Comitê gestor e o alvorecer de uma nova administração tributária
JOTA.Info 2025-03-31
Signo indelével do processo constitutivo da “Nossa Reforma Tributária”[1] foi a ruptura do tradicional maniqueísmo do “nós contra eles” (Fisco x Contribuintes), visão de mundo que os situa, equivocadamente, como poderes opostos e incompatíveis.
O sucesso do design e do processo de aprimoramento da PEC45 e da PEC110 – até a promulgação da EC 132/2023 e da edição da LC 214/2025 – foi a participação e protagonismo crescente dos agentes públicos, em especial dos auditores fiscais das três esferas federativas, na concepção e implementação da reforma tributária, na qual assumiram papel ativo e decisivo para construção de um sistema tributário mais eficiente e justo.
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Assim, a “Tropa de Elite” dos agentes fiscais das três esferas federativas do Brasil – tais como Angelo de Angelis[2], Antonio Alcoforado[3], Artur Mattos[4], Helio Mello[5], Manoel Procópio[6], José Tostes[7], Rodrigo Frota[8], Rodrigo Spada[9], Ricardo Oliveira[10] e outros[11], sentindo desconforto com a complexidade e insegurança jurídica do Sistema ISS, ICMS, PIS/COFINS e IPI, tornaram-se os grandes protagonistas da “Nossa Reforma Tributária”[12].
Essa mudança de postura reflete a compreensão de que o dever do auditor fiscal vai além da mera aplicação da lei existente; envolve também a contribuição para o seu aperfeiçoamento. A reforma inaugura nova era na tributação brasileira, com mudanças disruptivas que transcendem o direito material tributário, alcançando a repactuação das relações federativas, a ativação da economia e o exercício da cidadania fiscal[13].
O sucesso dessa transformação, reside na “construção coletiva”, que envolveu o Congresso Nacional, a academia, a sociedade civil, o governo e, crucialmente, os técnicos das administrações tributárias e das procuradorias das três esferas federativas. Reconhecer o papel essencial desses profissionais, que contribuíram fortemente para o “substrato normativo técnico” que subsidiou a gênese e o desenho da EC132, da LC 214 e do PLP108, é fundamental para entender a profundidade e a solidez da Reforma Tributária[14].
A Inédita Integração Federativa: o Legado dos 305
O marco histórico na construção da reforma tributária foi a inédita integração entre a União, os estados e os municípios, materializada no Programa de Assessoramento à Reforma da Tributação sobre o Consumo (PAT-RTC).
O arranjo e iteração para a produção do ponto de partida legal que resultou nos PLPs 68 e 108 não tem precedentes na história do país: 305 representantes e técnicos dos três entes federativos se reuniram com o desafio de construir coletivamente um modelo novo e disruptivo, não apenas na tributação sobre o consumo, mas também do próprio pacto federativo.
Essa experiência, realizada em um prazo exíguo de menos de três meses, submeteu o federalismo brasileiro a um teste rigoroso, demonstrando a capacidade de colaboração em prol de um objetivo comum. Conforme destaca Manoel Procópio[15], a experiência do PAT-RTC, cujos êxitos se manifestam tanto nos resultados concretos, como os próprios PLPs, representa, ainda, a instauração pela primeira vez na história do Brasil de “Federalismo Cooperativo” de fato, que se realizou com a aproximação, diálogo e conhecimento mútuo entre as administrações tributárias e as procuradorias dos diferentes entes federados.
Tal integração representa significativo divisor de águas, onde as administrações passaram a se conhecer e a aprender a trabalhar juntas, motivadas pelo desenho do IVA DUAL com mesma legislação para CBS/IBS e competência compartilhada de Estados e Municípios para instituir conjuntamente IBS, superando históricas barreiras e desconfianças.
