Cotas para seres humanos no trabalho

JOTA.Info 2025-04-13

Com a inteligência artificial, na próxima década, isso [conhecimento de um grande médico ou um grande professor] se tornará gratuito, algo comum. Ótimos conselhos médicos, excelentes aulas particulares [ficarão disponíveis pela IA]”. Essa foi a afirmação feita por Bill Gates no dia 5 de fevereiro de 2025, em entrevista ao programa de televisão norte-americano “The Tonight Show Starring”, apresentado por Jimmy Fallon.[1]

Gates não está sozinho. Erik Brynjolfsson e Andrew McAfee vaticinam que as tecnologias digitais – com hardware, software e redes em seu núcleo –, em um futuro próximo, diagnosticarão doenças com mais precisão do que os médicos, aplicarão grandes conjuntos de dados para transformar o varejo e realizarão muitas tarefas que antes eram consideradas exclusivamente humanas.[2]

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A previsão do ex-diretor executivo da Microsoft não é inédita. O avanço exponencial das novas tecnologias, sobretudo da inteligência artificial, há muito reacendeu o debate que gira em torno da tutela jurídica do trabalhador em face da automação, já que é inegável o fenômeno da substituição crescente de inúmeras tarefas humanas por ferramentas de IA.

A matéria, inclusive, é objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 73, ajuizada pela Procuradoria Geral da República (PGR) no dia 11/7/2022, sob o fundamento de que há omissão inconstitucional do Congresso Nacional em regulamentar o dispositivo constitucional que assegura o direito social de trabalhadores urbanos e rurais à proteção em face da automação (artigo 7º, inciso XXVII, da CR/88).[3]

Ao longo do tempo, embora a automação e o desenvolvimento de tecnologias tenham promovido a substituição de uma parcela significativa dos postos de trabalho – especialmente aqueles caracterizados por baixa qualificação e tarefas operacionais repetitivas –, é igualmente evidente que tais transformações viabilizaram o surgimento de novas ocupações. Profissões como desenvolvedor de software, analista de dados, gestor de mídias sociais e especialista em cibersegurança exemplificam funções emergentes na era digital, refletindo a reconfiguração estrutural do mercado de trabalho diante das demandas emergentes da sociedade da informação.

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Há um consenso consolidado na literatura de que, historicamente, as inovações tecnológicas geraram substituições de postos de trabalho, mas também possibilitaram o surgimento de novos postos de trabalho. Contudo, o advento das tecnologias em inteligência artificial, especialmente em sua vertente generativa e autônoma, coloca em xeque a manutenção dessa lógica histórica.

Isso porque, diferentemente das tecnologias anteriores, que exigiam mediação e complementação humana, a IA contemporânea apresenta capacidade crescente de substituir não apenas o trabalho manual, mas também atividades intelectuais complexas, criativas e analíticas, inclusive em áreas altamente qualificadas.

Martin Ford, por exemplo, destaca que a IA atual possui capacidades que transcendem as tecnologias anteriores, potencialmente afetando não apenas empregos operacionais, mas também funções cognitivas complexas. Ele argumenta que, diferentemente das revoluções tecnológicas passadas, a IA contemporânea pode não gerar um número proporcional de novas oportunidades de emprego, pois as indústrias emergentes baseadas em IA tendem a ser intensivas em capital e não em mão de obra, limitando a criação de novos postos de trabalho.[4]

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Na Malásia, v.g., estimativas indicam que, desde 2020, cerca de 300 mil empregos foram perdidos devido à IA e à automação. Nas Filipinas, também há preocupações quanto à substituição generalizada de empregos pela IA, inclusive no setor de gestão de processos de negócios (business process management), uma das principais indústrias do país, conforme indica o relatório “Perspectivas Mundiais do Emprego e Social para 2025”, da Organização Internacional do Trabalho (OIT).[5]

