‘Universidade’ dentro do jurídico: as estratégias de liderança do General Counsel da Coca-Cola

JOTA.Info 2025-04-01

“O jurídico é parte do ecossistema, não é uma coisa separada”, afirma Flavio Mattos, general counsel da Coca-Cola na América Latina. A área tem um papel de conciliar, de mediar e de estar junto com o negócio, criando alternativas de receita.

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Tive situações em determinados mercados que havia uma barreira jurídica para lançar um determinado produto”, afirma. “Nesses casos, é o próprio jurídico deve pensar em maneiras de trazer resultados para dentro da organização. Nós, advogados, temos que saber qual é o business que a gente opera.”

Na visão de Mattos, é preciso abertura para aprender e procurar ferramentas dentro das próprias empresas para desenvolver habilidades que não necessariamente são ensinadas no curso de Direito, mas que são essenciais para advogados corporativos atingirem a liderança. 

Para sua equipe, Mattos montou uma espécie de universidade, com cursos e recursos de mentoria para alavancar carreiras.

Esse e outros tópicos serão abordados por ele na C Law Experience, que será realizada em 9 e 10 de junho em São Paulo. O JOTA é um dos parceiros do evento. Saiba mais informações e garanta o seu ingresso para o evento que conecta C-levels e heads jurídicos.

Mattos participará do painel “O Futuro do Gestor Jurídico – Desafios e Estratégias para a Ascensão nas Empresas”. Ele adiantou alguns temas em entrevista exclusiva ao JOTA. Confira:

Hoje o senhor é general counsel da Coca-Cola na América Latina. Como começou essa trajetória?

Hoje estou aqui com uma responsabilidade de 39 países, mas comecei minha carreira como estagiário na empresa. Saí, voltei e já são 25 anos tendo várias oportunidades, várias experiências. Trabalhei no México, trabalhei nos Estados Unidos, no próprio Brasil. Dentro da minha carreira também, acabei explorando o ambiente acadêmico. Tenho dois mestrados, um fora do Brasil e um no Brasil, cheguei a dar aula, o que hoje faço isso eventualmente. Uma das minhas dissertações virou um livro. Sempre procurei variar as experiências ao longo de minha carreira. Porque hoje, sendo um general counsel na empresa, é óbvio, eu vejo os programas jurídicos, mas eu também tenho que gerir uma equipe. Hoje acho que isso é o grande ápice da carreira, aprender a liderar.

Liderar é um desafio que se aprende, então?

 Pode até nascer com você, mas é uma coisa treinável, então você precisa aprimorar isso. Não tinha esse skill comigo, mas é uma coisa que você tem que aprender, ou, no mínimo, aprimorar. E dentro dessa seara, o universo jurídico, por muito tempo a gente ficou dentro dessa caixa, dentro do jargão jurídico e só. E não é assim. Eu, dentro da organização, além de ser general counsel e liderar pessoas, eu também tenho um papel de ética e compliance, e também sou o executivo da empresa. Então, eu também sou responsável pela venda do produto no final das contas. Estou na parte executiva da empresa. Tem esses vários chapéus aqui que eu preciso saber coordenar. E pra isso, liderança é essencial.

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Liderar uma equipe pra eles, dentro desse ambiente, também entregarem. Não é um trabalho de super-herói, de indivíduo, é um trabalho coletivo. Aprimorar, desenvolver essas competências foi um grande desafio: como saber influenciar, como saber liderar, coordenar, qual é o momento de escalar um assunto. Se comunicar – e não é verdade que o advogado sabe se comunicar, e não digo nem o jargão, é a forma mesmo. A linguagem executiva é totalmente distinta da linguagem jurídica, advogados tendem a ser muito prolixos. E hoje é que eu tento cada vez mais treinar a minha equipe para essa prática do elevator speech, falar tudo em dois, três minutos no máximo.