Opção pelo IVA Dual
A escolha por um Imposto sobre o Valor Adicionado (IVA) dual, composto pela Contribuição Social sobre Bens e Serviços (CBS) federal e o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) estadual e municipal, gerou surpresa, dúvidas, debates e questionamentos. A opção por um IVA único, tecnica e juridicamente, seria mais adequada e simples. Contudo, os próprios entes federados, por diversas razões, optaram pelo modelo dual: escolha legítima, caracterizando a dualidade como muito mais administrativa do que normativa, dada a grande identidade estabelecida entre IBS e CBS[16].
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A experiência positiva do trabalho conjunto no PAT RTC impulsionou os técnicos a conceberem uma série de mecanismos nos PLPs 68 e 108 visando essa maior integração, mediante diversos instrumentos de integração, tais como: (i) a previsão de atuação conjunta da Receita Federal e do Comitê Gestor para implementar soluções integradas; (ii) a possibilidade de administração e pagamento via plataforma única IBS/CBS com gestão compartilhada, (iii) a padronização do documentário fiscal eletrônico com compartilhamento entre todos os entes, e (iv) a consolidação da apuração por todos os estabelecimentos do contribuinte.
Contencioso Tributário
A origem da enormidade do contencioso brasileiro reside nas patologias do atual direito material tributário do Sistema ISS, ICMS, PIS/COFINS e IPI, permeado por quase 5.600 fontes do direito que geram alta complexidade e insegurança jurídica.
A LC214/2025, ao instituir uma legislação única, uma única fonte do direito e uma única regulamentação para todo o Brasil, representa o principal instrumento para o combate ao contencioso. A simplificação do direito material – também com fato gerador amplo, crédito vinculado ao pagamento e não cumulatividade plena – elimina grande parte das bizarras discussões que alimentam a atual “indústria do contencioso tributário”[17].
O “tiro de morte” no contencioso IBS/CBS[18] é dado pela própria legislação do novo Sistema CBS/IBS. Paralelamente, a redução das hipóteses de multa do PLP 108[19], a instituição de Sistema Nacional de Fiscalização Integrada – SINAFI[20], a transparência (tanto do Comitê Gestor como da Receita Federal) configuram os alicerces de uma nova era de conformidade que rompe com o atual maniqueísmo entre Fisco/Contribuintes.
O Comitê Gestor do IBS
Merece especial atenção o advento do Comitê Gestor do IBS, previsto no PLP 108. Não haveria reforma do IBS sem o Comitê Gestor. Este órgão, composto pela reunião dos estados e municípios, é essencial para garantir os pilares fundamentais da reforma, como a não-cumulatividade plena, devolução automática e imediata de créditos acumulados, o princípio do destino e o mecanismo de cashback.
As competências atribuídas ao Comitê Gestor são, na verdade, exercidas pelos estados, Distrito Federal e municípios de forma integrada, visando assegurar o padrão nacional do IBS. A nova entidade de integração de estados e municípios, tal como adverte o Professor Carlos Ari Sundfeld[21], não representa uma perda de autonomia, mas sim o exercício integrado de competências para o bem e interesse comum da federação.
No âmbito do contencioso administrativo, o Comitê Gestor assume papel central, na qualidade de titular exclusivo para a solução dos litígios relacionados ao IBS. Serão criadas 27 câmaras virtuais, referenciadas aos estados, com julgadores indicados pelos respectivos entes, mas operando sob um sistema e legislação processual uniformes. Essa estrutura visa manter certa proximidade com o lançamento e a prova, ao mesmo tempo em que garante o padrão nacional do contencioso administrativo tributário.
Créditos Presumidos
A questão dos créditos presumidos, mecanismo utilizado em regimes tributários específicos, deve ser abordada cuidadosamente para não prejudicar a não cumulatividade, em especial, no que diz respeito à dimensão da higidez financeira do Comitê Gestor para honrar a devolução automática de créditos acumulados.
