Crítica ao regime de ‘solitária’ marca audiência sobre sequestrador de Washington Olivetto
JOTA.Info 2025-03-05
Familiares e representantes legais do chileno Mauricio Hernández Norambuena, mentor do sequestro do publicitário Washington Olivetto, em 2001, apelaram à Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) contra as “condições desumanas, cruéis e degradantes” a que foi submetido em 23 anos de privação de liberdade – 17 deles no Brasil, e colocaram em xeque o modelo de Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), a “prisão solitária” que foi aplicada a Norambuena em penitenciárias estaduais e federais no Brasil.
Em audiência realizada nos dias 6 e 7 de fevereiro, familiares e advogados de defesa pediram celeridade e prioridade no julgamento e sentença do caso, que tramita há 20 anos no sistema interamericano de direitos humanos.
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Peritos presentes na audiência também questionaram o RDD e defenderam a revogação da Lei 10.792, a Lei de Execução Penal, que em 2003 ratificou o modelo da solitária no Brasil, que havia sido criado dois anos antes pela Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo.
“Há 23 anos testemunho a injustiça e a falta de humanidade sofrida por meu tio e nossa família”, disse o sobrinho de Norambuena, Mauricio, aos juízes da Corte IDH.
Advogado e também um dos representantes legais de Norambuena na audiência, ele afirmou que a família vive todos os dias as repercussões de ver o tio condenado a morrer na prisão.
“Como se não bastasse a dor de minha tia, de minha mãe, de seus irmãos e de Mauricio sobrecarregados pelas torturas e humilhações causadas pelo Estado do Brasil, a prisão de Mauricio no Chile continua colocando o dedo nessa ferida. Além disso, como família imaginávamos que o tempo em que esteve privado de liberdade no Brasil para fins de extradição seria suficiente para que cumprisse a pena chilena. Mas ficamos desapontados porque o Chile não cumpriu o acordado com o Brasil, e o Estado brasileiro ignorou totalmente o controle e a supervisão do cumprimento do tratado de extradição em relação ao que descontaria da pena”, afirmou.
“Mauricio tem 66 anos de idade. É um idoso, que ainda tem aproximadamente 20 anos de pena. Sem querer ser alarmista, nas condições atuais, não sabemos se voltará a usufruir da liberdade, porque o tempo, como bem sabem, é implacável”.
Prisão em flagrante
Norambuena foi preso em flagrante no Brasil em fevereiro de 2002 depois de liderar o sequestro de Olivetto em um bairro nobre de São Paulo. Ele e outros seis sequestradores exigiam R$ 10 milhões para a libertação do publicitário, mas acabaram presos no interior de São Paulo.
Norambuena havia chegado ao Brasil depois de fugir de um presídio de segurança máxima no Chile, em 1996. À época, cumpria pena perpétua pelo assassinato do senador Jaime Guzmán, fundador do partido conservador União Democrática Independente (UDI) e pelo sequestro de Cristian Edwards, herdeiro do jornal chileno “El Mercurio”.
Em seu país de origem, liderava a Frente Patriótica Manuel Rodríguez (FPMR), uma das principais organizações de luta armada contra a ditadura de Augusto Pinochet.
Com base no histórico criminal no Chile, a administração penitenciária do presídio de Taubaté, em São Paulo, pediu para submeter Norambuena ao modelo RDD. Ele foi condenado no Brasil a 30 anos de prisão.
Críticas da CIDH
Na audiência realizada recentemente, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos fez críticas duras ao modelo RDD, que se traduz, segundo a organização, em uma medida imposta de forma arbitrária, impondo isolamento prolongado.
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“Conforme destacou o ex-relator especial da ONU sobre tortura, professor Juan Mendes, os efeitos negativos para a saúde surgem logo após alguns dias de regime de isolamento, e os riscos aumentam a cada dia, gerando ansiedade, depressão, transtornos cognitivos, distorções de percepção, paranoia, psicose e lesões auto infringidas”, afirmou Marina Rosa, uma das representantes da CIDH.
“Nessas circunstâncias, a Comissão considera que o RDD configurou violação ao artigo 5.2 da Convenção Americana, que proíbe toda forma de tratamento desumano e tortura, da qual deriva a responsabilidade do Estado brasileiro”.
O vice-presidente da CIDH, Jose Luís Caballero Ochoa, lembrou que, sob o RDD, Norambuena ficava isolado em cela individual, com visitas restritas e saídas para banho de sol de no máximo duas horas diárias.
Todos os recursos interpostos enquanto esteve preso sob esse modelo, inicialmente nas penitenciárias estaduais de Taubaté e Presidente Bernardes, em São Paulo, entre 2002 e 2007, e depois em presídios federais, até 2018, foram recusados.
Norambuena foi extraditado ao Chile em agosto de 2019, depois que o governo chileno se comprometeu a aceitar a condição imposta pelo Supremo Tribunal Federal (STF) de substituir a pena perpétua por uma prisão de, no máximo, 30 anos. Ele segue preso no Chile, não em RDD.
Para a CIDH afirmaram seus representantes na audiência que o RDD viola uma série de direitos, entre eles o direito à integridade pessoal e às garantias e proteção judicial.
De acordo com a Convenção Americana, o RDD só pode ser aplicado de 180 a 360 dias, com possibilidade de ampliação. No entanto, no caso de Norambuena, foi estendido por um tempo excessivo.
Para a CIDH, o Estado brasileiro não se certificou de que se tratava de uma medida excepcional, nem quais foram as causas ou motivações para a sua imposição. Tampouco se apresentaram as razões de segurança, reforma e readaptação de Norambuena, em virtude das quais tal regime seria necessário.