Todo esse aprimoramento da equipe envolve desenvolvimento de soft skills com eles, treinar comunicação, treinar influência, saber como trabalhar em colaboração para resolver um tema complexo. Não é um advogado que vai dar lá uma canetada e vai resolver esses tópicos, porque não é mais assim que funciona, tudo é parte de um ecossistema. Então a gente tem que saber cada vez mais trabalhar em equipe, com as diferenças, com a diversidade, com tudo isso que traz esse desafio.

O senhor mencionou que foi um processo de aprimoramento, um processo de desenvolvimento. Quais foram as ferramentas que o senhor utilizou para isso? 

Esse processo de aprendizado foi na prática. A gente vai atravessando as cercas, vai arranhando… Primeiro que eu sou uma pessoa introvertida. Sendo introvertido, eu busquei sair do meu casulo e dar aula exatamente para me desinibir. Isso foi uma grande alavanca que eu usei com a minha intuição para desenvolver. Eu dava aula na Escola da Magistratura, você pode imaginar como é um público difícil, eu diria. Você tem que realmente se preparar muito, ler muito. Também dava aula no IBMEC, numa pós-graduação, que também é um público diferente do público que está estudando para o curso, mas que também é um público difícil. São nuances que você vai pegando e vai aprendendo, de como dialogar, como trafegar nesses universos.

E uma organização não é diferente disso. Você tem todo tipo de interlocutor, então envolve aprender a desenvolver uma coisa que é fácil para o introvertido, que é desenvolver a escuta. Só que numa organização as pessoas gostam de falar mais – na vida, de um modo geral, acho que as pessoas falam mais. Mas escutar é uma habilidade que vale a pena desenvolver, porque você consegue entender qual é o problema e realmente você solucionar.

Você pode aprender usando a força da própria organização a teu favor. Se eu quero desenvolver uma determinada habilidade, eu procuro um mentor dentro da própria organização que vai me ajudar nisso – não só para mim, como para o time. Então eu usei muita mentoria, eu usei muito shadowing, muito coaching, tudo dentro da própria organização. É importante pedir a ajuda de pessoas que poderiam contribuir.

Se eu tenho uma pessoa que é mãe na minha organização, de filho pequeno, ela tem certos desafios, que eu não enxergo como líder, porque eu não vivo aquela realidade. Então, eu procuro uma mentoria com uma pessoa que tenha aquela necessidade específica. Ela me passa insights até pra eu melhorar a minha gestão com aquela outra pessoa. Eu mesmo fui o meu laboratório, vamos dizer assim. Também faço mentorias reversas, com a geração Z, entender que eles pensam.  

Exige muita abertura para aprender, experimentar e não ter medo de errar – algo que os advogados têm dificuldade também, temos que ter espírito muito aberto pra entender que somos vulneráveis, seres humanos, que erramos.

E como o senhor aplica essas habilidades em ambientes multiculturais, cuidando de 39 mercados?

Esse é um ponto essencial. As culturas são diferentes. Somos latinos, mas somos completamente diferentes. Um chileno é totalmente diferente de um brasileiro, que é totalmente diferente de um mexicano, de um colombiano. Então, a primeira coisa é aprender, tem que observar muito e ter esse diálogo aberto. Entender como age cada um para navegar nesses ambientes, com humildade para perguntar. Um modelo não serve para todo mundo. Você lidera um brasileiro de uma forma, um mexicano de um jeito, um chileno de outro, um colombiano, e por aí vai.

Tudo é resultado da cultura, um resultado das complexidades, dos desafios, das dores de cada um. Então, não adianta eu querer cobrar uma coisa de uma pessoa que é mãe, que tem uma jornada em casa, tem uma jornada no trabalho, tem filhos, de uma pessoa que é um homem, que é solteiro e sozinho, por exemplo, é diferente. É preciso humanizar a liderança. Isso não quer dizer que você não cobre, eu sou muito competitivo e prezo pela excelência. Mas é abrir o potencial de cada um dentro da sua realidade.

E como o senhor equilibra esse papel de líder, com seu papel jurídico e a necessidade de atender o business?