É fundamental que, no novo sistema, o crédito presumido guarde absoluta correlação com valores que foram efetivamente recolhidos nas etapas anteriores. O objetivo é garantir a não cumulatividade em situações específicas, como na relação com produtores rurais não contribuintes, sem que o crédito presumido seja desvirtuado para a concessão de benefícios fiscais indevidos e em desconformidade com a vedação do inciso X, do Art. 156-A da EC 132, segundo o qual “não será objeto de concessão de incentivos e benefícios financeiros ou fiscais relativos ao imposto ou de regimes específicos, diferenciados ou favorecidos de tributação, excetuadas as hipóteses previstas nesta Constituição”. A diretriz constitucional de que o IBS e a CBS não serão utilizados como instrumento de concessão de incentivos e benefícios fiscais deve nortear a regulamentação dessa matéria[22].
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Portanto, créditos presumidos previstos na LC 214/2025, tais como para produtores rurais, transportadores autônomos e aquisição de bens imóveis de pessoa física, devem estar sempre vinculados a aquisições efetivamente tributadas. Permitir que o crédito presumido seja superior ao imposto incidente nas etapas anteriores representaria um retorno ao cenário de guerra fiscal e distorções que se busca superar.
O Regulamento da CBS/IBS
O poder regulamentar não pode inovar originariamente na ordem jurídica, pois segundo o revigorado princípio da legalidade que rege o Sistema CBS/IBS estabelece que a lei complementar será a única fonte primária CBS/IBS (LC214 e a lei complementar que advir do PLP108). O regulamento deve se cingir a conferir exequibilidade à norma, detalhando aspectos operacionais e procedimentais sem estabelecer, alterar ou extinguir as regras veiculadas nestes diplomas legais.
Nessa perspectiva, a administração tributária assume a responsabilidade de formular um regulamento que seja um verdadeiro “guardião da legalidade”, garantindo a aplicação dos princípios constitucionais da não cumulatividade, neutralidade, simplicidade e transparência. Trata-se de oportunidade ímpar de alinhamento das categorias do fisco com a sociedade no sentido de trabalhar a favor da legalidade[23].
O regulamento terá a missão de encontrar o sentido adequado para instrumentos como os créditos presumidos, de forma a garantir a não cumulatividade sem comprometer a integridade do sistema. A EC132/2023 e a transição informada, sem aumento de carga, representam os mandamentos que celebram a “arca da aliança” entre Fisco/Contribuintes, rumo à instauração de formidável cenário de alinhamento e cooperação entre fisco e contribuinte, dado que os contribuintes inscritos no IBS têm interesse comum em garantir a neutralidade e combater a sonegação[24].
Conclusão
A reforma, fruto de esforço coletivo sem precedentes, representa um avanço significativo em direção a um modelo mais simples, transparente, eficiente e justo.
O protagonismo dos agentes públicos, a inédita integração federativa, a busca pela máxima integração administrativa no IVA dual, a solução para o contencioso ancorada na simplificação do direito material, a centralidade do Comitê Gestor e a responsabilidade na regulamentação são elementos que, nas palavras e na visão de Isaias Coelho e Manoel Procópio, sinalizam o “alvorecer de uma nova administração tributária”, comprometida com a constitucionalidade e a legalidade, a serviço da sociedade brasileira[25].
O próximo passo, já iniciado no Centro de Cidadania Fiscal sob a liderança de Nelson Machado, é o Projeto “Nosso Orçamento Público”, que estabelecerá o redesenho da equação fundamental entre receita tributária e despesa pública.
[1] Designação do projeto de pesquisa, lançado em 2014 pelo Núcleo de estudos Fiscais da FGV DIREITO SP, que defendia que a sociedade civil organizada deveria ser a grande protagonista da Reforma Tributária.
[2] Ex-auditor fiscal da Receita Estadual da Secretaria da Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo
[3] Auditor fiscal da Receita Estadual da Secretaria da Fazenda do Estado de Pernambuco
[4] Ex-auditor fiscal da Receita Municipal da Secretaria da Fazenda de Salvador/BA
[5] Auditor fiscal da Receita Estadual da Secretaria da Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo
[6] Diretor da SERT, Representante do CONSEFAZ junto ao CCiF na formulação da PEC BRASIL SOLIDÁRIO, ex-presidente do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais de Minas Gerais e Auditor Fiscal da Receita Estadual · Secretaria da Fazenda do Estado de Minas Gerais.
