Corte IDH julga Brasil no caso ‘Chacina do Tapanã’, sobre violência policial no Pará
JOTA.Info 2025-04-01
A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) começou a julgar o Brasil no caso “Max Cley Mendes e Outros Vs. Brasil”, mais conhecido como “Chacina do Tapanã”, nome do bairro da periferia de Belém (PA) onde três jovens negros foram agredidos e mortos por policiais militares, em 1994. Em audiência pública, a mãe de duas das vítimas, Sheila Rosangela Melo Mendes, pediu o fim do uso excessivo da força policial contra jovens. Seus filhos tinham 17 e 16 anos quando foram executados por agentes de segurança em frente à casa em que moravam.
“Quero que a justiça seja feita. Que, no Brasil, a polícia nos proteja, e não o contrário. Os agentes são violentos, não protegem, não conversam. Isso continua até hoje”, disse Mendes aos juízes na sede da Corte IDH, em San José, na Costa Rica.
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Mendes prestou depoimento com a identidade protegida, sem mostrar o rosto às câmeras que filmavam a sessão. À Corte, disse que nunca se esqueceu da noite de 13 de dezembro de 1994. Passados mais de 30 anos do caso, nenhum dos acusados foi punido pelo crime.
“Eu estava em casa, dormindo, quando escutei o barulho de tiros. Vi que meu filho estava sendo arrastado por um policial. Já estava morto. Eu me aproximei, mas o policial disse para que eu voltasse para casa e não saísse, porque a rua estava cheia de bandidos, e havia troca de tiros. Entrei e disse ao meu marido que meu filho estava no chão. Os policiais invadiram a casa da namorada dele e tiraram meu filho de lá. Ele não estava armado. Mataram ele e jogaram no chão. Meu outro filho chegou depois. Quando viu o irmão, deu um grito. E os policiais o metralharam. Perdi dois filhos”, contou Mendes.
Depois do ocorrido, disse, desenvolveu depressão e gastrite. “Quase não consigo me alimentar. Tudo que chega ao meu estômago, eu vomito”, afirmou. Segundo ela, o Estado não deu o apoio necessário à família, assim como a Justiça. “Até hoje os culpados não foram condenados. Andam livres, por aí”, disse.
“A justiça que quero pedir é que se implemente algo que acabe com isso [a violência policial]. “Esses crimes continuam acontecendo. [Os policiais] pegam os jovens, não buscam saber o que aconteceu. Parece que não têm alma”, disse.
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Faltava uma semana para que o filho mais novo de Mendes, Michel Nazareno Mendes Monteiro, completasse 12 anos quando o crime aconteceu. Presente na audiência na Corte IDH, ele contou, também sem mostrar o rosto, que tinha uma relação muito próxima com os irmãos.
“Jogávamos futebol de botão. Uma hora éramos a Itália, depois o Brasil”, lembrou. “Nosso bairro era de periferia, pobre, pouco iluminado”.
Michel disse que nunca vai se esquecer daquela noite, quando se assustou com o barulho de vários carros e homens falando, e depois os tiros.
“Foi bem em frente à nossa casa. Escutamos os tiros, minha mãe saiu. Não imaginávamos na hora o que era”, disse. “Nunca vou esquecer como arrastavam meu irmão, como se fosse um bicho, já morto”.
Auto de resistência
Em 13 de dezembro de 1994, dois filhos de Sheila Mendes, Max Cley Mendes e Marciley Roseval Melo Mendes, e um terceiro jovem, Luís Fábio Coutinho da Silva, foram ameaçados, agredidos e assassinados por policiais militares durante uma operação após a morte de um oficial da PM na região.
Os assassinatos foram registrados como “auto de resistência”, termo usado por policiais ao registrar o Boletim de Ocorrência e com o qual alegam legítima defesa ao matar um suspeito, que teria resistido à prisão.
Na audiência, representantes da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) afirmaram que se trata de um caso de uso excessivo de força policial e execução sumária dos três adolescentes, e a consequente impunidade do crime.
A investigação foi iniciada em dezembro de 1994, na Justiça Militar. Dois anos depois, em novembro de 1996, foi transferida para a Justiça ordinária.
Em dezembro do mesmo ano, 21 oficiais da PM foram acusados de participação na operação que levou à morte dos três jovens. No ano seguinte, quatro nomes foram excluídos do processo.
Em agosto de 2018, os 17 acusados foram absolvidos por falta de provas. O Ministério Público não apresentou recurso, e a o caso foi definitivamente encerrado.
O caso chegou à Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 2020 e foi enviado à Corte IDH em junho de 2023. Para a CIDH, as execuções foram arbitrárias.
“O Estado não comprovou que a força letal foi usada com absoluta necessidade”, afirmaram representantes da Comissão. “As vítimas foram torturadas antes de serem mortas, ameaçadas e golpeadas pelos agentes, que causaram sofrimento mental e físico”.
A CIDH afirmou que há falhas na investigação e nos processos na Justiça, que violam direitos humanos das vítimas. Para a Comissão, o auto de resistência foi citado de forma incorreta, assim como não foram exploradas todas as linhas de investigação, que estaria cheia de inconsistências.
“O processo demorou muito, e foi concluído quase 24 anos depois dos fatos sem nenhum tipo de responsabilização penal”, afirmaram os representantes da CIDH.
O que disse o CNJ
Participando como perita na audiência de instrução do caso, a juíza auxiliar da presidência do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) Karen Luise Vilanova Batista de Souza disse que o caso traz uma constatação incômoda: “O racismo está presente na vida social, inclusive nas instituições de Justiça. Opera silenciosamente nos dados, nas ausências, nas decisões e nos procedimentos. Por muito tempo, foi naturalizado e invisibilizado”, afirmou.
O caso mobilizou o Centro de Defesa de Crianças e Adolescentes do Movimento República de Emaús, a Sociedade Paraense de Defesa de Direitos Humanos e a Universidade Federal do Pará, que acompanharam o julgamento.
Representantes das vítimas reivindicaram reparação civil e o reconhecimento público por parte do Estado brasileiro de que os jovens foram torturados e mortos por agentes policiais.
Além disso, pedem a implementação de políticas públicas para reduzir a letalidade policial no Brasil.
Para representantes do Movimento República de Emáus, a decisão da Corte IDH pode impactar de forma positiva na produção de políticas de justiça para crianças e adolescentes na Amazônia, contrapondo-se à violência que impera no ambiente urbano e nas periferias das grandes cidades do Norte do país.
“É importante destacar que este é o primeiro caso envolvendo violência urbana, que ao vitimar adolescentes da Amazónia, chega a ser julgado em uma Corte internacional”, afirmaram representantes do movimento.
De acordo com a presidente da Corte IDH, a juíza costarriquenha Nancy Hernández López, as partes têm até o dia 23 de abril para apresentar suas alegações e observações finais por escrito.