Sandbox regulatório da ANS para planos de consultas e exames é ilegal

JOTA.Info 2025-02-28

A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) lançou em 18 de fevereiro a Consulta Pública 151, por meio da qual visa receber contribuições de toda a sociedade sobre a proposta de implementação de um ambiente regulatório experimental (sandbox regulatório) para testar planos de saúde com cobertura para consultas estritamente eletivas e exames.

Segundo a agência, “as operadoras que quiserem ​participar desse ambiente experimental deverão criar e registrar um novo produto, no formato coletivo por adesão, seguindo as diretrizes propostas pela ANS. Além disso, elas deverão oferecer bônus aos beneficiários que participarem de programas de cuidado e permanecerem no plano após o período de testes, que será de dois anos. Depois disso, a ANS fará uma avaliação para decidir se o modelo pode continuar ou se será descontinuado”.

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A proposta em consulta pública vai contra as próprias finalidades institucionais da ANS que, segundo a lei de sua criação (Lei 9.961/2001), estipula que a agência tem como objetivos a regulação, normatização, controle e fiscalização das atividades que garantam a assistência suplementar à saúde. A assistência suplementar à saúde é a assistência privada que tem dentre seus objetivos sociais desafogar o Sistema Único de Saúde (SUS).

A ANS tem poder de regulamentar a Lei 9.656/1998, legislação nacional que organiza o setor de saúde suplementar no Brasil desde 1998. A regulamentação da ANS deve ater-se aos limites legais e não pode contrariar as disposições gerais da legislação nacional que rege o setor, sob pena de nulidade de suas normas infralegais.

A assistência suplementar à saúde foi regulada fortemente pela Lei 9.656/1998, ou seja, antes mesmo da ANS surgir. Vale lembrar que a ANS foi criada justamente para regular esse setor emergente e com alta regulação legal e técnica, visando garantir que a saúde suplementar, setor estratégico e sensível para a saúde dos brasileiros, ofereça produtos seguros, resolutivos, economicamente justos e que sejam capazes de, efetivamente, desafogar o SUS. Nenhum desses objetivos institucionais estará sendo observado se a ANS seguir adiante com essa proposta controversa, ilegal e equivocada.

Para além de algumas “opções” bastante duvidosas que constam do texto, como por exemplo a previsão de que o produto somente poderá ser oferecido por meio de planos coletivos por adesão (por que não os individuais também?), a proposta normativa da ANS possui duas ilegalidades que merecem ser destacadas, uma vez que estas ilegalidades torna a proposta normativa nula de pleno direito.

A primeira ilegalidade é a violação da Lei 9.656/1998, que proíbe planos que não contemplem o que está previsto como “planos-referência”. A segunda ilegalidade é o uso distorcido e bastante heterodoxo da Lei Complementar 182/2021 como base legal a autorizar o uso de regulamentação experimental para “testar” planos de saúde que não atendem os critérios definidos na Lei 9.656/1998.

Afronta ao plano-referência

A Lei 9.656/1998 dispõe sobre os planos e seguros privados de assistência à saúde e constitui o marco legal da reorganização do setor de saúde suplementar no Brasil. Representou um importante divisor de águas entre um mercado totalmente desregulado, iníquo e nocivo à saúde individual e coletiva dos brasileiros, colocando enfim ordem e critérios básicos mínimos a serem respeitados pelas empresas que resolvessem comercializar planos de saúde.

Esta lei veio dar concretude ao art. 197 da Constituição Federal, que estabelece que “são de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado”.

Visava-se, à época, evitar a venda de planos de saúde como se fossem um bem de mercado qualquer. Evitar a venda de planos de saúde que não “suplementassem” de fato os serviços já oferecidos pelo SUS. Buscava-se evitar que este mercado se organizasse de forma a oferecer apenas produtos mais rentáveis em termos econômicos, deixando para o SUS os serviços de saúde menos rentáveis por serem mais caros e complexos (serviços de urgência, serviços hospitalares, doenças raras, tratamentos oncológicos etc.).

Há uma lógica no marco criado pela Lei 9.656/1998 que reorganizou o sistema de saúde suplementar, segundo a qual esse setor deve oferecer serviços integrais que, de fato, suplementem e desafoguem o SUS. Essa é a razão, por exemplo, para a previsão da obrigatoriedade de ressarcimento ao SUS pelas operadoras que tenham clientes seus atendidos pelo sistema público.

Se o paciente é atendido pelo setor de saúde suplementar, esse setor deve ser capaz de cuidar deste paciente de forma resolutiva, oferecendo todos os atendimentos de saúde necessários para a solução dos problemas de saúde de seus pacientes/consumidores.