[7] Ex-Secretário da Receita Federal do Brasil
[8] Auditor Fiscal da Receita Estadual da Secretaria da Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo
[9] Presidente da AFRESP, Presidente da FEBRAFIT, líder e idealizador do Movimento “VIVA O IVA” e Auditor Fiscal da Receita Estadual da Secretaria da Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo
[10] Auditor Fiscal da Receita Estadual da Secretaria da Fazenda do Estado de Minas Gerais
[11] https://www.gov.br/fazenda/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/reforma-tributaria/regulamentacao
[12] “O amanhã chegou: representantes da sociedade civil, professores, advogados e, em especial, os servidores públicos que atuam nas três esferas do fisco nacional serão os grandes protagonistas das mudanças de que tanto precisamos para nos modernizarmos e nos tornarmos os melhores do mundo: sim, melhorar o Brasil. Nós podemos!”. Cf. “Kafka, Alienação e Deformidades da Legalidade”, 2014, p. 592.
[13] Cf. Transparência e legalidade como estratégias de valorização da atividade da autoridade tributária. Eurico Marcos Diniz de Santi e André Rodrigues Corrêa, São Paulo: Editora Max Limonad, 2020. Disponível online no site: https://www.euricosanti.com.br/transparencia-e-legalidade-como-estrategias-de-valorizacao-da-atividade-da-autoridade-tributaria
[14] Cf. Manoel Procópio, entrevista no site “Eurico Santi & Nossa Reforma Tributária”: https://www.youtube.com/watch?v=3-2G_Lx8zoc&t=152s
[15] Entrevista no site “Eurico Santi & Nossa Reforma Tributária”: https://www.youtube.com/watch?v=3-2G_Lx8zoc&t=152s
[16] Destaque-se que Melina Rocha, autora do livro “Reforma Tributária no Brasil – Ideias, Interesses e Instituições”, Coleção FGV Direito Rio, foi a grande referência intelectual do IVA-DUAL · cf. entrevista no site “Eurico Santi & Nossa Reforma Tributária”: https://www.youtube.com/watch?v=1K8AxuRIBaM
[17] Cf. Manoel Procópio, entrevista no site “Eurico Santi & Nossa Reforma Tributária”: https://www.youtube.com/watch?v=3-2G_Lx8zoc&t=152s
[18] Idem, ibidem.
[19] NT CCiF n. XXVII – Multas e infrações do IBS – propostas de aperfeiçoamento ao PLP 108/24
[20] NT CCiF n. XXVIII – Nota Técnica: Sistema Nacional de Fiscalização Integrado (SINAFI)
[21] Cf. Carlos Ari Sundfeld https://www.youtube.com/live/GZNY7r9JJ2Q?si=0gIMarvXX0nI8S-E e https://www.youtube.com/watch?v=vrSmGnC_qQs
[22] Cf. Manoel Procópio, entrevista no site “Eurico Santi & Nossa Reforma Tributária”: https://www.youtube.com/watch?v=3-2G_Lx8zoc&t=152s
[23] Projeto de alunos vira proposta de “Lei Orgânica da Administração Tributária”: o texto teve apoio e orientação dos professores Fernando Marcato e Eurico de Santi, das áreas de direito administrativo e tributário. https://portal.fgv.br/noticias/projeto-alunos-vira-proposta-lei-organica-administracao-tributaria
[24] Cf. Manoel Procópio, entrevista no site “Eurico Santi & Nossa Reforma Tributária”: https://www.youtube.com/watch?v=3-2G_Lx8zoc&t=152s
[25] Cf. Isaias Coelho, em prefácio ao livro “Kafka, Alienação e Deformidades da Legalidade”, 2014, p. 592. Também, segundo Manoel Procópio, entrevista no site “Eurico Santi & Nossa Reforma Tributária”: https://www.youtube.com/watch?v=3-2G_Lx8zoc&t=152s