Advirta-se, entretanto, que não há consenso sobre a magnitude da eliminação de postos de trabalho e da geração de novos empregos frente ao volume potencial de substituições. A própria OIT, no relatório acima mencionado, revela que nem todas as fontes são igualmente pessimistas: algumas apontam sinais de crescimento de empregos, sugerindo que o impacto geral da IA ainda está longe de ser claramente definido.[6]

O “Relatório Futuro dos Empregos 2025”, do Fórum Econômico Mundial, é ainda mais otimista, pelo menos em relação aos próximos 5 (cinco) anos. Segundo o documento estima-se que, até 2030, serão criados 170 milhões de novos postos de trabalho. Esse crescimento, no entanto, deverá ser compensado pela eliminação de 92 milhões de empregos atualmente existentes, o que corresponde a 8% do total, resultando em um crescimento líquido de 78 milhões de empregos, ou 7% do total atual de ocupações formais até 2030, indicando um saldo positivo, porém modesto.[7]

Seja como for, tem prevalecido na literatura a opinião de que não haverá geração significativa de novos empregos quando comparado ao volume potencial de substituições, o que maximiza a preocupação debates sobre a necessidade de políticas públicas ativas, regulamentações éticas e mecanismos de compensação socioeconômica no mundo do trabalho.

Uma das formas mais eficazes de promover um avanço sustentável e humanizado das novas ferramentas tecnológicas, é a instituição de um sistema obrigatório de cotas para seres humanos no mercado de trabalho, medida que emerge como necessária diante do cenário desenhado pela automação e pelo rápido avanço da inteligência artificial (IA).

A medida insere-se nas ideias de justiça social, desenvolvimento sustentável e função social da tecnologia e deve ser entendida como instrumento de política pública compensatória, orientada à preservação da dignidade da pessoa humana e à redução dos impactos negativos da substituição de trabalhadores por sistemas automatizados.

A CR/88 impõe ao Estado e à sociedade o dever de promover condições para o pleno desenvolvimento das pessoas, o que inclui o direito ao trabalho como elemento central da realização pessoal, social e econômica do indivíduo. A substituição em massa da força de trabalho humana por tecnologias autônomas, sem mecanismos de mitigação dos seus efeitos sociais, vulnera diretamente os objetivos constitucionais, resultando em exclusão, desemprego estrutural e aumento da desigualdade.

As cotas para seres humanos, nessa perspectiva, tem o potencial de funcionarem como um contrapeso ético-jurídico à automação indiscriminada, obrigando empresas e entes públicos a manterem uma proporção mínima de força de trabalho humana em atividades econômicas, inclusive nas mediadas por algoritmos. Trata-se, como se percebe, de modelo comparável ao sistema de cotas de pessoas com deficiência e aprendizagem, em que o objetivo é compensar desigualdades estruturais e garantir a inclusão social pro futuro.

Dentre as diretrizes para o desenvolvimento da ideia, pode-se mencionar, apenas exemplificativamente, a criação de um “Índice de Substituição Tecnológica”, baseado em critérios como número de tarefas automatizadas, redução de força de trabalho e uso intensivo de IA, com alíquotas progressivas de cota proporcional à automação aplicada; estímulo a parcerias público-privadas para criação de empregos híbridos, que combinem supervisão humana e execução tecnológica, favorecendo sinergias entre inteligência humana e artificial; subsídios e incentivos fiscais para empresas que adotem boas práticas de inclusão humana em processos automatizados e desenvolvam tecnologias assistivas voltadas à cooperação homem-máquina; criação de um fundo de compensação social, financiado por empresas com alto índice de automação, destinado à requalificação de trabalhadores deslocados e à geração de empregos em setores sociais e ambientais estratégicos.