Se o setor de saúde suplementar envia um de seus pacientes ao SUS, deverá ressarcir o SUS pelo tratamento, uma vez que cobrou por um serviço que não ofereceu. Evita-se, assim, o enriquecimento ilítico das operadoras de planos de saúde que, com suas negativas ou insuficiências de cobertura, empurram os seus pacientes ao SUS.

O art. 10, I, da Lei dos Planos de Saúde define plano privado de assistência à saúde como sendo a “prestação continuada de serviços ou cobertura de custos assistenciais a preço pré ou pós-estabelecido, por prazo indeterminado, com a finalidade de garantir, sem limite financeiro, a assistência à saúde, pela faculdade de acesso e atendimento por profissionais ou serviços de saúde, livremente escolhidos, integrantes ou não de rede credenciada, contratada ou referenciada, visando a assistência médica, hospitalar e odontológica, a ser paga integral ou parcialmente às expensas da operadora contratada, mediante reembolso ou pagamento direto ao prestador, por conta e ordem do consumidor”.

Com esse espírito, a Lei 9.656/1998 definiu um plano básico mínimo que deve ser oferecido pelas operadoras de planos de saúde, denominado “plano-referência”. Estes serviços devem estar contemplados em todo e qualquer plano de saúde comercializado no Brasil. Vale transcrever, aqui, o que dispõe o art. 10:

“É instituído o plano-referência de assistência à saúde, com cobertura assistencial médico-ambulatorial e hospitalar, compreendendo partos e tratamentos, realizados exclusivamente no Brasil, com padrão de enfermaria, centro de terapia intensiva, ou similar, quando necessária a internação hospitalar, das doenças listadas na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, da Organização Mundial de Saúde, respeitadas as exigências mínimas estabelecidas no art. 12 desta Lei”.

Ou seja, as empresas privadas que quiserem operar no setor de saúde suplementar devem estar aptas a oferecer o plano-referência mínimo conforme estipulado no art. 10, que admite algumas exceções bem específicas de cobertura relacionadas a tratamentos experimentais, procedimentos estéticos e outras exclusões pontuais do gênero.

A segmentação prevista no art. 12 da mesma lei não autoriza a ANS a criar uma segmentação de plano exclusivamente para consultas e exames. Mesmo os planos de saúde segmentados na categoria “ambulatorial” devem contemplar serviços de urgência e emergência, ou seja, acesso a pronto-socorro e exames associados. Isto porque está expressamente previsto no art. 35C da Lei 9.656/1998 a obrigatoriedade de cobertura de casos de emergência, de urgência e de planejamento familiar.

Em síntese, a Lei 9.656/1998, que precedeu a própria criação da ANS, não autoriza a criação, por RDC da ANS, de um novo tipo de plano de saúde que não respeite o mínimo previsto nos arts. 10,12 e 35C da lei. A ANS viola frontalmente a Lei 9.656/1998, desnaturando e desmontando a natureza do setor de saúde suplementar consolidada pelo marco legal dos planos de saúde.

Esta ilegalidade torna inválida a proposta de RDC que está em consulta, uma vez que é vedado ao Poder Executivo editar regulamentos que contrariem a lei. Eventual aprovação desta RDC será fatalmente questionada junto ao Judiciário, uma vez que tal RDC, se publicada, será nula de pleno direito.

Aplicação inadequada da LC 182/21

A Lei Complementar 182/2021 institui o marco legal das startups e do empreendedorismo inovador. No que se refere ao “empreendendorismo inovador”, a LC 182 estabelece como princípio o “incentivo à constituição de ambientes favoráveis ao empreendedorismo inovador, com valorização da segurança jurídica e da liberdade contratual como premissas para a promoção do investimento e do aumento da oferta de capital direcionado a iniciativas inovadoras”.

A mesma lei autoriza órgãos e instituições do Poder Executivo a adotarem ambientes regulatórios experimentais (sandbox regulatórios) para valorizar iniciativas de inovação. O Executivo estaria autorizado, assim, a criar regulamentos com condições especiais simplificadas para que as pessoas jurídicas participantes possam receber autorização temporária dos órgãos ou das entidades com competência de regulamentação setorial para desenvolver modelos de negócios inovadores e testar técnicas e tecnologias experimentais, mediante o cumprimento de critérios e de limites previamente estabelecidos pelo órgão ou entidade reguladora e por meio de procedimento facilitado.

