A luta do século: Nações Unidas versus mudança do clima

JOTA.Info 2025-04-01

No dia 10 de março, o embaixador André Corrêa do Lago publicou sua primeira carta como presidente designado da COP 30, pela qual convida “a comunidade internacional a se juntar ao Brasil em um mutirão global contra a mudança do clima”, nosso “inimigo comum”.[1] 

No documento, projeta-se uma “nova era”, de ação e implementação, que teria a COP 30, a primeira na Amazônia, como marco inicial da “transição para a fase ‘pós-negociação’ da UNFCCC”.[2] E prestando justas homenagens ao legado da diplomacia desde o Acordo de Paris, de 2015, o presidente da COP 30 reforça, dez anos depois, a necessidade de ações coletivas concretas que façam da conferência em Belém “o pontapé inicial de uma nova década de inflexão na luta climática global” — “a luta do século”.

De plano, nota-se na carta uma clara sinalização de liderança brasileira — que já havia sido demonstrada em novembro do ano passado, quando da apresentação da nova Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC) do país.[3] 

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Agora, convida-se a comunidade internacional “a se juntar ao Brasil”, em marcha rumo a uma “nova era” influenciada por símbolos brasileiros que reforçam a posição de líder na qual o país quer se manter:

  1. amarram-se as ações globais com o conceito de mutirão, de origem tupi-guarani (“mutirõ”), “que se refere a uma comunidade que se reúne para trabalhar em uma tarefa compartilhada”;
  2. os trabalhos conjuntos deverão ser “guiados pelo Cruzeiro do Sul”, deixando clara a necessidade de os países desenvolvidos redirecionarem seus olhares para as demandas e vulnerabilidades do Sul Global; e
  3. uma “nova era” teria início em território amazônico, sob a presidência brasileira.

É natural que o anfitrião de uma COP queira mostrar liderança — e o presidente da COP 30 equilibra esse desejo brasileiro de forma diplomática, deixando claro que o verdadeiro protagonista em Belém será o multilateralismo, hoje em crise.

À medida em que o individualismo desmantela as relações internacionais, “nosso inimigo comum”, a mudança do clima, impõe-se. Impõe-se pela própria força da natureza[4] e pela omissão de quem deveria agir para contê-la.

Nesse contexto, é preocupante, por exemplo, o fato de, terminado em fevereiro o prazo para as partes do Acordo de Paris apresentarem suas novas NDCS,[5] apenas 22 países terem depositado suas metas junto à UNFCCC.[6] União Europeia, China, Rússia e Índia, que estão entre os maiores emissores de gases de efeito estufa do mundo, ainda não submeteram suas contribuições.

O atual quadro geopolítico, de fragmentação, é perturbador, pois, quando o regime multilateral tropeça, caem as Nações Unidas e quebram-se seus elos.

É importante lembrar que o Acordo de Paris é um tratado internacional vinculado a uma convenção das Nações Unidas (UNFCCC), que une suas partes com o objetivo de “fortalecer a resposta global à ameaça da mudança do clima” (artigo 2.1). A defesa das Nações Unidas é, portanto, crucial para se preservar a própria legitimidade dos principais instrumentos legais de combate à mudança do clima.

Não à toa, o presidente da COP 30, já na primeira página de sua carta, fala em “nós, as Nações Unidas”, mostrando não estar restrito aos interesses individuais do Brasil, mas, sim, zelando por toda a comunidade internacional. E mais: (i) faz-se questão de celebrar o aniversário de 80 anos das Nações Unidas, criada em 1945 após o fim da Segunda Guerra Mundial, e, (ii) ao resgatar a ideia da “banalidade do mal” (desenvolvida por Hannah Arendt para denunciar a aceitação do inaceitável), recrimina-se, agora, a “banalidade da inação” contra a mudança do clima.

Logo, a inação que agrava a crise climática, além de conspirar em favor do “nosso inimigo comum”, é um mal a ser combatido coletivamente.