Saúde mental
Médico membro do Colégio Nacional de Direitos Humanos do Chile, Enrique Morales Castillo participou da avaliação das condições de saúde de Norambuena na prisão e relatou o estado do chileno em reclusão.
“Eram 22 horas de reclusão solitária e duas horas de acesso ao pátio, também em solitário, sem contato com outros reclusos. Quando saía por qualquer razão da cela, fosse para ir ao pátio ou para avaliação médica, ele deveria tirar a roupa, mostrar cavidades, as plantas dos pés”, contou. “Nesse deslocamento, era proibido de olhar os policiais no rosto. Se o fizesse, era castigado a maior isolamento e levado a outra cela onde não tinha acesso ao pátio”, contou o médico.
Norambuena só tinha acesso a livros, disse, da biblioteca da prisão. Não podia receber encomendas, livros nem alimentos do exterior. Podia escrever cartas. Recebia visitas a cada três meses. No total foram mais de seis mil dias de isolamento prolongado, contou, mais de 400 vezes o padrão de 15 dias já considerado prolongado pelas Regras de Mandela, o conjunto de normas estabelecidos pela ONU para o tratamento de presos.
“Isso gerou uma série de dores físicas e psíquicas que se refletem na sintomatologia apresentada e que pudemos comparar com os quadros clínicos descritos em muitos estudos sobre o efeito do isolamento prolongado nas pessoas”, disse o médico.
Perguntado por um dos advogados da defesa sobre as recomendações feitas pela equipe médica em relação às condições de saúde de Norambuena, Morales Castillo disse que a orientação foi de suspender o RDD para não prolongar seu sofrimento.
Segundo ele, as condições degradantes e de tortura às quais Norambuena foi submetido na carceragem brasileira levou a uma síndrome de estresse pós-traumático que exige tratamento para o resto da vida.
“Como continua preso, ele sofre uma retraumatização diária”, afirmou o médico.
André de Carvalho Ramos, professor de Direito Internacional da Universidade de São Paulo (USP), participou da audiência como perito, abordando os tratados de extradição entre os Estados e sua relação com direitos humanos e o tratamento a migrantes.
“A privação de liberdade para efeitos de extradição faz parte desse máximo de 30 anos que a vítima deve cumprir. Ou seja, se a pessoa foi privada de liberdade no Brasil e for extraditada após 13 anos, existem duas regras básicas do sistema brasileiro que entram em vigor. A primeira é o limite máximo de 30 anos. A segunda regra é a necessidade de retirar da pena o tempo já cumprido. Ou seja, a pena seria de 17 anos”, disse.
“Em matéria de extradição, a defesa da vítima deve ser sempre notificada previamente de uma ordem de extradição. Contudo, no Brasil não é obrigatório informar a defesa da vítima, nem a própria vítima, sobre a execução da extradição”.
O advogado e professor de direito penal (UFRJ/UERJ) Salo de Carvalho reforçou as críticas aos efeitos do isolamento prolongado, sobretudo à saúde mental, defendeu o fim do RDD e a revogação da lei, com limitação dos tempos conforme as Regras de Mandela e estabelecimento de alternativas prévias antes de encaminhamento ao isolamento prolongado.
“Não vejo formas de garantia de direitos a partir do status jurídico do RDD”, afirmou. “É um modelo completamente inconvencional e não pode ser mantido. Não vejo virtude em reformar a lei. Ela deveria ser revogada. E, ao ser revogada, deveria haver um novo estatuto com previsão de controle judicial efetivo”.
A defesa de Norambuena afirmou que se trata de um caso “em que a violação de direitos humanos não ficou no passado”. Para os advogados, a condição de estrangeiro de Norambuena foi usada como justificativa para seu isolamento e impossibilidade de mudança de regime.
“Essa lei que não permitia progressão de regime data da ditadura militar brasileira, que considerava os estrangeiros uma ameaça à segurança nacional”, afirmaram.
“É a pessoa que passou mais tempo no Brasil, quiçá do mundo, em sistema de isolamento, vivenciando o trauma sofrido por responsabilidade do Estado brasileiro”, afirmaram os representantes legais do chileno.
A defesa argumenta que a decisão de 2004 de comutar a pena para 30 anos foi completamente ignorada em relação ao tempo que Norambuena permaneceu no sistema prisional brasileiro. O prazo reconhecido pelo Estado chileno para desconto, ressaltaram, foi de apenas 11 dias, que correspondem aos dias em que permaneceu sob custódia da Polícia Federal aguardando sua extradição para o Chile.
“Os Estados chileno e brasileiro permitiram que as coisas acontecessem desta forma, o que prejudicou a vítima e a impediu de mudar para outro regime. O Estado brasileiro enviou comunicação ao Estado chileno para que o desconto de prazo fosse realizado, sendo que o Estado chileno considerou apenas 11 dias ao invés do que o Estado brasileiro lhe notificou. Agora, o Estado brasileiro deve exigir que o Estado chileno limite o prazo da pena com um total máximo de 30 anos”, defenderam os advogados de Norambuena.
Eles pediram que a Corte “reconheça todo o período em que a vítima esteve presa no Brasil para que este possa ser subtraído de sua pena, de acordo com a legislação brasileira e o tratado de extradição do Mercosul, Chile e Bolívia, que também deve ser exigido do Brasil”.
A Corte deu até o dia 10 de março para que representantes da defesa e do Estado brasileiro apresentem suas alegações e observações finais por escrito.