Certamente que tal empreendendorismo inovador pode ser importante para diversas áreas econômicas, notadamente no campo de novas tecnologias (como inteligência artificial ou o setor de medicamentos para doenças raras, por exemplo).

No entanto, não há qualquer possibilidade de se falar em “empreendendorismo inovador” para o setor de saúde suplementar, visando autorizar produtos que são expressamente vedados pela lei. Não há que se falar em sandbox regulatório visando tecer uma norma regulamentadora que permita aos empreendendores criar e colocar no mercado produtos que estejam em desacordo com leis vigentes, especialmente em setores sensíveis e, mais especialmente ainda no setor da saúde.

A ANS está pegando carona em uma autorização legal feita especificamente para permitir a criação de ambientes regulatórios experimentais para mercados de tecnologia avançada e de produtos. Com isso, busca uma brecha legal duvidosa para tentar abrir a porteira para que o setor de serviços de saúde suplementar possa oferecer planos em desrespeito à legislação vigente. E para futuras autorizações de “planos de saúde” que podem até ser planos (do mal), mas que de bom para a saúde não têm nada.

Serviços de saúde oferecidos por meio de planos de saúde não podem ser equiparados a telefones celulares ou a softwares com IA. Pela lei vigente, a ANS não possui o poder normativo de permitir às operadoras de planos de saúde o oferecimento de produtos que a Lei 9.656/1998 veda expressamente.

O sandbox regulatório não é uma via para que o Poder Executivo possa criar regulamentos que contrariem as leis. Relembrando: serviços de saúde são de relevância pública e não podem ser ofertados no Brasil de forma livre em “empreendendorismo inovador”. Violar a lei não é inovar. Violar a lei é cometer um ilícito, valendo tanto para o “empreendedor” quanto para as agências e órgãos regulamentadores do Poder Executivo.

Prejuízos ao SUS

Caso esta norma proposta pela ANS avance, é certo que o SUS será sobrecarregado ainda mais no que se refere ao acesso aos seus serviços de pronto-socorro e assistência hospitalar. O SUS possui uma lógica sofisticada e muito bem articulada no que se refere ao itinerário terapêutico de seus pacientes. Os pacientes vão evoluindo nos serviços de atenção primária, secundária e terciária conforme suas necessidades de saúde, garantindo-se assim atenção integral.

Os planos ultrassegmentados, como os sugeridos pela norma proposta pela ANS, somente irão bagunçar ainda mais o SUS, na medida em que o paciente, munido de prescrições médicas privadas e de exames laboratoriais privados, irá procurar o SUS já em fase avançada de seu quadro clínico e com propostas terapêuticas que não necessariamente dialogam com os protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas fixados no âmbito do SUS.

E o SUS muito provavelmente terá que refazer boa parte dos procedimentos para poder validar internamente as condutas terapêuticas adequadas para cada paciente que chega da rede privada com seus encaminhamentos e exames.

Ainda, se o paciente vai a uma consulta com um especialista e esse percebe que há uma urgência em atendimento hospitalar, qual será a solução a ser dada uma vez que o paciente estará coberto apenas para a consulta e exames? Esse paciente irá fatalmente acabar sendo atendido pelo SUS. Cria-se um mercado privado que pode até ser lucrativo, mas que em nada auxiliará o sistema de saúde brasileiro.

Assim, o setor de saúde suplementar, ao invés de suplementar o SUS (e desafogá-lo), irá simplesmente direcionar ao SUS pacientes com demandas de tratamentos de urgência, emergência ou hospitalares e cirúrgicos que não necessariamente dialogarão com os fluxos e lógicas do sistema público.

O que a norma proposta pela ANS visa não tem nada a ver com incentivar o “empreendendorismo inovador”. Trata-se simplesmente de autorizar as operadoras de planos de saúde a oferecerem um produto ilegal que irá garantir lucros fáceis, permitindo a essas empresas empurrarem seus clientes ao SUS quando o custo do tratamento deixar de ser rentável.

Saúde não é mercadoria, e tratar o setor de saúde suplementar como se fosse um mercado qualquer é inaceitável. Trata-se de um setor sensível e que foi estruturado ao longo de décadas tendo como premissas a sua suplementariedade ao SUS. No novo modelo sugerido pela ANS, o que se quer criar é um mercado que permita que o setor privado lucre ainda mais com a saúde dos cidadãos, deixando para o Estado brasileiro o dever de oferecer, de fato, um atendimento integral pelo SUS.

Espera-se que a norma experimental proposta pela ANS não prospere. E, se prosperar, pode-se prever uma disputa judicial intensa sobre sua legalidade.