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As bases acima, longe de representarem uma proposta definitiva, na verdade servem como sugestão embrionária para o desenvolvimento de um sistema eficaz e garantidor da pessoa humana. Logo, não se prestam a esgotar o tema, mas devem ser compreendidas como reflexões iniciais para a construção de um modelo jurídico, político e econômico comprometido com a dignidade da pessoa humana e com o desenvolvimento tecnológico socialmente responsável. Trata-se, deste modo, de lançar as bases para um novo pacto civilizatório, no qual o progresso seja reconciliado com a justiça social e com a centralidade do trabalho humano como vetor de pertencimento, emancipação e realização pessoal.

As cotas para seres humanos, por certo, preservam e densificam a função social do trabalho (CR/88, art. 170) e promovem uma ordem econômica com fundamento na valorização do trabalho humano. A medida, portanto, não se opõe ao progresso tecnológico, mas busca regulamentá-lo de forma a compatibilizar o desenvolvimento econômico com os valores republicanos e democráticos do Estado de Direito, entre eles a inclusão social e a solidariedade intergeracional.

A médio e longo prazo, o descolamento entre produtividade e emprego ameaça a própria sustentabilidade do capitalismo de consumo. Além disso, a concentração de riqueza nas mãos de empresas que dominam a IA acentua o risco de neocolonialismo tecnológico, sobretudo em países em desenvolvimento.

As cotas humanas se consubstanciam, portanto, uma estratégia geoeconômica para garantir soberania produtiva, inclusão digital e autonomia nacional, protegendo o país da dependência de soluções tecnológicas estrangeiras que, embora eficientes, geram desemprego interno em larga escala. Porque, no fim das contas, não é a tecnologia que deve ditar os rumos da sociedade. Somos nós.

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[1] GATES, Bill. Bill Gates Joked with Steve Jobs About Taking the Wrong LSD, Talks AI and Optimism for the Future. Entrevistador: Jimmy Fallon. Canal The Tonight Show Starring Jimmy Fallon, 2025. Recurso eletrônico. 10 min 53 seg. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=uHY5i9-0tJM. Acesso em: 31 mar. 2025. Para alguns, a previsão pode até parecer exagerada demais, mas vale lembrar que no que diz respeito aos impactos da tecnologia no cotidiano das relações sociais, Bill Gates já fez pelo menos dez previsões que se tornaram realidade, tais como sites que comparam preços em tempo real, possibilidade de pagamento de contas e acesso a financiamentos pela internet, telemedicina, assistentes pessoais digitais, monitoramento remoto de residências, redes sociais (muito antes da ascensão da Meta), publicidade inteligente e personalizada, dentre outras.

[2] BRYNJOLFSSON, Erik; MCAFEE, Andrew. The second machine age: work, progress, and prosperity in a time of brilliant technologies. New York: W. W. Norton & Company, 2016, p. 33.

[3] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão n.º 73, em tramitação. Relator: Min. Luís Roberto Barroso. Brasília, DF. Disponível em: https:// https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6443764. Acesso em: 31 mar. 2025.

[4] FORD, Martin. Rise of the robots: technology and the threat of a jobless future. New York: Basic Books, 2016, p. 12.

[5] INTERNATIONAL LABOUR ORGANIZATION. World Employment and Social Outlook: trends 2025. Geneva: ILO, 2025. Disponível em: https://www.ilo.org/sites/default/files/2025-01/WESO25_Trends_EN_WEB5.pdf. Acesso em: 24 mar. 2025, p. 36-37.

[6] INTERNATIONAL LABOUR ORGANIZATION. World Employment and Social Outlook: trends 2025. Geneva: ILO, 2025. Disponível em: https://www.ilo.org/sites/default/files/2025-01/WESO25_Trends_EN_WEB5.pdf. Acesso em: 24 mar. 2025, p. 37.

[7] WORLD ECONOMIC FORUM. The Future of Jobs Report 2025. Geneva: World Economic Forum, 2025, p. 50. Disponível em: https://www.weforum.org/publications/the-future-of-jobs-report-2025. Acesso em: 24 mar. 2025.