Eis, então, que nos vemos diante da “luta do século”. De um lado (“o lado certo da história”, como se depreende da carta), representando o multilateralismo, a cooperação solidária entre os povos, o consenso científico e o direito internacional: as Nações Unidas. Do outro lado, com suas causas, ameaças e impactos negativos sobre os sistemas humanos e naturais: a mudança do clima.

A carta, portanto, deixa claro o papel das Nações Unidas como antagonista da mudança do clima (v.g., no título de um de seus capítulos, lê-se: “convocando as Nações Unidas em uma nova aliança contra um inimigo comum: a mudança do clima”). E há aqui uma intenção evidente: a defesa do regime multilateral.

Nessa luta, tal como apresentada (isto é, como um embate entre dois lados, o certo e o errado; o bem versus o mal), não há margem para dilemas sobre qual dos dois devemos apoiar: as Nações Unidas devem vencer o “inimigo comum”.

Essa abordagem binária não ignora a complexidade multifacetada do tema. Tanto é assim que convoca para a ação, além das partes da UNFCCC, líderes em finanças, governos subnacionais, o setor privado, a sociedade civil, a academia, o setor de tecnologia, pensadores, líderes espirituais, artistas, filósofos, líderes locais, pequenas empresas, pais, indivíduos e profissionais de saúde, educação e segurança pública. “A humanidade precisa de vocês”, diz a carta.

De fato, o problema climático, como já apontado por Richard Lazarus, é “super perverso” (super wicked problem),[7] pois, além de urgente e calamitoso, sua solução está enredada em um conjunto de problemas sistêmicos (sociais, econômicos, políticos e de diversas outras naturezas) e, em larga medida, depende da ação de seus próprios causadores.

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Contudo, sem negar o desafio multidimensional do problema, o presidente da COP 30, com apoio no consenso científico, foca na necessidade indiscutível de se agir coletivamente para se resolver um problema comum a todos nós: “se o aquecimento global não for controlado, a mudança nos será imposta, ao desestruturar nossas sociedades, economias e famílias. Se, em vez disso, optarmos por nos organizar em uma ação coletiva, teremos a possibilidade de reescrever um futuro diferente.”

O antagonismo retratado na carta (Nação Unidas versus mudança do clima), longe de ser uma simplificação do problema, é um recorte objetivo sobre o risco de ruína do regime multilateral (e da própria UNFCCC) e um recurso de comunicação clara e de mobilização para a ação coletiva em um momento crítico da nossa história.


[1] Embaixador André Corrêa do Lago, “Primeira Carta do Presidente da COP30” (10.03.25), disponível em https://cop30.br/pt-br/presidencia-da-cop30/carta-da-presidencia-brasileira (acesso em 27.03.25).

[2] UNFCCC é a sigla em inglês da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, firmada no Rio de Janeiro, em 1992.

[3] Comento a nova NDC brasileira no artigo em “A ambição da meta de emissões do Brasil”, Valor Econômico (09.12.24), disponível em https://valor.globo.com/opiniao/coluna/a-ambicao-da-meta-de-emissoes-do-brasil.ghtml (acesso em 28.03.25).

[4] 2024 foi o ano mais quente da história e o primeiro a ultrapassar 1,5ºC em relação a níveis pré-industriais: World Meteorological Organization, “WMO confirms 2024 as warmest year on record at about 1.55°C above pre-industrial level” (10.01.25), disponível em https://wmo.int/news/media-centre/wmo-confirms-2024-warmest-year-record-about-155degc-above-pre-industrial-level (acesso em 27.03.25).

[5] UNFCCC, Decisão 1/CMA.5, “Outcome of the first global stocktake” (15.03.24), UN Doc. FCCC/PA/CMA/2023/16/Add.1, para. 166.

[6] UNFCCC, NDC Registry, disponível em https://unfccc.int/NDCREG (acesso em 26.03.25).

[7] Richard J. Lazarus, “Super Wicked Problems and Climate Change: Restraining the Present to Liberate the Future”, Cornell L. Rev., vol. 94, pp. 1153-1234 (2009).