É uma jornada que começa com entender que o jurídico é parte do ecossistema, não é uma coisa separada. Nós somos parte da engrenagem, a gente entrega uma habilidade que outras áreas não têm. A gente tem um papel aqui de, às vezes, conciliar, de mediar e até mesmo de estar junto com o negócio, criando alternativas de receita.

Tive situações em determinados mercados que havia uma barreira jurídica para lançar um determinado produto. Nesses casos, é o próprio jurídico deve pensar em maneiras de trazer resultados para dentro da organização. Nós, advogados, temos que saber qual é o business que a gente opera. Então, eu e a equipe, a gente está sempre em visita de mercado, vendo a execução do produto ali, o que está faltando, o que a gente tem que fazer, como a gente pode aprimorar. Muitas mentorias e one-on-ones e reuniões individuais com cada líder, com cada owner de um determinado projeto para aprender, para entender, qual é o gargalo que a gente precisa destravar?

Todos temos que entender o contexto. Para isso criei uma “universidade” para o time, todo mundo aqui tem mentor, tem shadowing, tem coach, precisa fazer certos cursos aqui sobre a própria empresa. É saber sobre a execução do produto, como se executa o produto no ponto de venda, como se precifica um produto, qual é a temperatura que o produto tem que estar na geladeira, qual é a geladeira que é adequada para esse tipo de ponto de venda, como a gente abastece as geladeiras. Todo mundo é responsável pelo resultado. Todo mundo é owner desse negócio aqui.

Como é exatamente a estrutura dessa “universidade” dentro da Coca-Cola? 

É uma criação minha, e não tem nada formalizado. Mas temos one-on-ones, nossas reuniões mensais ou quinzenais, e no começo do ano identificamos os principais gargalos de cada um. E nos perguntamos: quem que você vê na organização aqui que é uma pessoa que faz isso muito bem? Assim eu peço para a pessoa ajudar esse advogado a construir isso dentro de um programa que pode ser uma mentoria, ou outros formatos, com encontros e até um contrato de como isso vai funcionar. Com esses encontros, eles montam um projeto para entender como aprimorar essa skill. Então com isso você vai criando essas alavancas para as pessoas se desenvolverem.

Além desses outros cursos para entender a empresa, executivos do meu nível e outros times, como Marketing, Digital, vêm dar aulas para os advogados sobre a estratégia da empresa, o funcionamento da indústria de refrigerante, de alimentos… É uma forma de capacitar todo mundo. Vamos lapidando esses diamantes que temos aqui. O mais legal é que está todo mundo engajado, está todo mundo gostando muito. Não se trata de substituir o compliance ou aquele papel mais tradicional, mas agregar outros papéis. Somos um time de basquete, defendendo mas também fazendo cestas.

Quais são os erros mais comuns que impedem advogados de assumirem esse papel de liderança? 

Primeiro, esse territorialismo. Eu estou falando aqui de um ambiente macro, né? Um ambiente grande como a América Latina. Tento quebrar esse negócio de, ah, eu sou advogado da Colômbia, do Brasil. Não, você é advogado da América Latina. Então, você tem que entender os problemas de um modo geral e aplicar. Os problemas que a gente tem são mais ou menos comuns, com enfoque diferente, independente do território. A Coca-Cola é uma empresa que é dominante em quase todos os mercados do mundo.  

A outra parte é a própria comunicação. Advogado às vezes não sabe como se comunicar, porque fica muito preso no jargão jurídico. Não é assim, tem que aprender a contar uma história com o elemento jurídico dentro, mas não deixa de ser uma história.

Outro problema é que os advogados têm mindset muito fixo, o que gera essa cultura de super-herói, de eu vou treinar, eu vou fazer e ser o melhor do mundo. Não é assim. Um mindset de construção envolve erros e aprendizados, e entendo que um erro na advocacia gera prejuízos muito grandes. Mas precisamos entender quais são os espaços para experimentar.