente a redes sociais patrocinadas.

No Brasil, a enorme maioria dos usuários de internet são de fato meros usuários de redes sociais, que estão entre os pouquíssimos aplicativos subsidiados nas franquias dos planos de internet móvel. Quem terá acesso a modelos de IA brasileira em supercomputadores brasileiros se tal acesso custa 15% de um salário mínimo enquanto redes sociais patrocinadas já estão oferecendo acessos a suas próprias IA “de graça”, criando o abito – ou a adição – ao uso desta IA nos cérebros dos usuários?

Soberania em IA é soberania sobre dados. Continuamos a proclamar que os dados são o petróleo do século 21, mas de fato entregamos uma concessão gratuita para explorar essa riqueza ad infinitum, e desenvolver IA com tais dados, para as mesmas pouquíssimas empresas estrangeiras que não somente sabemos ser implicadas em atividade de espionagem reveladas desde 2013 por Edward Snowden, mas que recentemente manifestaram total submissão à nova administração Trump.

Este cenário é bem distante de uma situação de soberania e ainda mais da cibersegurança que o país precisa. Ao contrário, politicas de soberania digital são essenciais para (re)construir autodeterminação, cibersegurança e controle sobre ativos digitais ao invés de ser controlados por meio deles.

O Brasil não é condenado a ser uma colônia digital

Na verdade, o Brasil foi até um precursor da soberania digital, com as políticas da primeira administração Lula sobre software livre. Por anos, o país foi referência mundial, oferecendo uma visão de software como ferramenta libertadora, em vez de um instrumento de extração de dados e de colonização digital.

Porém, o erro brasileiro foi pensar que software livre devesse somente ser adotado ao invés de estimular sua produção para que um ecossistema de tecnologias open source pudesse crescer e até ser exportado. A lição foi aprendida por outros países do Brics. Os indianos entenderam o valor das infraestruturas públicas digitais, e os chineses entenderam muito bem o quanto é estratégico promover IA em código aberto para fortalecer sua soberania, como nos lembra o DeepSeek.

Soberania em IA não significa se isolar e instaurar uma autarquia digital. Ao contrário, pode significar ter uma visão desenvolvimentista capaz de promover pesquisa, desenvolvimento e inovação e organizar tais iniciativas de maneira ecossistêmica, por meio de parcerias e cooperações, empoderando a população. Podemos esperar que tal visão seja embutida numa nova Estratégia Brasileira der IA e no futuro Marco Regulatório de IA?